Rebeldia com inteligência
Os juízes, como quaisquer
outros responsáveis
públicos — incluindo os
políticos e os jornalistas —
não estão acima do
julgamento dos cidadãos,
por mais cumplicidades
corporativas ou por mais
anacronismos
institucionais e rituais com
que, eventualmente, se considerem
protegidos.
A sentença do Tribunal da Relação
de Lisboa que me condenou é, claramente,
grotesca. E continuo e continuarei a pensar e a
dizer o mesmo que escrevi sobre as atitudes
políticas de Silva Resende, por mais sentenças
condenatórias que os novos inquisidores
entendam proferir.”
Vicente Jorge Silva (V.J.S.) terminava assim,
em 1 de Dezembro de 1995, o editorial no
PÚBLICO em que respondia à condenação
de que fora objecto pelo Tribunal da Relação
de Lisboa em virtude do artigo que escrevera
criticando a putativa candidatura, pelo CDS,
então dirigido por Manuel Monteiro, do
advogado, jornalista e dirigente desportivo
português Antero Silva Resende à Câmara
Municipal de Lisboa.
Esse artigo tinha sido publicado no
PÚBLICO dois anos antes, acompanhado
pela transcrição de diversos excertos de
artigos do próprio Silva Resende e nele V.J.S.
Afirmara a dado passo: “Será inverosímil e
grotesco — mas é verdadeiro. Nem nas arcas
mais arqueológicas e bafientas do
salazarismo seria possível desencantar um
candidato ideologicamente mais grotesco e
boçal, uma mistura tão inacreditável de
reaccionarismo alarve, sacristanismo
fascista e anti-semitismo ordinário.” O visado não gostara do artigo e
queixara-se criminalmente do director do
PÚBLICO. O tribunal de 1.ª instância
absolveu-o por entender que V.J.S.
pretendera “dar a conhecer aos seus leitores
e ao público em geral a sua opinião sobre os
ideais políticos defendidos pelo Dr. Silva
Resende, considerando estes reaccionários,
fascistas e anti-semitas” e, embora as
expressões utilizadas para qualificar tais
ideias fossem “incisivas, deselegantes,
ferozes e até brutais”, o director do PÚBLICO
tinha o direito constitucionalmente
protegido de manifestar a sua opinião.
Antero Silva Resende recorreu para o
Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), que
condenou V.J.S. numa multa e numa
indemnização ao ofendido, por considerar
que Vicente Jorge Silva tinha “admitido” que
as expressões referidas “podiam dar a
imagem de que Silva Resende era pessoa‘alarve’, ‘grotesca’, ‘boçal’ e ‘beata’,
denegrindo assim a imagem pessoal deste, e,
apesar disso, escrevera estas expressões
aceitando este resultado como possível”,
sabendo “ser proibida por lei esta conduta”.
O editorial de resposta do director do
PÚBLICO começava assim: “Ao dar razão a
Silva Resende contra o director do PÚBLICO,
a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
acaba de proferir uma sentença de cariz
escandalosamente político e não jurídico,
pondo em causa os princípios de liberdade
de opinião, expressão e informação
consagrados pela Constituição da República e
constituídos como norma no Estado de
direito democrático em que vivemos”.
Sobre este editorial, a Associação Sindical
dos Juízes Portugueses publicou um extenso
comunicado, afirmando, entre muitas outras
coisas notáveis, que o mesmo era “o habitual
muro de lamentações de quem, condenado,
faz o raciocínio futebolístico de que a culpa é,
toda, do juiz”, que “o sr. director arvora-se
em julgador de si próprio. Só ele pode apreciar os seus actos
e os actos dos outros,
só ele conhece a
dimensão do que diz
ou do que dizem,
como se estivesse
para além do juízo e
da opinião dos
outros”, ou, ainda,
que “o sr. director é
um Rambo demodé
de fim de século”...
Não era, como se
provou: V.J.S. levou o
caso ao Tribunal
Europeu dos Direitos
Humanos (TEDH) e
aí, em 28/9/2000,
numa decisão que
fez escola e ainda
hoje é citada nos
tribunais
portugueses e da Europa, Portugal foi condenado, pela 1.ª vez,
por ter violado a liberdade de expressão que
se obrigara a respeitar. O TEDH reconheceu
que as expressões em causa seriam
polémicas, mas não configuravam um
ataque pessoal gratuito, porque sobre as
mesmas V.J.S. dera uma explicação objectiva
ao publicar, ao lado, excertos dos artigos de
Silva Resende. Para o TEDH, como para VJS,
“a invectiva política extravasa, por vezes,
para o plano pessoal: são estes os riscos do
jogo político e do debate livre de ideias,
garantes de uma sociedade democrática”.
Vicente Jorge Silva aliava a rebeldia à
inteligência e acrescentava-lhes uma
esfuziante humanidade.
Francisco Teixeira da Mota ,Escrever Direito
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