Concordamos com este artigo de José António Saraiva, antigo director do Expresso
«O Estado tem o direito de julgar e condenar as pessoas que infrinjam as leis; mas não tem o direito de as humilhar!»
A casa onde habita em prisão domiciliária a mulher
de João Rendeiro foi invadida por elementos da PJ, que levaram tudo.
A casa ficou deserta, como se viu em imagens televisivas.
H
á algumas semanas assistimos a
um episódio que cobriu de vergonha o Estado Português.
A casa onde habita em prisão domiciliária a mulher do ex-banqueiro João
Rendeiro, Maria de Jesus Rendeiro, foi invadida por elementos da Unidade Nacional de Combate à Corrupção, da Polícia
Judiciária, que levaram tudo: quadros, esculturas, móveis, eletrodomésticos, tapetes, faqueiros, bibelots, etc. A casa ficou deserta, como se viu em imagens televisivas. Até os aparelhos de televisão foram
embrulhados e levados de lá.
Segundo alguns relatos, só deixaram o fogão, uma mesa e uma cadeira. Espero que
não seja verdade, e ao menos tenham deixado também a cama, para a senhora dormir,
o frigorífico, para a senhora conservar os alimentos (até porque a prisão domiciliária não
lhe permitirá ir ao supermercado), e uma
máquina de lavar a roupa, pois as casas atuais
já não têm tanque para esse efeito.
Mas, falando mais a sério, o facto de terem levado os televisores revela muito sobre o espírito da operação. Impedir uma
pessoa que está fechada em casa de ter, ao
menos, um ecrã de televisão para aliviar a
solidão e entreter o espírito, é um ato de
pura maldade.
O recheio da casa de Rendeiro foi arrestado com o alegado objetivo de o seu
valor contribuir para o pagamento aos lesados do BPP e das dívidas ao Estado. Ora,
toda a gente sabe que, salvo alguns casos
pontuais – como obras de arte e algum móvel excecionalmente valioso –, o recheio
de uma casa, por melhor que seja, quando é vendido, não vale praticamente nada.
Sei-o por experiência familiar. Aquilo que
ao próprio custou milhares, quando é posto à venda não chega a valer uma centena.
O que valerá, por exemplo, um televisor
em 2ª mão, por muito bom que seja?
Os bens arrestados têm muito pouco valor
por todas as razões e por mais uma: porque são
encaminhados para armazéns em que ficam
a apodrecer durante meses ou anos – e donde
saem geralmente em estado deplorável.
Mas voltando ao arresto do recheio da
casa de Rendeiro, como é que um juiz
com um mínimo de humanidade decreta o
esvaziamento completo de uma habitação
onde vive uma mulher sozinha que não pode
sair de lá, e que não tem outro horizonte além
daquele espaço? Como é possível?
E se for verdade que os polícias só deixaram para a senhora se sentar uma cadeira – nem teve direito a um sofá – isso
significa que não pode receber ninguém
em casa. Não pode convidar uma amiga
para almoçar, jantar ou simplesmente
conversar, pois não tem onde a sentar…
Será isto razoável?
Nesta operação policial, além de maldade, parece ter havido um desejo de
vingança. Eram ricos? Viviam faustosamente? Pois agora vão pagá-las!
Ora, a Justiça não pode funcionar como
vingança.
Não está em causa a culpabilidade de Rendeiro, que já foi condenado e se encontra
preso na África do Sul em condições que não serão com certeza agradáveis. Nem está
em questão a culpabilidade da mulher, que
terá sido sua cúmplice nalguns crimes.
O que neste episódio me interessou foi
a questão humana.
Deixarem a uma pessoa que está presa
em casa apenas um fogão, uma mesa e
uma cadeira só pode ter a intenção de a humilhar. Foi como se lhe dissessem: «Tens
de ficar aí os dias inteiros sentada nessa
cadeira, porque nem tens um sofá e não
podes sair de casa. Não podes fazer nada,
porque até os televisores te vamos levar.
Estás condenada a ficar sozinha, pois não
tens condições para sentar uma visita».
Nesta operação, para lá da maldade e do
desejo de vingança, houve ainda uma
evidente mesquinhez. Apesar de não conhecer João Rendeiro nem a mulher, fiquei incomodado. Aquilo não se faz. Nem
a pobres nem a ricos nem a ninguém.
O Estado tem o direito de julgar e condenar as pessoas que infrinjam as leis; mas
não tem o direito de as humilhar. Nunca fui capaz de bater em alguém deitado no chão. Sempre defendi os que estão em situação de fragilidade. Ora, no caso
daquela mulher o juiz agiu impiedosamente de forma gratuita, com a clara intenção de a impedir de viver com um mínimo de condições.
Finalmente, estranho não ter ouvido
nem lido ninguém pronunciar-se sobre isto. Uns terão receio de o fazer para
não dizerem que estão a defender os ricos
– como se estes também não tivessem direito à sua dignidade. Outros, não o terão
feito por concordância com a medida –
pelo tal desejo de vingança em relação aos
ricos e poderosos. E outros ainda por indiferença – que na nossa sociedade começa a estar demasiado generalizada.
P. S. –Quando concluía este texto, iniciava-
-se o arresto do recheio de casas de Manuel
Pinho. Desconhecendo ainda o que se passou, o que fica aqui escrito vale naturalmente para todas as situações semelhantes.
E deixaram o "frasco" da mulher ?
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