1947-2025 José António Saraiva, o jornalista arquiteto
Jornalista e escritor, José António Saraiva era filho de António José Saraiva, ensaísta, historiador e crítico literário, e sobrinho do historiador José Hermano Saraiva
José António Saraiva,
diretor do Expresso entre
1983 e 2005, morreu esta
quinta-feira em Lisboa
Um texto do José António Saraiva
topava-se à distância. Bastava olhar-
-se para uma página, ver a arrumação dos parágrafos, a dimensão das
frases. Havia ali uma mancha gráfica
que servia de assinatura. Não sei se a
maioria dos leitores comunga desta
impressão, nem sei se é a forma mais
digna de se começar um obituário.
Mas sei que os velhos leitores do
Expresso percebem ao que venho.
E sei, com uma certeza estritamente
pessoal, que o José António saberia
do que eu estou a falar.
José António Saraiva, que morreu
esta quinta-feira em Lisboa, aos 77
anos, foi diretor do Expresso entre
1983 e 2005. Saiu do jornal, na última grande cisão da animada história
do Expresso, para fundar o “Sol”,
onde há uma semana assinou a sua
última crónica. O título foi bem encontrado, ou bem apanhado, como
se diz nas redações: “Não é uma despedida”. Acabou por ser a despedida,
com uma rapidez rara nas doenças
que se costumam dizer prolongadas.
Nas primeiras linhas dessa crónica
de 28 de fevereiro de 2025, seis dias
antes de morrer, o José António dá a
justificação perfeita para o primeiro
parágrafo deste texto. “Nunca me
senti jornalista (...). Como arquiteto
senti-me um Deus. Ver um sítio e
imaginar para ali uma construção
(...), ver um sítio onde antes não
havia nada e saber que vai ali ficar
por umas dezenas de anos.” Era assim que olhava para uma página em
branco. Fosse a página onde assinava a crónica “Política à Portuguesa”, fosse a primeira página, cuja
construção obedecia a uma liturgia
especial e demorada.
A primeira vez que assisti a essa
construção, com o José António e
o mestre Ribeiro, de volta de uma
mesa redonda, em finais de 1989,
percebi que estava perante essa liturgia de dois não jornalistas. Um diretor que gostava de ser arquiteto
ladeado por um chefe gráfico a falarem uma língua deles. Mais que
uma manchete, as notícias ou as
fotografias, o que eles gostavam era
de imaginar uma construção. Não era fácil ser diretor do Expresso no último ano da década de 80.
O Vicente Jorge Silva — amigo de
velha data do José António Saraiva
— tinha acabado de sair do Expresso
em direção à Quinta do Lambert,
para fundar o “Público”, levando
com ele literalmente metade da redação. Miguel Esteves Cardoso, o
mais divertido cronista do Expresso
da década de 80, já tinha atravessado para o outro lado do Marquês
de Pombal para erguer com Paulo
Portas “O Independente”. Entre um
semanário que agitava o cavaquismo
e a futura construção do Vicente, o
Expresso corria perigo de vida.Lembro-me de uma reunião muito
tensa, em que felizmente deixaram
entrar — ou não deram por nós — os
estagiários. Os jornalistas sentiam-se
ameaçados pela rapidez e impie dade
de “O Independente” e pela frescura
do “Público”. O génio do Vicente
e o brilhantismo de Paulo Portas
faziam de José António Saraiva uma
personagem de outra galáxia. Foi ali
que ouvi pela primeira vez, naquela
espécie de plenário, uma frase que
poderia estar esculpida nas paredes
do Expresso: “Os outros são lanchas
rápidas, o Expresso é um porta-aviões.” Eu tinha 21 anos e aquela frase
não me podia satisfazer. Mas quando
regressei ao jornal, a convite do Henrique Monteiro em 2009, já tinha
tido tempo de sobra para perceber
que a frase era verdadeira.
Parecendo de outra galáxia, o José
António Saraiva sempre percebeu
outra máxima absoluta do jornal: o
Expresso é uma grande coligação.
A frase dá muito mais trabalho do
que se pensa, sobretudo ao diretor.
Exige gerir no caos, misturar talento
e organização, loucura e constância.
E conseguir, no meio disso, fazer um
jornal influente, respeitado e rigorosamente institucional.
As discussões entre ele e os jornalistas mais influentes da redação —
por causa de uma notícia ou de um
título — podiam ser exasperantes.
A mais espantosa a que assisti foi
sobre a possibilidade da democracia em Moçambique, com o Henrique Monteiro literalmente à beira
do desespero. Aprendi mais nessas
discussões do que nos poucos anos
que andei pela faculdade. O Expresso era um lugar muito divertido e
diverso, onde os jornalistas eram
engenheiros, historiadores, advogados, médicos ou economistas (pelo
menos tinham feito algumas cadeiras). Olhando para trás, fazia todo
o sentido colocar um arquiteto à
frente daquilo. Na sua galáxia, ele
lá arranjava uma arrumação, clara
e distinta, como os seus parágrafos.
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