sábado, 24 de setembro de 2016

"tudo o que existe pode ser negado"



"Tudo o que existe pode ser negado"


Liviu Beris, sobrevivente do Holocausto na Roménia, passou anos a tentar esquecer o que passou, mas agora luta contra o negacionismo da Shoah no seu país, que foi aliado da Alemanha nazi na II Guerra Mundial.
Fiz todos os possíveis para esquecer. Não queria pensar no que aconteceu durante o Holocausto. Esforcei-me, dediquei-me à área em que trabalhei, de genética animal: ficava dia e noite, só queria trabalhar. E alcancei uma série de coisas, tive inclusive algum sucesso na criação de uma raça de porcos com uma carne extraordinária. Esta até foi a razão pela qual o regime comunista da Roménia nunca me deixou ir para Israel, para onde foram os meus pais e grande parte dos judeus da terra onde nasci — diziam que tinha segredos científicos e por isso não podia sair do país. 
Não sou religioso. Desde que estive no campo de concentração na Transnístria [na União Soviética, sob ocupação romena] decidi ser a-religioso, é assim que me defino. Mas a dada altura recebi um livro de orações vindo de Israel da minha mãe, com uma dedicatória, em que ela me dizia: “Sei que não és crente, mas no dia longo de jejum, reza por mim e pelo teu pai, quando nós já não estivermos cá”.
 Assim, um dia entrei numa sinagoga para cumprir este último desejo da minha mãe. Vi imensas pessoas idosas, algumas carenciadas, algumas delas eram sobreviventes do Holocausto. E de repente, lembrei-me de tudo aquilo que queria esquecer.
Nessa noite tive pesadelos e revivi muitos episódios. E por coincidência ou não, pouco depois houve um debate televisivo em que alguém negava o Holocausto. Foi então que decidi que não podia ser. Contactei a Associação Judaica do Holocausto na Roménia e pedi para ficar responsável pelo departamento da memória. E foi assim que cheguei até aqui.
Sou de Hertza, que está numa zona contestada entre a Roménia e a União Soviética e que hoje é na Ucrânia. Lá viviam 4000 pessoas, éramos 1800 judeus e 2200 romenos. Em 1940, no dia 26 de Junho, estava já de férias, tinha acabado o segundo ano do liceu, deparámo-nos com tanques soviéticos na principal ruela da localidade. Foi assim que conheci o totalitarismo comunista. Expropriaram as lojas, incluindo a padaria do meu pai, que tinha 20 trabalhadores. Um líder soviético gostou da nossa casa, que era na rua principal. Deram-nos um dia para sair. O cartão de identidade do meu pai tinha o número 39; mais tarde, soubemos que era o número de quem seria deportado para a Sibéria.
Depois da primeira ronda de deportações, a que escapámos por já não morarmos na rua principal, a minha família esperava a segunda ronda, da qual faríamos parte. Mas entretanto começou a guerra: a Alemanha nazi e os seus aliados, incluindo a Roménia, lutavam contra a União Soviética.
A 5 de Julho de 1941 — que considero o meu segundo aniversário — os soldados romenos chegaram à nossa localidade. O meu pai levou-me pela mão, e fomos recebê-los: tínhamos escapado da deportação para a Sibéria! Juntou-se um grupo de uns dez judeus e 20 romenos. Mas quando lá chegámos, o comandante diz “quem é judeu que se ponha à parte”, e nós fomos. Ele diz: Descalcem-se. E nós baixámo-nos para nos descalçarmos. Quando nos levantámos tínhamos à frente um grupo de soldados pronto para nos fuzilar.

Ainda a mesma pergunta

Só um dos romenos se apercebeu do que ia acontecer, já não me lembro da cara mas ainda hoje lhe ouço a voz. Perguntou o que estavam a fazer, que tínhamos sofrido juntos. Os outros aperceberam-se e puseram-se entre nós e os soldados. O comandante mandou-nos então partir, e nós fomos, sem sequer nos calçarmos. A criança que eu era então fez uma pergunta: Porquê? Ainda hoje, com 88 anos, faço a mesma pergunta.
Em Agosto de 1941 todos os judeus da localidade foram reunidos na pequena praça do centro para ser deportados. Eu tinha 13 anos. Fomos a pé, pela estrada, vários dias. Ainda que estivéssemos tecnicamente presos, ninguém nos deu comida. Esta foi uma característica do Holocausto na Roménia.
Mas o pior era a falta de água. Bebíamos de manjedouras à beira da estrada. Uma vez tinha tanta sede que vi uma poça de água no chão no rasto de uma carroça. Atirei-me para o chão e bebi aquela mistura de água e pó. Soube-me pela vida.
Não demorou muito a que mudássemos. Para sobreviver, transformámo-nos completamente. Já não éramos humanos.A dada altura do caminho, juntámo-nos a outros, éramos milhares. As pessoas começaram a morrer. Foi chamada a coluna da morte.
Uma vez, já no campo de Mogilev-Podolsk no Inverno de 1942-43, eu e outros rapazes fomos roubar lenha fora do campo. Os que ficaram de avisar se os guardas viessem deram o sinal, mas eu não fui rápido e apanharam-me. Eram dois, um oficial e um soldado. O soldado disse, “vamos executá-lo”. O oficial disse, “não, vamos levá-lo para o quartel”.
À ida, o soldado foi-me batendo com a coronha da arma nas costas. Já não aguentava a dor. Era noite, e ao passar por um candeeiro, virei-me para trás de repente e olhei para ele. Nunca me hei-de esquecer da sua cara de ódio a olhar para mim, a arma no ar, pronto a bater-me de novo. Lembro-me de pensar que se sobrevivesse aquilo, nunca iria fazer a ninguém o que ele fez comigo. E digo-vos que consegui não odiar ninguém. Foi algo bom para mim e também para os que me são próximos.

Aprender lições

Na realidade, tudo o que existe pode ser negado. Em 2005, numa conferência na cidade de Iasi, na universidade Alexandrou Ioan Cuza, em frente a uma plateia de mais de 400 estudantes, pedi-lhes que me fizessem perguntas anónimas sobre o Holocausto. 
Recebi mais de 100 perguntas. Entre estas perguntas, havia algumas de tipo negacionista, muito directas.
Respondi procurando documentos que não me representavam a mim, mas eram assinados pelos que deram as ordens e os que as executaram no Holocausto romeno. Entendi que era a única maneira de os combater, não lhes respondendo eu, mas sim deixando a resposta aos perpetradores.
Todos devemos aprender lições do Holocausto. Porque o Holocausto acabou por ser uma degeneração das relações humanas, o cúmulo da degeneração do relacionamento entre as pessoas. Há uma parte da população que deixa de ter a sua condição humana e passa a ser caça. E há umas forças estatais que acabam por ser caçadores. Por nenhuma razão em particular, apenas por terem nascido assim. 
Quanto à minha cidade de Hertza, 75% dos judeus deportados morreram de fome, frio, tifo, balas, ou por causa de pessoas más. Hoje, não vive nem um judeu em Hertza.
Texto baseado numa entrevista com Liviu Beris e na sua intervenção na conferência “As virtudes da Tolerância”, organizada pela Embaixada da Roménia em Lisboa a 22 de Setembro (público)

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