Marcelo Rebelo de Sousa manifestou-se
“feliz” pelas acusações deduzidas pelo
Ministério Público contra três juízes de
tribunais superiores e um presidente de
um clube de futebol. A felicidade presidencial resulta de ver o sistema judicial
a não parar à porta de corporações nem
de poderes. Compreende-se. Mas ao
Presidente da República exige-se mais
do que esse júbilo. Exige-se que dê eco
da preocupação social face a traços crescentemente
marcantes do sistema judicial que o degradam enquanto poder de um Estado de direito democrático.
O pior que podemos fazer diante da degradação
da imagem do sistema judiciário
trazida pelas acusações do processo Lex é repetir a ladainha costumeira de que são casos isolados
e de que as maçãs podres não
contaminam as outras. Ou os responsáveis políticos e judiciais têm
agora a coragem de reconfigurar
a cultura instalada no sistema judiciário e de ajustá-la às exigências de transparência próprias de
uma democracia, ou a degradação
agravar-se-á arrastando na degradação a própria democracia.
A judicatura transitou, sem sobressaltos de maior, de um figurino autoritário e opaco, adequado
à sua inserção no Estado Novo,
para os tempos da democracia.
A cultura de opacidade manteve-se
no essencial, blindada por uma
confusão perversa entre independência dos tribunais e ausência de prestação de contas à democracia.
Num tempo em que todos os poderes são escrutinados por mecanismos a si exteriores, continua a
prevalecer nos tribunais uma cultura de fechamento à sombra da qual é fácil abrigarem-se práticas
de desvio aos ditames do Estado de direito e até da
simples legalidade. O processo Lex e o que se fica a
saber sobre o funcionamento do Tribunal da Relação
de Lisboa são a expressão acabada disso mesmo.
A transparência do funcionamento do sistema judiciário é uma exigência de primeira grandeza num
país democrático. Prestar contas à democracia é uma
regra essencial de todos os “branches of ment”. É uma questão de princípio e é uma forma – a melhor forma – de prevenir a instalação de
poderes fácticos no interior do sistema, que ditam
as regras do jogo de maneira informal, em favor de
alguns e não em respeito pelo interesse público.
Ora, essa prestação de contas em nada belisca o
imperativo de escrupulosa autonomia de julgamento,
de decisão e de fundamentação das decisões. A independência dos tribunais é isso, e as condições para
que isso seja plenamente garantido. Qualquer interferência de poderes públicos ou privados nessa esfera
de autonomia repugna ao Estado de direito democrático. Mas uma coisa é essa garantia, outra é a consideração do sistema judiciário como uma espécie de
caixa negra, um domínio deixado
a uma autogovernação imune ao
exterior. Os juízes que, perante
as acusações que recaíram sobre
seus pares, vieram exigir a suspensão imediata de funções dos
acusados perceberam bem que
quando a autogovernação pode
tornar-se em desgovernação e
que só a prestação de contas o
pode evitar.
A sociedade portuguesa está,
e bem, a deixar de ser complacente com esse autogoverno que
permite que outros poderes que
não o da Lei conduzam o sistema judiciário. E quando ao benefício ilícito dos rostos desses
poderes se junta o favorecimento de quem, fora do sistema, tem
posições sociais e económicas de
domínio, é a descredibilização irremediável do judiciário que se torna um facto.
A democracia tem o direito de exigir toda a clareza no perfil de admissão à profissão de juiz ou de
magistrado. Tem o direito de conhecer os critérios
de promoção e de despromoção desses profissionais da Justiça e o direito de averiguar se, nos casos
concretos, esses critérios se concretizam também.
E tem o direito de exigir dos responsáveis políticos
que as proclamações rotineiras sobre o combate à
corrupção deem lugar a compromissos efetivos com
a dotação de meios de investigação a quem pode
realmente combatê-la, sem instintos de proteção
corporativa.
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