domingo, 12 de outubro de 2014

Jardim deu vantagens leoninas e escandalosas ao grupo Sousa

escreve Tolentino  Nóbrega do jornal Público

Jardim favorece grupo local em concessões do Estado

Concessão para exploração da linha marítima Funcha-Porto Santo foi prorrogada antes de tempo e com alterações contratuais que favorecem grupo Sousa. Passou a ter isenção de rendas, taxas e IVA e a cobrar uma taxa aos passageiros que não constava das regra

 O contrato de concessão da linha de transporte marítimo entre o Funchal e Porto Santo, celebrado há 18 anos entre o governo regional da Madeira e a Porto Santo Line Lda (PSL), sofreu várias alterações relativamente ao caderno de encargos e já foi prorrogado por duas vezes sem passar por concurso público. Agora está em vigor até 2025.
Nunca divulgado nem publicado no Jornal Oficial da Região, o contrato tem sido criticado pela oposição local, por alegadamente incluir cláusulas leoninas que beneficiariam um grupo económico já com o monopólio das operações portuárias no arquipélago. O PÚBLICO teve acesso ao caderno de encargos e ao contrato de concessão, que também não foi submetido à fiscalização prévia do Tribunal de Contas, e verificou que o clausulado do caderno de encargos inicial – que fez excluir outros potenciais interessados na concessão – sofreu alterações significativas, sempre favoráveis ao interessado e seu proponente. O concessionário ficou, por exemplo, dispensado de pagamento da renda da concessão fixada em 20% dos lucros apurados antes de imposto, conforme previa o caderno de encargos.
“Como contrapartida da desistência por parte do proponente Porto Santo Line da exigência de indemnizações compensatórias previstas na sua proposta apresentada a concurso, o concedente desiste da percepção da renda da concessão”, estabelece o novo artigo 18.º introduzido no contrato depois da realização do concurso. O caderno de encargos não obrigava o governo concedente ao pagamento de quaisquer compensações indemnizatórias.
A eliminação da renda surpreendeu a assessoria jurídica da presidência do governo regional de então. “Qual o fundamento para a renúncia de um direito essencial da entidade concedente, quando o mesmo direito se encontra regulamentado em certos termos no caderno de encargos?”, questionava o notário privativo da presidência do Governo Regional, José António Câmara, num fax enviado ao secretário responsável pelas alterações, a 19 de Fevereiro de 1996.
“A previsão de indemnizações compensatórias no programa de concurso não se efectuou como elemento susceptível de provocar ou não a ‘desistência’ por parte da entidade concedente da renda prevista no artigo 18.º do caderno de encargos”, lembra o notário da Quinta Vigia, exigindo “esclarecimento por escrito” das alterações feitas também quanto ao início de contagem do prazo para cumprimento de obrigações e o valor da garantia bancária. Questiona igualmente a subconcessão de actividades complementares ou acessórias que “não se encontra submetida ao regime previsto para a actividade principal do caderno de encargos”.
De PPP para concessão
Passados três dias, na véspera de assinar o contrato, o secretário regional da Economia e Cooperação Externa, Pereira de Gouveia, em ofício enviado ao notário, justifica que “só se conseguiria manter o equilíbrio económico do contrato entre concedente e concessionário se o concedente desistisse da renda”. E, interpelado sobre a falta do obrigatório parecer do Tribunal de Contas, alega que “do presente contrato não resultam quaisquer responsabilidades financeiras presentes e devidamente quantificáveis que obriguem à sua fiscalização prévia”.
Uma das primeiras cedências do governo verificou-se três anos antes da celebração do contrato, assinado a 23 de Fevereiro de 1996 pelo secretário regional da Economia e Cooperação Externa, Pereira de Gouveia,
em representação do concedente, e Luís Miguel de Sousa, pela concessionária. O executivo liderado por Alberto João Jardim tinha optado por parceria público-privada, como propusera a comissão responsável pelo concurso, mas pela resolução n.º 1306/93 resolve “entregar a uma entidade privada a exploração da referida linha”, em detrimento da empresa mista que teria como accionista a PSL (75%) e a Região Autónoma da Madeira (25%).
Após a assinatura do contrato, o governo regional, face à exigência por parte do concedente de indemnizações compensatórias não previstas, “desiste de cobrar ao concessionário qualquer renda da concessão, a qual será incluída no lucro da exploração do serviço público a fim de permitir ao concessionário ter uma margem de lucro adequada a auto-financiamento que lhe permita adquirir e substituir os meios necessários à boa exploração”. E acorda em ceder instalações em terra “sem qualquer contrapartida”.
Pelo contrato que teve como objecto principal a atribuição do direito de exploração do serviço público, “feita em regime de exclusivo”, do transporte de passageiros e mercadorias entre as ilhas da Madeira e do Porto Santo, o concessionário ficou “isento, pelo período que durar a concessão, das taxas portuárias do Funchal e do Porto Santo”. Estas taxas tinham sido exigidas ao armador madeirense José Silvério Pires, que no início da década de 90 tentou, sem êxito, explorar a linha com o ferryboat Lusitânia Expresso, protagonista em 1992 da missão Paz em Timor, na sequência do massacre no cemitério de Díli.
O pagamento das referidas taxas portuárias, de que a PSL está isenta, foi um dos motivos que levou o armador espanhol Naviera Armas a suspender, em Janeiro de 2012, a única ligação regular por via marítima entre a Madeira e o Continente (Funchal-Portimão), a qual contribuía para reduzir os constrangimentos da insularidade. Com estas taxas e os entraves burocráticos colocados no porto do Funchal, o armador considerou-se “expulso” desta ilha, disse recentemente a um jornal das Canárias.
Além de isentar a PSL de taxas, o governo regional, no contrato celebrado, comprometeu-se a disponibilizar “áreas em terra e de cais necessárias para o concessionário construir terminais marítimos dos portos do Funchal e do Porto Santo”. A obrigação do concessionário de construção dos terminais ficou “condicionada à comparticipação do concedente em 70% do financiamento da respectiva construção através do Programa Operacional Plurifundos da Região”.
O concedente que assumiu as despesas com o pessoal no início da exploração da linha ficou também obrigado a disponibilizar ao concessionário “a utilização de parte de um edifício no porto do Funchal, que fica integrado no estabelecimento da concessão, no qual poderão ser instalados todos ou alguns dos serviços administrativos do concessionário” e onde este pode ainda instalar “postos de venda de produtos comerciais ou instalações de bar ou restauração” ou “subconceder a sua exploração destas actividades a terceiros, com dispensa de prévia aprovação do concedente”.
O concessionário obrigou-se a propor ao concedente, no prazo de 120 dias a partir da data de celebração do contrato, um navio tipo ferry – não estava previsto no caderno de encargos – que “ficará exclusivamente afecto à concessão pelo prazo que esta durar”.
De acordo com o contrato original, no termo da concessão reverte para o concedente tudo o que nessa data constitua estabelecimento da concessão. Ficam excluídas deste preceito “as embarcações adquiridas para a concessão pelo concessionário e à sua custa, que ainda não estejam totalmente amortizadas”. Neste caso, “poderá o concedente ficar com as embarcações desde que pague previamente ao concessionário a parte ainda não amortizada”.
Com um preço estimado em 5,5 milhões de contos (27,4 milhões de euros), a construção de um novo ferry foi adjudicada por 34,5 milhões de euros aos Estaleiros de Viana do Castelo, com a comparticipação de 15 milhões de euros da União Europeia e da Região, correspondente a 71,4% da despesa elegível, como refere o relatório da auditoria do Tribunal de Contas (TdC) à aquisição do Lobo Marinho, datado de 12 de Fevereiro de 2004.
Navio com benefícios fiscais
O contrato deu ainda à concessionária PSL a possibilidade de “utilizar para o registo das suas embarcações o Registo de Navios”, integrado na Zona Franca da Madeira. Os barcos inscritos usufruem, entre outros benefícios fi scais, da isenção de pagamento do IVA nas actividades comerciais neles desenvolvidas (incluindo não só restauração e bares, como os próprios bilhetes de viagem) e na aquisição de combustível. Beneficiam ainda de um regime fiscal muito favorável, com redução de taxas e os seus tripulantes estão abrangidos pelo regime de Segurança Social voluntário, ficando os respectivos salários isentos de qualquer taxa ou contribuição fiscal.
O contrato permite ainda à PSL proceder à “alteração do quantitativo das tarifas a aplicar”, e também ao “trespasse, subconcessão ou a cedência, por qualquer título ou prazo da exploração do serviço a terceiros”, deliberações que, entre outras, “carecem de aprovação do concedente”.
Caso a “exploração seja deficitária”, o concessionário tem “o direito ao equilíbrio económico e financeiro de tais actividades, designadamente mediante o alargamento do prazo da concessão ou recurso a outro meio de compensação adequado”.

Grupo Sousa, “dono da Madeira”

Depois de Jaime Ramos, o empresário Luís Miguel de Sousa é considerado o novo “senhor da Madeira” do período pós-autonomia que sucedeu aos dois ciclos económicos dominados por famílias inglesas radicadas no arquipélago (Blandy, Zino, Leacock e Welsh) e por emigrantes (Pestana e Berardo) regressados à ilha natal.

Foi capa da revista Exame, que o intitulou “Dono da Madeira”. O Diário de Notícias local, ao apresentar este “império monopolista insular”, concluía que “não é um exagero dizer-se que o líder do Grupo Sousa tem as chaves do nosso arquipélago na mão”. Mas não escapa às críticas da oposição por alegado proteccionismo do poder regional.
Do seu universo fazem parte 90 empresas, nas áreas do transporte marítimo (42% da facturação), logística (30%), hotéis e turismo (15%), imobiliária e outros (9%) e energias renováveis (4%). Com o exclusivo das ligações marítimas com o Porto Santo, duas empresas que dominam o porto do Funchal, a Operações Portuárias da Madeira (OPM) e a Empresa Trabalho Portuário (ETP) – que gerem há mais de 20 anos, por concessão do governo, em exclusividade, as operações e a mão-deobra portuária –, foram investigadas por factos que indiciavam a prática de crimes de peculato, participação económica ilícita em negócio e administração danosa.
A investigação policial descobriu que cerca de 20 empresas fictícias facturaram àquele organismo milhões de euros em serviços inexistentes. O inquérito-crime foi arquivado pelo Ministério Público a 31 de Julho de 2007, apesar de o relatório final da investigação apontar para a acusação e de o presidente do grupo empresarial e seis administradores da OPM e ETP terem sido constituídos arguidos.
A PSL realiza transacções com mais de duas dezenas de entidades do Grupo Sousa SGPS, que em 2010 atingiu um volume de negócios de 101,3 milhões de euros e uma situação líquida de 76,1 milhões. O relatório de contas do grupo revela que as remunerações dos administradores das empresas ascenderam a um milhão de euros em 2008 e que, em plena crise económica mundial, os proveitos operacionais aumentaram 1% e os resultados operacionais 87%. A holding Grupo Sousa Investimentos apresentou no ano passado um lucro de 5,7 milhões. (Público 12-Out.2014) [Ver também Fénix do Atlântico]

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