sábado, 26 de fevereiro de 2022

O poder judicial fascista vai do 8 ao 80 no caso do arresto dos bens da mulher de João Rendeiro

 Concordamos com este artigo de José António Saraiva, antigo director do Expresso

«O Estado tem o direito de julgar e condenar as pessoas que infrinjam as leis; mas não tem o direito de as humilhar!»

A casa onde habita em prisão domiciliária a mulher de João Rendeiro foi invadida por elementos da PJ, que levaram tudo. A casa ficou deserta, como se viu em imagens televisivas.

H á algumas semanas assistimos a um episódio que cobriu de vergonha o Estado Português. A casa onde habita em prisão domiciliária a mulher do ex-banqueiro João Rendeiro, Maria de Jesus Rendeiro, foi invadida por elementos da Unidade Nacional de Combate à Corrupção, da Polícia Judiciária, que levaram tudo: quadros, esculturas, móveis, eletrodomésticos, tapetes, faqueiros, bibelots, etc. A casa ficou deserta, como se viu em imagens televisivas. Até os aparelhos de televisão foram embrulhados e levados de lá. Segundo alguns relatos, só deixaram o fogão, uma mesa e uma cadeira. Espero que não seja verdade, e ao menos tenham deixado também a cama, para a senhora dormir, o frigorífico, para a senhora conservar os alimentos (até porque a prisão domiciliária não lhe permitirá ir ao supermercado), e uma máquina de lavar a roupa, pois as casas atuais já não têm tanque para esse efeito. Mas, falando mais a sério, o facto de terem levado os televisores revela muito sobre o espírito da operação. Impedir uma pessoa que está fechada em casa de ter, ao menos, um ecrã de televisão para aliviar a solidão e entreter o espírito, é um ato de pura maldade. O recheio da casa de Rendeiro foi arrestado com o alegado objetivo de o seu valor contribuir para o pagamento aos lesados do BPP e das dívidas ao Estado. Ora, toda a gente sabe que, salvo alguns casos pontuais – como obras de arte e algum móvel excecionalmente valioso –, o recheio de uma casa, por melhor que seja, quando é vendido, não vale praticamente nada. Sei-o por experiência familiar. Aquilo que ao próprio custou milhares, quando é posto à venda não chega a valer uma centena. O que valerá, por exemplo, um televisor em 2ª mão, por muito bom que seja? Os bens arrestados têm muito pouco valor por todas as razões e por mais uma: porque são encaminhados para armazéns em que ficam a apodrecer durante meses ou anos – e donde saem geralmente em estado deplorável. Mas voltando ao arresto do recheio da casa de Rendeiro, como é que um juiz com um mínimo de humanidade decreta o esvaziamento completo de uma habitação onde vive uma mulher sozinha que não pode sair de lá, e que não tem outro horizonte além daquele espaço? Como é possível? E se for verdade que os polícias só deixaram para a senhora se sentar uma cadeira – nem teve direito a um sofá – isso significa que não pode receber ninguém em casa. Não pode convidar uma amiga para almoçar, jantar ou simplesmente conversar, pois não tem onde a sentar… Será isto razoável? Nesta operação policial, além de maldade, parece ter havido um desejo de vingança. Eram ricos? Viviam faustosamente? Pois agora vão pagá-las! Ora, a Justiça não pode funcionar como vingança. Não está em causa a culpabilidade de Rendeiro, que já foi condenado e se encontra preso na África do Sul em condições que não serão com certeza agradáveis. Nem está em questão a culpabilidade da mulher, que terá sido sua cúmplice nalguns crimes. O que neste episódio me interessou foi a questão humana. Deixarem a uma pessoa que está presa em casa apenas um fogão, uma mesa e uma cadeira só pode ter a intenção de a humilhar. Foi como se lhe dissessem: «Tens de ficar aí os dias inteiros sentada nessa cadeira, porque nem tens um sofá e não podes sair de casa. Não podes fazer nada, porque até os televisores te vamos levar. Estás condenada a ficar sozinha, pois não tens condições para sentar uma visita». Nesta operação, para lá da maldade e do desejo de vingança, houve ainda uma evidente mesquinhez. Apesar de não conhecer João Rendeiro nem a mulher, fiquei incomodado. Aquilo não se faz. Nem a pobres nem a ricos nem a ninguém. O Estado tem o direito de julgar e condenar as pessoas que infrinjam as leis; mas não tem o direito de as humilhar. Nunca fui capaz de bater em alguém deitado no chão. Sempre defendi os que estão em situação de fragilidade. Ora, no caso daquela mulher o juiz agiu impiedosamente de forma gratuita, com a clara intenção de a impedir de viver com um mínimo de condições. Finalmente, estranho não ter ouvido nem lido ninguém pronunciar-se sobre isto. Uns terão receio de o fazer para não dizerem que estão a defender os ricos – como se estes também não tivessem direito à sua dignidade. Outros, não o terão feito por concordância com a medida – pelo tal desejo de vingança em relação aos ricos e poderosos. E outros ainda por indiferença – que na nossa sociedade começa a estar demasiado generalizada.
 P. S. –Quando concluía este texto, iniciava- -se o arresto do recheio de casas de Manuel Pinho. Desconhecendo ainda o que se passou, o que fica aqui escrito vale naturalmente para todas as situações semelhantes.



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