sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A censura sempre existiu em Portugal, desde o ano de 1451. Actualmente essa função é exercida pelos tribunais portugueses com o artigo 180º-187º do Código Penal

Alberto Manguel

A palavra “blasfémia” tem origem no grego e significa “ofender alguém”

«Em Portugal, o casamento profano entre a antiblasfémia e a censura remonta ao século XV. A 18 de agosto de 1451, Afonso V ordenou que os livros de Jan Hus e John Wycliffe, dois grandes precursores do protestantismo, fossem confiscados e lançados à fogueira. Hus e Wycliffe foram os primeiros mártires de tinta e papel em Portugal. Um pouco mais tarde, a Inquisição baniu livros considerados heréticos, numa tentativa de punir o pensamento blasfemo. Foram confiscadas e condenadas à fogueira traduções vernaculares da “Bíblia” e proibiu-se terminantemente o ensino da doutrina judaica aos cristãos novos (judeus convertidos). Em 1547 apareceu em Portugal a primeira edição do “Index Librorum Prohibitorum”, a lista de títulos rejeitados pelos leitores da Ordem Dominicana: beneficiando de um privilégio concedido pelo Papa João III, os dominicanos estavam autorizados a escrutinar todos os livros de bibliotecas públicas e privadas, competindo-lhes igualmente conceder ou recusar o imprimatur da Igreja. Apenas uma década mais tarde, o inquisidor-geral António Matos de Noronha estendeu este privilégio a outras ordens religiosas, assim diversificando a abrangência da censura. Em 1557, o Papa Paulo IV deu ordens para a criação do “Index Romano”. Por decreto papal, quem possuísse livros proibidos seria imediatamente condenado à excomunhão e à “infâmia perpétua”. Previsivelmente, por toda a Europa, livreiros, leitores e escritores lançaram-se numa autocensura preventiva, procurando sobreviver às consequências hostis impostas pela Igreja. Passados 14 anos, D. Sebastião estipulou uma multa que oscilava entre um quarto e metade do património do pecador, adicionando-lhe o opróbrio do exílio no longínquo Brasil ou numa das colónias africanas; também se executavam sentenças de morte. Dois séculos e meio mais tarde, em 1821, foi oficialmente extinto o Tribunal do Santo Ofício, logo substituído pelo Desembargo do Paço — a censura alfandegária —, que de alguma maneira, já sem esta designação, continua em vigor até hoje, pois quasetodos os livros que chegam a Portugal vindos de fora da União Europeia são sujeitos a um misterioso escrutínio, mantidos num limbo durante várias semanas e apenas libertados após o pagamento de taxas apuradas segundo cálculos cabalísticos. Durante o Estado Novo, o artigo 8º, nº 4, da Constituição garantia “a liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma”, embora, para complementar este arroubo libertário, o nº 20 do mesmo artigo acrescentasse que “leis especiais regularão o exercício da liberdade de expressão”. Explicava-se ainda que o objetivo desta regulação era “impedir […] a perversão da opinião pública na sua função de força social”, “defender a opinião pública de todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum” e “evitar que [sejam] atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade”. À luz deste princípio aristotélico do “bem comum”, panfletos, cartazes, jornais e revistas literárias tinham de ser expurgados do seu conteúdo blasfemo, caso contrário seriam logo condenados pelos censores oficiais. Apanhadas pelo olho meticuloso de quem sucedeu a estes censores, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno foram levadas a tribunal por terem escrito um livro alegadamente imoral: “Novas Cartas Portuguesas”. Muitos outros escritores foram presos, viram os seus livros confiscados ou os seus editores multados — entre eles, Soeiro Pereira Gomes, Aquilino Ribeiro, José Régio, Maria Lamas, Alves Redol, Augusto Abelaira, Manuel da Fonseca, Ary dos Santos, Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, Natália Correia, Ernesto Melo e Castro, Urbano Tavares Rodrigues, António José Forte ou Luiz Pacheco.   A blasfémia não tem de apontar à divindade para que seja tomada como ofensiva — os governos são igualmente melindrosos. É muito longo o alcance do medo da blasfémia. Em 1992, 18 anos depois da Revolução dos Cravos, o primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva deu ordens para que o romance de José Saramago “O Evangelho segundo Jesus Cristo” fosse retirado da candidatura ao Prémio Europeu de Literatura Aristeion, alegando que se tratava de um livro ofensivo do ponto de vista religioso. Ou seja, blasfemo. O Deus-Autor, que criou Estaline e Hitler, seria presumivelmente muito mais tolerante do que o Deus-Leitor, crítico do padre António Vieira e de Saramago. ....

 A palavra “blasfémia” tem origem no grego e significa “ofender alguém”. Na mitologia grega, a blasfémia depende da sensibilidade do deus ofendido: Atena, por exemplo, castigou a jovem Aracne e transformou-a numa aranha, porque Aracne se gabou de fiar melhor do que a deusa. Para os hebreus antigos (“Levítico”, 24:13-6), quem blasfemasse devia ser punido com a morte por enforcamento ou apedrejamento: “Então disse o Senhor a Moisés: tira para fora do arraial o que tem blasfemado; todos os que o ouviram porão as mãos sobre a cabeça dele, e toda a congregação o apedrejará. E dirás aos filhos de Israel: todo o homem que amaldiçoar o seu Deus levará sobre si o seu pecado. E aquele que blasfemar o nome do Senhor certamente será morto; toda a congregação certamente o apedrejará. Tanto o estrangeiro como o natural que blasfemar o nome do Senhor será morto.” Para a Igreja Católica, durante a Idade Média, a ideia de blasfémia confundiu-se com a ideia de heresia, muito embora, devido a um pormenor burocrático, nem muçulmanos nem judeus pudessem ser acusados de heresia, pois desde logo nunca confessaram ser crentes. Ainda assim, podiam ser acusados de insultar Deus e os Seus santos, e não apenas por meio de palavras e atos — por exemplo, se dissessem que a sorte, e não Deus, é o que comanda as nossas vidas —, mas também através do pensamento, algo poeticamente descrito como “blasfemar com o coração”-- TEXTO de  ALBERTO MANGUEL ESCRITOR, ENSAÍSTA E BIBLIÓFILO. COLABORADOR REGULAR DO EXPRESSO




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