terça-feira, 12 de julho de 2016

América Latina, da ficção à realidade

América Latina, da ficção à realidade
por Miguel Urbano Rodrigues

América Latina, ou Amérique Latine são expressões geográfico-históricas relativamente recentes. 

Essas palavras foram utilizadas pela primeira vez em 1836 por um francês, Michel Chevalier, e vulgarizadas por Napoleão III quando invadiu e ocupou o México em 1861. O objetivo do imperador foi excluir os povos da América que falavam inglês. 

Mas a expressão é enganadora. Com uma superfície de 21.070.000 km2, e uma população de aproximadamente 620 milhões, a América Latina é um conjunto heterogéneo de países. 

De comum entre eles somente falarem idiomas latinos – apenas oficiais em alguns – e terem sido colonizados e espoliados por potências europeias, e submetidos, a partir da primeira guerra mundial, à dominação imperial dos Estados Unidos.
DIVERSIDADE 

A composição étnica desses países é extremamente diversificada. 

No Haiti (27.000 km2 e 9 milhões de habitantes), em Cuba (110.000 km2 e 11.300.000 habitantes), em Porto Rico (8.500 km2 e 4.000.000 de habitantes) e na República Dominicana (48.000 km2 e 10.000.000 de habitantes) os povos autóctones foram totalmente exterminados. O Haiti é hoje uns pais de afro-haitianos. No Brasil (8.500.000 km2 e 202.000.000 de habitantes) os ameríndios são residuais (menos de 0,5%). A população atual descende de europeus e africanos e, em percentagem mínima, de asiáticos. Na Argentina (2.792.000 km2 e 43.000.000 de habitantes) e no Uruguai (176.000 km2 e 3.500.000 habitantes) a quase totalidade da população é hoje de origem europeia. 

A diversidade de critérios adotados nos censos da população retira credibilidade às estatísticas relativas à composição étnica. 

Admite-se que no México (1.964.000 km2) 12 dos 120.000.000 de habitantes são índios, dos quais uma elevada percentagem se expressa ainda em idiomas anteriores à conquista espanhola. No Peru (1.285.000 km2 e 31.000.000 de habitantes) e na Bolívia (1.09. 000 km2 e 11.000.000 de habitantes), o quéchua e o aimará, línguas do Incário, são oficiais, ao lado do espanhol. No Equador (243.000 km2 e 16.000.000 de habitantes) a maioria dos índios mantêm como língua materna o quéchua. 

No Paraguai (406.000 km2 e quase 7.000.000 de habitantes), o guarani é falado pela maioria da população, embora esta descenda hoje sobretudo de emigrantes europeus. A chacina foi tamanha durante a guerra genocida contra a Triple Aliança (Brasil, Argentina e o Uruguai), que a poligamia foi autorizada porque quatro quintos dos homens morreram durante o conflito, incentivado pela Inglaterra. 

No Chile (756.000 km2 e 18.000.000 de habitantes), os mapuches, descendentes dos antigos araucanos, são aproximadamente 1.500.000. 

Na Colômbia (1.140.000 km2 e 48.000.000 de habitantes) e na Venezuela (915.000 km2 e 30.000.000 de habitantes) os ameríndios são pouco numerosos, mas a miscigenação foi intensa. No primeiro desses países existe uma importante minoria de afro-colombianos (quase 5 milhões). 

Na Guatemala (109.000 km2 e 16.000.000 de habitantes) a maioria da população é ameríndia, descendente dos antigos maias, Nas Honduras (110.000 km2 e 8.700.000 habitantes; na Nicarágua (148.000 km2 e 5.000.000 de habitantes); em El Salvador (21.500 km2 e 6.500.000 de habitantes); e no Panamá (78.000 km2 e 3.000.000 de habitantes, a maioria é mestiça, mas a percentagem de ameríndios pequena. Na Costa Rica (51.000 km2 e 5.000.000 de habitantes) a maioria tem aspeto europeu, mas isso resultou do genes ibérico ter prevalecido sobre o dos autóctones, porque a miscigenação foi intensa. 

A quase totalidade da população das Antilhas Francesas (2.835 km2 e 850.000 habitantes) e da Guiana Francesa (83.000 km2 e 250.000 habitantes) é de origem africana. 

A MESTIÇAGEM E AS INTERAÇÕES CULTURAIS 

Dois franceses, Carmen Bernand e Serge Gruzinski, escreveram a obra mais importante que conheço sobre os processos de miscigenação na América [1] . 

Esses historiadores analisam exaustivamente os processos de mestiçagem no Hemisfério, que diferiram muito consoante as regiões. 

Chamam nomeadamente a atenção para uma realidade pouco estudada. No México e no Peru, os conquistadores espanhóis massacraram sistematicamente as elites que detinham o poder e o saber. Mas os capitães peninsulares pouparam as mulheres das classes altas de Tenochtitlan e do Incário e em muitos casos casaram com elas. 

Os filhos dessas uniões foram educados como espanhóis e muitos deles destacaram-se como pioneiros de uma nova cultura que fundia os valores da asteca, da inca e da europeia. 

É conhecido o caso de Garcilaso de la Vega, autor de uma obra clássica da historiografia espanhola. Sua mãe era uma princesa inca e seu pai um capitão espanhol. 

Martin, o filho de Hernan Cortês e de Dona Marina, uma asteca de origem nobre, também se distinguiu pela sua intervenção na História. 

O México gerou um notável historiador mestiço, Fernando Alva Ixtlixochitl, descendente dos reis de Tenochtitlan e Texcoco. 

A partir de meados do século XVI o nauhatl – a língua mais falada no planalto central mexicano – passou a ser escrito no alfabeto latino. As elites indígenas tiveram acesso à cultura do Renascimento no século de ouro espanhol. 

No México surgiu uma geração de escritores, músicos e pintores mestiços cujas obras, pela criatividade e imaginação, expressavam uma nova cultura, síntese e fusão das autóctones e da introduzida pelos conquistadores. E isso ocorreu também no Peru, berço de outra das grandes civilizações do Novo Mundo, a dos incas. 

Os historiadores dedicaram escassa atenção às consequências sociais, económicas e politicas da tragédia que do Canadá à Patagónia resultou das doenças vindas da Europa. 

No México, um século após a conquista, a população do país era aproximadamente de um milhão de habitantes, um décimo da existente quando Cortés entrou em Tenochtitlan. No Peru, na Bolívia e no Equador, o despovoamento foi similar porque os índios não tinham defesas contra epidemias como a da varíola e a da gripe. 

Transcorreu quase um quarto de século desde a publicação do importante livro de Carmen Bernand e Serge Gruzinski. Estudos genéticos recentes encaram a problemática das miscigenações num período curto e sob uma perspetiva mais cultural do que étnica. 

LUZ E SOMBRAS 

No início do século XIX as lutas pela independência foram sobretudo lideradas por crioulos de grandes famílias. Miranda, Bolivar, San Martin, Sucre, Santander, O'Higgins, José Artigas descendiam de europeus. 

Mas no México as insurreições armadas foram dirigidas por dois sacerdotes, Miguel Hidalgo e José Maria Morelos, este um mestiço. 

O sonho de Bolivar – uma América Latina unida, democrática, progressista e verdadeiramente independente – foi rapidamente desmentido pelo rumo da História. As oligarquias que assumiram o poder governaram despoticamente em benefício da classe dominante, descendente de europeus. No Brasil, o príncipe D. Pedro, filho de D João VI, proclamou-se imperador e a monarquia durou até 1889. 

A ditadura foi, com poucas exceções, a forma de governo mais comum nas repúblicas latino-americanas. 

O recurso permanente a empréstimos, resultantes do desgoverno e da estagnação económica, foi determinante para o endividamento galopante desses países. A Inglaterra foi a potência dominante na Região até final da I Guerra Mundial. Na Argentina e no Chile a sua influência económica e política foi hegemónica. A partir de 1920, o imperialismo norte-americano dominou o Continente e multiplicou as intervenções militares em países que não se submetiam às suas exigências (México, Nicarágua, Haiti, República Dominicana, Panamá, Granada, entre outros). 

DA REVOLUÇÃO CUBANA À CRISE DO PROGRESSISMO 

A vitória da Revolução Cubana em 1958 gerou uma grande esperança na América Latina. A década de 60 ficou assinalada pela convicção de que era possível tomar o poder através da luta armada e implantar o socialismo em países de capitalismo dependente, semi colonizados pelos EUA. Na Venezuela, no Peru, na Argentina, na Guatemala, na Nicarágua, em El Salvador organizações revolucionárias pretensamente marxistas, inspiradas pela experiência de Cuba, recorreram à guerrilha rural, como estratégia de combate ao imperialismo. A trágica morte do Che na Bolívia sepultou duramente essa ilusão romântica. As guerrilhas foram derrotadas militarmente na maioria desses países. Em El Salvador um compromisso patrocinado pelos EUA pós fim ao conflito armado. Na Nicarágua a Frente Sandinista de Libertação Nacional chegou ao poder em 1979, derrubando a ditadura de Somoza, mas perdeu-o em 1990 pela via eleitoral. 

A grande e inesperada exceção teve a Colômbia por cenário. A sobrevivência há mais de meio século das Forças Armadas Revolucionarias da Colombia-Exército do Povo demonstrou que em condições históricas, politicas e económicas excecionais era possível desencadear e manter a luta armada contra o Exército mais numeroso e bem armado da América Latina. As FARC-EP são aliás uma guerrilha-partido que se assume como marxista-leninista. 

Com a derrota norte-americana no Vietnam e da França na Argélia acentuou-se o desprestígio do imperialismo em escala mundial. A solidariedade da URSS aos movimentos de Libertação na África e na Ásia afetou também duramente a estratégia de dominação norte-americana. 

A eleição de Salvador Allende no Chile, o advento no Peru e na Bolívia dos governos progressistas dos generais Velasco Alvarado e Juan José Torres e a resistência vitoriosa da Revolução Cubana renovaram a esperança nos países a sul do Rio Bravo. 

Mas o imperialismo norte-americano, que alcançara uma grande vitória no Brasil com o golpe militar de 1964, que derrubou o presidente João Goulart, retomou a iniciativa na América Latina. Washington contribuiu decisivamente para a preparação e o êxito da contrarrevolução chilena; Kissinger confirmou-o nas suas memórias. 

No resto do Hemisfério, a derrota das guerrilhas rurais e urbanas permitiu a consolidação de uma série de ditaduras, no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, na Bolívia, nas Honduras, no Haiti, na Guatemala, na Nicarágua. 

Os EUA apoiaram esses regimes que se submeteram docilmente às exigências do Banco Mundial e do FMI, adoptando políticas neoliberais ortodoxas, inspiradas no modelo chileno imposto por Pinochet. 

O resultado foi desastroso. Para as economias latino-americanas os anos 80 foram "a década perdida". 

Não há em qualquer país da Região com condições subjetivas para um choque frontal dos povos com o imperialismo estadounidense. 

Mas o aumento torrencial da contestação social ao neoliberalismo do México à Argentina alarmou Washington. Gradualmente retirou o seu apoio às ditaduras, consciente de que esses regimes não favoreciam já os seus interesses. Mudou de tática. 

No Brasil e no Chile foram eleitos presidentes que condenaram os regimes militares. Na Argentina, o povo insurgiu-se contra a política de Menem, o país entrou em bancarrota e, após prolongada crise, Nestor Kirchner sobiu à presidência e iniciou uma política populista com um discurso anti neoliberal. 

Mas foi na Venezuela que, inesperadamente, um militar, o coronel Hugo Chávez, venceu com ampla maioria as eleições em 1999. Derrotou um golpe de estado em 2002 (apoiado e financiado pelos EUA) e um lock-out contrarrevolucionario, venceu sucessivas eleições e morreu como presidente em 2013. 

Inspirado em Bolivar, desenvolveu uma política que gradualmente o confrontou com os EUA, sobretudo a partir do momento em que declarou a opção socialista da Revolução Bolivariana. 

Mas apesar da nacionalização real do petróleo – fonte principal do PIB – e da reforma agrária, a Venezuela continuou a ser uns pais capitalista com o sector privado a controlar áreas chaves da economia e dos serviços. 

A ideologia do regime, o chamado Socialismo do século XXI, foi mais um slogan do que uma realidade, até porque o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) é uma organização heterogénea, distanciada do marxismo. 

Nicolas Maduro, o atual presidente, carece do carisma de Chávez. A oposição venceu as eleições legislativas, conta com ampla maioria no parlamento, e a situação económica degrada-se a cada semana. O futuro da Revolução Bolivariana é muito preocupante. 

Dificilmente o regime progressista da Bolívia – que se caracteriza por contradições complexas – poderia sobreviver a um regresso ao poder da direita em Caracas. 

Os Estados Unidos encontram-se no momento na ofensiva em toda a América Latina. James Petras tem chamado insistentemente a atenção para essa realidade, criticando o otimismo irresponsável de muitos intelectuais progressistas. 

O Brasil atravessa uma crise muito profunda de desfecho imprevisível. Na Argentina, Macri, o sucessor de Cristina Kirchner, executa uma política de direita de submissão total aos Estados Unidos. 

Washington renunciou aos golpes de estado tradicionais, promovidos por militares. A tática agora é outra. Obama – o presidente dos EUA mais perigoso para a humanidade das últimas décadas – incentiva e financia golpes institucionais através dos parlamentos para afastar presidentes incómodos. 

Isso aconteceu nas Honduras e no Paraguai. 

As próprias FARC-EP que desafiam há 60 anos numa luta épica, a oligarquia colombiana, tutelada pelo imperialismo americano, enfrentam hoje problemas que suscitam legitimas interrogações quanto ao desfecho dos Diálogos de Paz com o governo de Juan Manuel Santos. O Acordo de Cessar fogo foi assinado por ambas as partes. Mas será viável na prática a chamada "reconciliação" nos termos em que foi discutida, com o aval do secretariado do Estado-Maior Central da organização revolucionária? Mas seja qual for o desfecho do processo de paz, o combate épico das FARC-EP será recordado como exemplo maravilhoso da eterna luta do homem pela liberdade. 

Cuba é hoje o último baluarte revolucionário que detém o poder na América Latina. Mas o restabelecimento de relações diplomáticas com os EUA ao nível de embaixadores justifica apreensões. O bloqueio persiste, assim como a lei do ajuste cubano, e a entrada de capitais americanos no país e de centenas de milhares de turistas é encarada com compreensível temor por muitos dirigentes do Partido, tal como as medidas mercantis aprovadas pelo último congresso do PC de Cuba. 

Não exagera o Partido Comunista do México num documento do seu Comité Central datado de Fevereiro p.p. ao afirmar ( http://www.odiario.info/america-crise-do-capitalismo-crise-do/ ) que na América Latina "temos um panorama no qual a crise do progressismo favorece a reinstalação da contrarrevolução e, além disso, em que o progressismo, auxiliado por partidos comunistas de prestígio, está à condenar a crítica revolucionária". 

Os Acordos de Havana, assinados pelo comandante chefe das FARC e pelo presidente da Colômbia são preocupantes. Significativamente foram festejados pela direita na Europa e na América Latina. 

Gostaria de ser otimista, mas a situação existente na América Latrina, impõe-me o dever de ser realista. 

Vila Nova de Gaia, Julho de 2016 (resistir-info)

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