sexta-feira, 7 de março de 2025

1947-2025 José António Saraiva, o jornalista arquiteto

 1947-2025 José António Saraiva, o jornalista arquiteto

Jornalista e escritor, José António Saraiva era filho de António José Saraiva, ensaísta, historiador e crítico literário, e sobrinho do historiador José Hermano Saraiva

José António Saraiva, diretor do Expresso entre 1983 e 2005, morreu esta quinta-feira em Lisboa Um texto do José António Saraiva topava-se à distância. Bastava olhar- -se para uma página, ver a arrumação dos parágrafos, a dimensão das frases. Havia ali uma mancha gráfica que servia de assinatura. Não sei se a maioria dos leitores comunga desta impressão, nem sei se é a forma mais digna de se começar um obituário. Mas sei que os velhos leitores do Expresso percebem ao que venho. E sei, com uma certeza estritamente pessoal, que o José António saberia do que eu estou a falar. José António Saraiva, que morreu esta quinta-feira em Lisboa, aos 77 anos, foi diretor do Expresso entre 1983 e 2005. Saiu do jornal, na última grande cisão da animada história do Expresso, para fundar o “Sol”, onde há uma semana assinou a sua última crónica. O título foi bem encontrado, ou bem apanhado, como se diz nas redações: “Não é uma despedida”. Acabou por ser a despedida, com uma rapidez rara nas doenças que se costumam dizer prolongadas. Nas primeiras linhas dessa crónica de 28 de fevereiro de 2025, seis dias antes de morrer, o José António dá a justificação perfeita para o primeiro parágrafo deste texto. “Nunca me senti jornalista (...). Como arquiteto senti-me um Deus. Ver um sítio e imaginar para ali uma construção (...), ver um sítio onde antes não havia nada e saber que vai ali ficar por umas dezenas de anos.” Era assim que olhava para uma página em branco. Fosse a página onde assinava a crónica “Política à Portuguesa”, fosse a primeira página, cuja construção obedecia a uma liturgia especial e demorada. A primeira vez que assisti a essa construção, com o José António e o mestre Ribeiro, de volta de uma mesa redonda, em finais de 1989, percebi que estava perante essa liturgia de dois não jornalistas. Um diretor que gostava de ser arquiteto ladeado por um chefe gráfico a falarem uma língua deles. Mais que uma manchete, as notícias ou as fotografias, o que eles gostavam era de imaginar uma construção. Não era fácil ser diretor do Expresso no último ano da década de 80. O Vicente Jorge Silva — amigo de velha data do José António Saraiva — tinha acabado de sair do Expresso em direção à Quinta do Lambert, para fundar o “Público”, levando com ele literalmente metade da redação. Miguel Esteves Cardoso, o mais divertido cronista do Expresso da década de 80, já tinha atravessado para o outro lado do Marquês de Pombal para erguer com Paulo Portas “O Independente”. Entre um semanário que agitava o cavaquismo e a futura construção do Vicente, o Expresso corria perigo de vida.Lembro-me de uma reunião muito tensa, em que felizmente deixaram entrar — ou não deram por nós — os estagiários. Os jornalistas sentiam-se ameaçados pela rapidez e impie dade de “O Independente” e pela frescura do “Público”. O génio do Vicente e o brilhantismo de Paulo Portas faziam de José António Saraiva uma personagem de outra galáxia. Foi ali que ouvi pela primeira vez, naquela espécie de plenário, uma frase que poderia estar esculpida nas paredes do Expresso: “Os outros são lanchas rápidas, o Expresso é um porta-aviões.” Eu tinha 21 anos e aquela frase não me podia satisfazer. Mas quando regressei ao jornal, a convite do Henrique Monteiro em 2009, já tinha tido tempo de sobra para perceber que a frase era verdadeira. Parecendo de outra galáxia, o José António Saraiva sempre percebeu outra máxima absoluta do jornal: o Expresso é uma grande coligação. A frase dá muito mais trabalho do que se pensa, sobretudo ao diretor. Exige gerir no caos, misturar talento e organização, loucura e constância. E conseguir, no meio disso, fazer um jornal influente, respeitado e rigorosamente institucional. As discussões entre ele e os jornalistas mais influentes da redação — por causa de uma notícia ou de um título — podiam ser exasperantes. A mais espantosa a que assisti foi sobre a possibilidade da democracia em Moçambique, com o Henrique Monteiro literalmente à beira do desespero. Aprendi mais nessas discussões do que nos poucos anos que andei pela faculdade. O Expresso era um lugar muito divertido e diverso, onde os jornalistas eram engenheiros, historiadores, advogados, médicos ou economistas (pelo menos tinham feito algumas cadeiras). Olhando para trás, fazia todo o sentido colocar um arquiteto à frente daquilo. Na sua galáxia, ele lá arranjava uma arrumação, clara e distinta, como os seus parágrafos.
 (Ricardo Costa)


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