sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Turquia: uma ditadura pós-moderna

 


Francisco Teixeira da Mota

 Escrever Direito

Felizmente para todos nós, em geral, e para Kiliçdaroglu, em particular, a 4 de Novembro de 1950, foi assinada, em Roma, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos

 Ó ladrões, ó corruptores, se se querem safar, basta contactar o primeiro-ministro antes de se envolverem nos roubos e na corrupção, [para que] ninguém vos possa tocar... ele mente... mentir é certamente a sua especialidade pessoal... (Primeiro-ministro) você é aquele que explora a religião da fraternidade, do amor e da unidade para semear a discórdia, para provocar o ódio e alimentar a divisão... Primeiro-ministro, você não é piedoso, você é um comerciante da religião, um homem que explora as crenças das pessoas piedosas...” 
 Estas duras palavras de Kiliçdaroglu, dirigente do principal partido político da oposição na Turquia, proferidas, em Janeiro de 2012, no Parlamento e dirigidas ao então primeiro-ministro e actual Presidente da República Erdogan, foram consideradas como um ataque pessoal ao primeiro-ministro. 
 Para os tribunais turcos, “... o equilíbrio entre substância e forma foi perturbado, o limite permissível de crítica foi ultrapassado; não era indispensável usar essas palavras para exprimir comentários e opiniões sobre o executivo, a crítica teria sido mais eficaz com um estilo e uma formulação adequados”. E, por isso mesmo, os tribunais turcos, embora reconhecendo a qualidade de políticos dos intervenientes, condenaram Kiliçdaroglu a pagar uma indemnização ao primeiro-ministro. 
 Kiliçdaroglu, como presidente do maior partido político na oposição, não desertou das suas obrigações e, dois meses, mais tarde, noutro discurso, afirmou, entre outras coisas, que Erdogan era um “traficante da religião” cuja piedade era superficial, perguntando-lhe mesmo se tinha “um único grama de moralidade”. Foi, de novo, condenado a pagar uma indemnização ao então primeiro-ministro e actual ditador pós-moderno, como lhe chama Kiliçdaroglu. Ao todo, 6350 euros para os bolsos de Erdogan... 
 Mas, felizmente para todos nós, em geral, e para Kiliçdaroglu, em particular, há 70 anos, em 4 de Novembro de 1950, foi assinada, em Roma, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), um instrumento jurídico que obriga os Estados signatários a respeitarem, na prática, os direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Enquanto esta declaração é uma mera (mas muito importante) proclamação de princípios e valores, já a CEDH obriga, de facto, os Estados a respeitarem os direitos aí consagrados já que prevê que os cidadãos se possam queixar das violações pelos Estados, desses direitos e que tais queixas sejam apreciadas e decididas por um tribunal supranacional. 
 E foi o que Kiliçdaroglu fez: queixou-se ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos das suas condenações pelos tribunais turcos constituírem uma evidente violação, pela Turquia, da liberdade de expressão garantida pela CEDH.
 O tribunal começou por lembrar que os dois discursos proferidos por Kiliçdaroglu versavam questões de interesse geral e políticas: processos judiciais relativos a alegações de peculato, a tragédia humana causada por um bombardeamento da Força Aérea turca e a oposição à construção de centrais hidroelétricas. E tinham sido feitos no Parlamento, dirigidos ao primeiro-ministro que, naturalmente, tinha de suportar um escrutínio e uma crítica mais intensa do que a generalidade dos cidadãos. 
 Considerou, ainda, o TEDH que as expressões utilizadas deviam ser entendidas como opiniões e não como afirmações de factos, pelo que as mesmas não deviam ser vistas como verdadeiras ou falsas. É certo que eram expressões agressivas e até grosseiras, mas, lembrou o TEDH, não cabe aos tribunais decidir o estilo ou a eficácia da linguagem dos políticos ou dos cidadãos no uso da sua liberdade de expressão, sendo certo que os temas em causa e a própria linguagem do primeiro-ministro justificavam as expressões utilizadas por Kiliçdaroglu e o seu carácter provocatório e exagerado. E, para o TEDH, essas expressões não tinham como objectivo insultar Erdogan, mas manifestar uma forte oposição ao mesmo, pelo que as condenações constituíam uma violação da liberdade de expressão de Kiliçdaroglu. A Turquia foi, assim, no passado dia 27 de Outubro, condenada a pagar-lhe os 6350 euros que entregara a Erdogan acrescidos de cinco mil euros por danos morais.
 Feliz aniversário, CEDH!  (Jornal Público)
Erdogan
Kiliçdaroglu


3 comentários:

  1. Alguém poderá elucidar-me sobre qual será o regime no mundo atual que se aproximará mais do ideal político de José Manuel Coelho? Já sabemos que ele apoia o comunismo mas estamos com dúvidas sobre qual dos actuais estados comunistas mais o seduz: China, Coreia do Norte, Laos, Vietname ou Cuba?

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  2. Será que na reforma do sistema político e da Autonomia que o Ajj fala, estará incluído a reforma da corrupção?

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