Resposta ao senhor presidente da Associação de Juízes:
"Nesse mundo fechado e autoritário,
o cidadão visado numa ação penal
já não é um igual, mas um «arguido» cujos argumentos não podem
ser considerados ao mesmo nível
da opinião dos outros, os que operam o sistema. Toda uma cultura
judicial. Toda uma cultura judicial
que encontra, aliás, um interessante paralelo na inacreditável expressão da senhora ministra da justiça
quando fala em «direitos dos justiçáveis»(os que são submetidos à acção da Justiça) – já não falamos de direitos constitucionais de todos os cidadãos, mas de direitos daqueles que
têm problemas com a justiça, que,
como é sabido, não conhece a inocência, nunca se engana e raramente tem dúvidas. Vem de longe, esta
cultura"
«Diz o senhor juiz que lhe entrou «em casa, pela televisão, o arguido Sócrates». A linguagem vulgar não surpreende, confirmando uma certa cultura judiciária que só conhece o mando de um lado e a obediência do outro. Nesse mundo fechado e autoritário, o cidadão visado numa ação penal já não é um igual, mas um «arguido» cujos argumentos não podem ser considerados ao mesmo nível da opinião dos outros, os que operam o sistema. Toda uma cultura judicial. Toda uma cultura judicial que encontra, aliás, um interessante paralelo na inacreditável expressão da senhora ministra da justiça quando fala em «direitos dos justiçáveis» –
A linguagem revela também
um certo ativismo político. Basta
a leitura do primeiro parágrafo
para se notar imediatamente espuma nos lábios e ódio político. O
mesmo ódio que levou o antigo secretário-geral da associação de
juízes a apresentar uma queixa-
-crime contra o governo socialista por gastos excessivos em gabinetes. A queixa nunca teve qualquer fundamento. No final, quase
dez anos depois, dois secretários
de estado foram acusados e absolvidos. Do processo nada resta,
mas a manobra resultou – anos e
anos de notícias de jornais, insinuando desperdícios e gastos
sumptuários que nunca existiram. As «sérias reservas quanto à utilização de dinheiros públicos» nunca passou de uma
impostura para esconder um lamentável exercício de politiquice
e de apoio à direita. Esta queixa
só tem interesse histórico por
marcar a primeira ofensiva na
tentativa de criminalizar as políticas do Governo socialista. Depois vieram as PPP’s (processo
iniciado pelo procurador Ventinhas), depois o caso EDP, depois
o processo Marquês. Bem vistas
as coisas, este artigo inscreve-se
nessa já longa linhagem de intervenção política disfarçada de atividade judicial.
No resto, o artigo recorre à entediante técnica de afirmar que
não está em condições de dar opinião sobre processos judicias, fazendo-o logo a seguir. Como se a
inteligência de quem lê fosse demasiado limitada para perceber
que nega o que está, de facto, a fazer. Na verdade, o senhor juiz expressa publicamente posição sobre um assunto que está em debate num tribunal e que vai ser decidido por um outro juiz, que
gostaríamos que estivesse livre de
todas as pressões, em particular
as da classe. Digamo-lo sem rodeios – o artigo constitui uma
inadmissível pressão corporativa
sobre o tribunal que vai decidir
sobre a abertura de instrução.
Mas deixemos de lado o tom
malcriado do artigo e argumentemos quanto ao essencial. Segundo o Tribunal Constitucional «o
princípio do juiz natural não é
uma regra organizativa: é uma
das garantias constitucionalmente consagradas do arguido». Garantia constitucional que,
de acordo com a lei portuguesa,
se cumpre com um sorteio que
dura uns quantos segundos. Assim sendo, a ausência de sorteio
não é facilitismo, nem erro, nem
irregularidade – é uma violação
de uma garantia constitucional.
Na prática, o sorteio representa a
distinção entre escolha arbitrária
e juiz natural; entre Constituição e abuso; entre poder judicial democrático e poder judiciário autoritário que escolhe os juízes em
função dos visados nos processos.
Este é o primeiro e mais importante ponto em discussão. ...»--Ericeira, 3 de fevereiro de 2022
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