Francisco Teixeira da Mota
Confesso que me custou ver José
Pacheco Pereira, em nome da
defesa do regime democrático,
afirmar, num programa de
televisão, que o Ministério
Público tem quase medo de
tratar do crime de calúnia/difamação,
sendo certo que esclareceu que não estava a
falar de opiniões, estava a falar de questões
de “clara difamação pública com dados
errados, falsidades e insinuações”. Foi
interrompido por Basílio Horta, que
acrescentou: “Os próprios juízes têm
dificuldade em condenar em matéria de
difamação e sabe porquê? Porque o
Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
tem uma versão muito alargada do que é o
direito de informação e do que é a liberdade
de expressão e por isso têm muita tendência
para não condenar, quase nada,
rarissimamente, por crimes de difamação e
de calúnia. É muito difícil conseguir em
juízo uma condenação com esse
argumento, que é crime, evidente que é,
mas não é fácil hoje uma condenação com
esse argumento.
”Parece-me que há aqui uma grande
confusão: o crime de difamação está, de
facto, previsto e punido no nosso Código
Penal e, durante muitos anos, permitiu
condenações absurdas, esmigalhando a
liberdade de expressão em defesa de
invocados bons-nomes e honras, debaixo
do acaciano princípio de que o respeitinho
é muito bonito. As condenações, em muitos
casos, puniam quem era desagradável,
incómodo, minoritário, mal-educado, feio
ou violento nas palavras que dizia em
público.
Sucede que, em Outubro de 1978,
Portugal aderiu à Convenção Europeia dos
Direitos Humanos (CEDH), que passou a ser
lei no nosso país — de valor inferior à
Constituição, mas superior às leis ordinárias
como é o Código Penal —, e, a partir daí, os
tribunais portugueses estão obrigados a
respeitar os direitos aí consagrados, sendo
um deles a liberdade de expressão que figura no artigo 10.º. E, nos termos da
CEDH, cabe ao Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos (TEDH) a aplicação e a
interpretação da CEDH, pelo que os nossos
tribunais devem, nas suas decisões, quando
estiver em causa essa liberdade, ter em
conta a jurisprudência daquele tribunal.
Sucede, ainda, que levou muito tempo
para a liberdade de expressão consagrada
na CEDH entrar na jurisprudência dos
nossos tribunais (e, ainda, não entrou em
todos). O primeiro caso em que o Supremo
Tribunal de Justiça invocou de forma
expressa e expressiva o artigo 10.º da CEDH foi em 13 de Janeiro de 2005, aí se
afirmando que “a liberdade de informação
abrange o recurso a certa dose de exagero,
mesmo de provocação, de polémica e de
agressividade (a Convenção dos Direitos
Humanos protege, no seu artigo 10.º, não
apenas a substância das ideias mas também
o seu modo de expressão)”. Parece
desnecessário lembrar todos os casos em
que Portugal tem sido condenado pelo
TEDH por violação da liberdade de
expressão, sendo certo que a primeira
condenação se deu em 28/9/2000.
Quer tudo isto dizer que nem o MP nem
os juízes têm medo de condenar pelo crime de difamação, que continua, de facto, a
existir, mas tem, hoje em dia, outros
contornos que não tinha e, por isso
mesmo, os juízes e o MP ao terem em conta
a CEDH e a jurisprudência do TEDH, não
acusando ou não condenando, limitam-se
a cumprir a lei. Se não o fizessem,
estariam, eventualmente, a praticar o
crime de denegação de justiça. Claro que
será possível mudar esta situação e voltar
aos tempos de antigamente: Portugal só
tem de abandonar a CEDH. Uma decisão
que, penso, não reforçaria a nossa
democracia.
Outra confusão, que me pareceu (e
custou) ver nas palavras de José Pacheco
Pereira, foi a respeitante aos direitos,
liberdades e garantias de defesa de que
devem gozar os políticos ou as pessoas
conhecidas. Defendeu, com toda a razão,
que têm de ser iguais aos de todas as outras
pessoas, mas pareceu-me que estava a pôr
em causa que essas figuras públicas tenham
o dever legal de suportar um escrutínio
mais intenso e críticas mais violentas, e até
injustas, do que o cidadão comum. No
entanto, esse é um princípio basilar das
democracias, de alguma forma resultante
da decisão, em 1964, no caso New York
Times v. Sullivan do Supremo Tribunal dos
EUA e que Donald Trump já afirmou que
deveria deixar desaparecer da paisagem
legal norte-americana. Não creio que o
tenha feito em reforço da democracia.
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