quinta-feira, 24 de setembro de 2020

O sistema judiciário é opaco funciona num mundo à parte e não presta contas à Democracia

 Marcelo Rebelo de Sousa manifestou-se “feliz” pelas acusações deduzidas pelo Ministério Público contra três juízes de tribunais superiores e um presidente de um clube de futebol. A felicidade presidencial resulta de ver o sistema judicial a não parar à porta de corporações nem de poderes. Compreende-se. Mas ao Presidente da República exige-se mais do que esse júbilo. Exige-se que dê eco da preocupação social face a traços crescentemente marcantes do sistema judicial que o degradam enquanto poder de um Estado de direito democrático. 
 O pior que podemos fazer diante da degradação da imagem do sistema judiciário trazida pelas acusações do processo Lex é repetir a ladainha costumeira de que são casos isolados e de que as maçãs podres não contaminam as outras. Ou os responsáveis políticos e judiciais têm agora a coragem de reconfigurar a cultura instalada no sistema judiciário e de ajustá-la às exigências de transparência próprias de uma democracia, ou a degradação agravar-se-á arrastando na degradação a própria democracia. 
 A judicatura transitou, sem sobressaltos de maior, de um figurino autoritário e opaco, adequado à sua inserção no Estado Novo, para os tempos da democracia. A cultura de opacidade manteve-se no essencial, blindada por uma confusão perversa entre independência dos tribunais e ausência de prestação de contas à democracia. Num tempo em que todos os poderes são escrutinados por mecanismos a si exteriores, continua a prevalecer nos tribunais uma cultura de fechamento à sombra da qual é fácil abrigarem-se práticas de desvio aos ditames do Estado de direito e até da simples legalidade. O processo Lex e o que se fica a saber sobre o funcionamento do Tribunal da Relação de Lisboa são a expressão acabada disso mesmo.
 A transparência do funcionamento do sistema judiciário é uma exigência de primeira grandeza num país democrático. Prestar contas à democracia é uma regra essencial de todos os “branches of ment”. É uma questão de princípio e é uma forma – a melhor forma – de prevenir a instalação de poderes fácticos no interior do sistema, que ditam as regras do jogo de maneira informal, em favor de alguns e não em respeito pelo interesse público. 
 Ora, essa prestação de contas em nada belisca o imperativo de escrupulosa autonomia de julgamento, de decisão e de fundamentação das decisões. A independência dos tribunais é isso, e as condições para que isso seja plenamente garantido. Qualquer interferência de poderes públicos ou privados nessa esfera de autonomia repugna ao Estado de direito democrático. Mas uma coisa é essa garantia, outra é a consideração do sistema judiciário como uma espécie de caixa negra, um domínio deixado a uma autogovernação imune ao exterior. Os juízes que, perante as acusações que recaíram sobre seus pares, vieram exigir a suspensão imediata de funções dos acusados perceberam bem que quando a autogovernação pode tornar-se em desgovernação e que só a prestação de contas o pode evitar. 
 A sociedade portuguesa está, e bem, a deixar de ser complacente com esse autogoverno que permite que outros poderes que não o da Lei conduzam o sistema judiciário. E quando ao benefício ilícito dos rostos desses poderes se junta o favorecimento de quem, fora do sistema, tem posições sociais e económicas de domínio, é a descredibilização irremediável do judiciário que se torna um facto.  
 A democracia tem o direito de exigir toda a clareza no perfil de admissão à profissão de juiz ou de magistrado. Tem o direito de conhecer os critérios de promoção e de despromoção desses profissionais da Justiça e o direito de averiguar se, nos casos concretos, esses critérios se concretizam também. E tem o direito de exigir dos responsáveis políticos que as proclamações rotineiras sobre o combate à corrupção deem lugar a compromissos efetivos com a dotação de meios de investigação a quem pode realmente combatê-la, sem instintos de proteção corporativa. 


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