Justiça e eleições
É
um exagero falar de
“guerra civil” na
justiça portuguesa.
Mas parece que, na
história recente do
país, vivemos o
momento de maior conflitualidade
dentro da justiça. Já conhecemos
implicações sérias nas relações
entre a justiça e a política, entre a
justiça e o Governo, entre a justiça
e os grandes grupos económicos.
Trata-se de relações complexas,
feitas ora de aversão ora de
cumplicidade. Neste universo
controverso, sempre houve de
tudo. Ou sempre se suspeitou de
tudo. Dos mais baixos interesses
materiais e dos mais elevados
interesses políticos. De
interferências cristãs ou
maçónicas. De favores prestados a
partidos ou a clubes de futebol.
A todo este rol de desconfianças,
muitas delas confirmadas por
“casos” recentes de corrupção
comprovada e de demissões
abruptas, vem agora
acrescentar-se a terrível sensação
de que a crise e as dificuldades da
justiça se devem à guerra entre
dois magistrados! Já tivemos
justiça de esquerda e justiça de
direita. Já tivemos justiça dos
pobres e justiça dos ricos. Já
tivemos justiça dos poderosos e
justiça do povo. Que temos agora?
A maior parte da justiça
portuguesa (e a grande maioria
dos magistrados) é relativamente
imune aos piores interesses.
Sabe-se que os tribunais resolvem
por ano mais de 500.000
processos. Como sabemos que a
média de duração dos processos,
apesar de elevada, não é excessiva.
As comparações internacionais
não sugerem que a justiça
portuguesa seja tão má quanto se
diz. A maior parte da justiça
portuguesa, honra seja feita aos
magistrados e aos oficiais, trabalha
bem e merece respeito.
O problema é quando há
arguidos importantes e advogados
reputados. Sempre que há ricos e
poderosos, há caso. Há questão
quando há políticos, deputados,
ministros, secretários de Estado,
empresas, bancos, comerciantes,
gestores públicos, construtores de
obras públicas, dirigentes de
futebol e negociantes de
desportistas. E como, ainda por
cima, muitas destas
personalidades estão ligadas entre
si, tudo fica mais difícil. Os
comportamentos dos magistrados
e dos advogados, nestes casos,
tornam-se estranhos. As chicanas
burocráticas multiplicam-se. As dificuldades processuais crescem
como metástases. Dezenas de
políticos e empresários esperam
anos por julgamento, mais
apropriadamente seria dizer que
esperam por prescrição. Se há
países em que seja possível dizer
que existem duas justiças, a dos
poderosos e a dos cidadãos,
Portugal é certamente um deles.
Veja-se a lista de acusados,
arguidos e investigados.
Primeiro-ministro, ministros,
secretários de Estado, banqueiros,
presidentes de institutos, chefes
de polícia, juízes da primeira
instância, juízes da Relação,
presidentes de clubes de futebol…
Haverá, na Europa, muitos países
em que seja possível estabelecer
uma lista como esta? Felizmente
que ainda temos imprensa livre
que se dedica a escrutinar um dos
mais herméticos labirintos da
sociedade portuguesa.
É, aliás, curioso ver como o
segredo de justiça se transformou
num mecanismo de defesa dos
magistrados e dos poderosos. As
fugas de informação e as violações
do segredo de justiça estão entre
os factores mais referidos como
deficiências da justiça. O problema
é que fugas e violações têm uma
origem. E autores. Sempre foi
claro que não há fugas nem
violações sem responsabilidade
dos agentes de justiça. Dos
magistrados. Dos oficiais de
justiça. Dos advogados. Mas o mais
certo é que se trate da
responsabilidade dos magistrados.
Ou porque assim entendem e têm
algo a ganhar com isso. Ou porque
não tomaram as precauções
necessárias para evitar as fugas e
as violações. São responsáveis por
acção ou por omissão. Por vontade
própria ou por incompetência.
A
campanha eleitoral
revela bem o
desinteresse dos
partidos pela justiça.
Em relação ao
provavelmente mais
complexo dos problemas, o pior
de Portugal, o mais grave do país…
nenhum dos candidatos mostrou
real preocupação, nenhum dos
partidos traçou caminhos. E todos
sabem que, apesar da
independência dos tribunais, mau
grado a autonomia dos
magistrados, não há qualquer
solução ou melhoria sem
legislação, sem revisão dos
códigos e dos processos, sem
Governo e sem Parlamento. A
covardia dos políticos portugueses
perante a justiça, assim como a
hipocrisia do alegado respeito pela independência dos magistrados,
são dois dos piores defeitos da
nossa vida colectiva.
Sabemos que é necessário
respeitar a independência dos
magistrados em tribunal. E a
autonomia dos procuradores em
processo. E a seriedade de todos
em julgamento. Mas a justiça
depende do soberano. Do povo.
Não fica bem aos magistrados
invocar a sua independência para
justificar a sua autogestão ou
disfarçar as suas culpas. Não fica
bem ao político e ao legislador
invocar a independência dos
tribunais como desculpa para a
sua inacção.
Por isso tudo, teria sido
importante que a campanha
eleitoral se tivesse debruçado
seriamente sobre a justiça e os
seus defeitos. Os partidos
deveriam ter agido sem medo de
invadir territórios alheios e sem
receio de serem acusados de
ataque à independência dos
magistrados. A justiça jamais se
reformará a ela própria. Ainda por
cima, sabendo nós que os
magistrados estão praticamente
em guerra.
Será que os responsáveis
políticos, os dirigentes do Estado,
os principais magistrados não
percebem, não sentem, não se dão
conta do que se está a fazer ao país
e à população? Com esta
demonstração de incompetência,
de covardia, de partidarismo e de
parcialidade, está a causar-se um
dano irreversível, perene ou de
longa duração ao estado moral da
população, à confiança do povo na
justiça e nas instituições. Será que
não percebem que a população
perde a confiança, perde o sentido
moral da vida colectiva, perde a
dimensão ética da vida política?
Já nos interrogámos sobre as
razões pelas quais a justiça
portuguesa perde tantos recursos
nos tribunais europeus? E os
motivos pelos quais a justiça
portuguesa perde tantos
processos internacionais,
designadamente europeus,
quando estão em causa a
liberdade de expressão e a
liberdade da imprensa?
É pena que assim seja. A justiça
é talvez o mais poderoso factor de
liberdade. A mais importante
garantia de liberdade. A mais
eficaz defesa da liberdade. Um
tribunal é tão importante quanto
uma urna de voto. Ou uma palavra
impressa. Não cuidar da justiça é
não cuidar da liberdade.
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