sábado, 15 de janeiro de 2022

«A justiça jamais se reformará a ela própria» escreve António Barreto

 

Justiça e eleições

 É um exagero falar de “guerra civil” na justiça portuguesa. Mas parece que, na história recente do país, vivemos o momento de maior conflitualidade dentro da justiça. Já conhecemos implicações sérias nas relações entre a justiça e a política, entre a justiça e o Governo, entre a justiça e os grandes grupos económicos. Trata-se de relações complexas, feitas ora de aversão ora de cumplicidade. Neste universo controverso, sempre houve de tudo. Ou sempre se suspeitou de tudo. Dos mais baixos interesses materiais e dos mais elevados interesses políticos. De interferências cristãs ou maçónicas. De favores prestados a partidos ou a clubes de futebol. A todo este rol de desconfianças, muitas delas confirmadas por “casos” recentes de corrupção comprovada e de demissões abruptas, vem agora acrescentar-se a terrível sensação de que a crise e as dificuldades da justiça se devem à guerra entre dois magistrados! Já tivemos justiça de esquerda e justiça de direita. Já tivemos justiça dos pobres e justiça dos ricos. Já tivemos justiça dos poderosos e justiça do povo. Que temos agora? A maior parte da justiça portuguesa (e a grande maioria dos magistrados) é relativamente imune aos piores interesses. Sabe-se que os tribunais resolvem por ano mais de 500.000 processos. Como sabemos que a média de duração dos processos, apesar de elevada, não é excessiva. As comparações internacionais não sugerem que a justiça portuguesa seja tão má quanto se diz. A maior parte da justiça portuguesa, honra seja feita aos magistrados e aos oficiais, trabalha bem e merece respeito. O problema é quando há arguidos importantes e advogados reputados. Sempre que há ricos e poderosos, há caso. Há questão quando há políticos, deputados, ministros, secretários de Estado, empresas, bancos, comerciantes, gestores públicos, construtores de obras públicas, dirigentes de futebol e negociantes de desportistas. E como, ainda por cima, muitas destas personalidades estão ligadas entre si, tudo fica mais difícil. Os comportamentos dos magistrados e dos advogados, nestes casos, tornam-se estranhos. As chicanas burocráticas multiplicam-se. As dificuldades processuais crescem como metástases. Dezenas de políticos e empresários esperam anos por julgamento, mais apropriadamente seria dizer que esperam por prescrição. Se há países em que seja possível dizer que existem duas justiças, a dos poderosos e a dos cidadãos, Portugal é certamente um deles. Veja-se a lista de acusados, arguidos e investigados. Primeiro-ministro, ministros, secretários de Estado, banqueiros, presidentes de institutos, chefes de polícia, juízes da primeira instância, juízes da Relação, presidentes de clubes de futebol… Haverá, na Europa, muitos países em que seja possível estabelecer uma lista como esta? Felizmente que ainda temos imprensa livre que se dedica a escrutinar um dos mais herméticos labirintos da sociedade portuguesa. É, aliás, curioso ver como o segredo de justiça se transformou num mecanismo de defesa dos magistrados e dos poderosos. As fugas de informação e as violações do segredo de justiça estão entre os factores mais referidos como deficiências da justiça. O problema é que fugas e violações têm uma origem. E autores. Sempre foi claro que não há fugas nem violações sem responsabilidade dos agentes de justiça. Dos magistrados. Dos oficiais de justiça. Dos advogados. Mas o mais certo é que se trate da responsabilidade dos magistrados. Ou porque assim entendem e têm algo a ganhar com isso. Ou porque não tomaram as precauções necessárias para evitar as fugas e as violações. São responsáveis por acção ou por omissão. Por vontade própria ou por incompetência. 
A campanha eleitoral revela bem o desinteresse dos partidos pela justiça. Em relação ao provavelmente mais complexo dos problemas, o pior de Portugal, o mais grave do país… nenhum dos candidatos mostrou real preocupação, nenhum dos partidos traçou caminhos. E todos sabem que, apesar da independência dos tribunais, mau grado a autonomia dos magistrados, não há qualquer solução ou melhoria sem legislação, sem revisão dos códigos e dos processos, sem Governo e sem Parlamento. A covardia dos políticos portugueses perante a justiça, assim como a hipocrisia do alegado respeito pela independência dos magistrados, são dois dos piores defeitos da nossa vida colectiva. Sabemos que é necessário respeitar a independência dos magistrados em tribunal. E a autonomia dos procuradores em processo. E a seriedade de todos em julgamento. Mas a justiça depende do soberano. Do povo. Não fica bem aos magistrados invocar a sua independência para justificar a sua autogestão ou disfarçar as suas culpas. Não fica bem ao político e ao legislador invocar a independência dos tribunais como desculpa para a sua inacção. Por isso tudo, teria sido importante que a campanha eleitoral se tivesse debruçado seriamente sobre a justiça e os seus defeitos. Os partidos deveriam ter agido sem medo de invadir territórios alheios e sem receio de serem acusados de ataque à independência dos magistrados. A justiça jamais se reformará a ela própria. Ainda por cima, sabendo nós que os magistrados estão praticamente em guerra. Será que os responsáveis políticos, os dirigentes do Estado, os principais magistrados não percebem, não sentem, não se dão conta do que se está a fazer ao país e à população? Com esta demonstração de incompetência, de covardia, de partidarismo e de parcialidade, está a causar-se um dano irreversível, perene ou de longa duração ao estado moral da população, à confiança do povo na justiça e nas instituições. Será que não percebem que a população perde a confiança, perde o sentido moral da vida colectiva, perde a dimensão ética da vida política? Já nos interrogámos sobre as razões pelas quais a justiça portuguesa perde tantos recursos nos tribunais europeus? E os motivos pelos quais a justiça portuguesa perde tantos processos internacionais, designadamente europeus, quando estão em causa a liberdade de expressão e a liberdade da imprensa? É pena que assim seja. A justiça é talvez o mais poderoso factor de liberdade. A mais importante garantia de liberdade. A mais eficaz defesa da liberdade. Um tribunal é tão importante quanto uma urna de voto. Ou uma palavra impressa. Não cuidar da justiça é não cuidar da liberdade.




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