sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Saudosismos, populismos e democracia

 

Escrever Direito
Francisco Teixeira da Mota 

 Confesso que me custou ver José Pacheco Pereira, em nome da defesa do regime democrático, afirmar, num programa de televisão, que o Ministério Público tem quase medo de tratar do crime de calúnia/difamação, sendo certo que esclareceu que não estava a falar de opiniões, estava a falar de questões de “clara difamação pública com dados errados, falsidades e insinuações”. Foi interrompido por Basílio Horta, que acrescentou: “Os próprios juízes têm dificuldade em condenar em matéria de difamação e sabe porquê? Porque o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem uma versão muito alargada do que é o direito de informação e do que é a liberdade de expressão e por isso têm muita tendência para não condenar, quase nada, rarissimamente, por crimes de difamação e de calúnia. É muito difícil conseguir em juízo uma condenação com esse argumento, que é crime, evidente que é, mas não é fácil hoje uma condenação com esse argumento.
 ”Parece-me que há aqui uma grande confusão: o crime de difamação está, de facto, previsto e punido no nosso Código Penal e, durante muitos anos, permitiu condenações absurdas, esmigalhando a liberdade de expressão em defesa de invocados bons-nomes e honras, debaixo do acaciano princípio de que o respeitinho é muito bonito. As condenações, em muitos casos, puniam quem era desagradável, incómodo, minoritário, mal-educado, feio ou violento nas palavras que dizia em público. Sucede que, em Outubro de 1978, Portugal aderiu à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), que passou a ser lei no nosso país — de valor inferior à Constituição, mas superior às leis ordinárias como é o Código Penal —, e, a partir daí, os tribunais portugueses estão obrigados a respeitar os direitos aí consagrados, sendo um deles a liberdade de expressão que figura no artigo 10.º. E, nos termos da CEDH, cabe ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) a aplicação e a interpretação da CEDH, pelo que os nossos tribunais devem, nas suas decisões, quando estiver em causa essa liberdade, ter em conta a jurisprudência daquele tribunal. Sucede, ainda, que levou muito tempo para a liberdade de expressão consagrada na CEDH entrar na jurisprudência dos nossos tribunais (e, ainda, não entrou em todos). O primeiro caso em que o Supremo Tribunal de Justiça invocou de forma expressa e expressiva o artigo 10.º da CEDH foi em 13 de Janeiro de 2005, aí se afirmando que “a liberdade de informação abrange o recurso a certa dose de exagero, mesmo de provocação, de polémica e de agressividade (a Convenção dos Direitos Humanos protege, no seu artigo 10.º, não apenas a substância das ideias mas também o seu modo de expressão)”. Parece desnecessário lembrar todos os casos em que Portugal tem sido condenado pelo TEDH por violação da liberdade de expressão, sendo certo que a primeira condenação se deu em 28/9/2000. Quer tudo isto dizer que nem o MP nem os juízes têm medo de condenar pelo crime de difamação, que continua, de facto, a existir, mas tem, hoje em dia, outros contornos que não tinha e, por isso mesmo, os juízes e o MP ao terem em conta a CEDH e a jurisprudência do TEDH, não acusando ou não condenando, limitam-se a cumprir a lei. Se não o fizessem, estariam, eventualmente, a praticar o crime de denegação de justiça. Claro que será possível mudar esta situação e voltar aos tempos de antigamente: Portugal só tem de abandonar a CEDH. Uma decisão que, penso, não reforçaria a nossa democracia. 
 Outra confusão, que me pareceu (e custou) ver nas palavras de José Pacheco Pereira, foi a respeitante aos direitos, liberdades e garantias de defesa de que devem gozar os políticos ou as pessoas conhecidas. Defendeu, com toda a razão, que têm de ser iguais aos de todas as outras pessoas, mas pareceu-me que estava a pôr em causa que essas figuras públicas tenham o dever legal de suportar um escrutínio mais intenso e críticas mais violentas, e até injustas, do que o cidadão comum. No entanto, esse é um princípio basilar das democracias, de alguma forma resultante da decisão, em 1964, no caso New York Times v. Sullivan do Supremo Tribunal dos EUA e que Donald Trump já afirmou que deveria deixar desaparecer da paisagem legal norte-americana. Não creio que o tenha feito em reforço da democracia.


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