quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

O ódio nazi não morreu e pode um dia voltar como disse e com toda a razão do mundo, Dita Kraus a "bibliotecária de Auschwitz". A história repete-se.

 


S 3 DEZEMBRO 2020 VISÃO 69
 Seria poético escrever que Dita, a “bibliotecária de Auschwitz”, foi buscar aos livros forças para sobreviver. Talvez tenha encontrado alento numa história de coragem, numa personagem heroica, numa metáfora inspiradora. Mas a morte não se compadece com lirismos. Os livros salvaram-na porque o bloco de Auschwitz onde ficou responsável por guardar uma dúzia de volumes – a “biblioteca” – era o único aquecido. “Era um bom trabalho, porque não tinha de estar lá fora ao frio”, recorda Dita, hoje com 91 anos, à VISÃO. 
 Na verdade, só se lembra do título de um livro: Uma Breve História do Mundo, de H. G. Wells, publicado em 1922.Edita “Dita” Polachová (Kraus seria o nome adotado depois de se casar) nasceu em 1929, em Praga, na então Checoslováquia. Filha única de um casal judeu de classe média, teve uma vida normal até 1940. A autobiografia Uma Vida Adiada – Memórias da Bibliotecária de Auschwitz (Edições Desassossego, 352 páginas, €18,80) começa com memórias bucólicas de uma infância feliz, feita de brincadeiras em riachos nas férias de verão, de paixões eternas que duram semanas. A meninice terminaria aos 11 anos, ao ser proibida de ir à escola devido à sua condição de judia. Dita nem sabia bem o que significava tal coisa. Crescera num ambiente secular e descobrira a sua etnia por acaso, na escola primária, pela boca de um colega. “Sim”, confirmaram-lhe os pais. “Somos judeus.” A menina encolheu os ombros. Nada mudou com essa informação. Continuou a sentir-se igual aos outros. A 15 de março de 1939, os alemães invadiram a sua cidade, e a criança percebeu o que era ser-se menos igual do que os outros. O terror nazi não chegou do dia para a noite. Tivesse sido assim e os pais não teriam hesitado tanto na decisão de sair do país, até ser demasiado tarde. Não, foi-se impondo sorrateiramente, pé ante pé. Um dia, os judeus deixaram de poder ir ao cinema e ao teatro, a cafés e a restaurantes (“Entrada proibida a judeus e a cães”, avisavam cartazes à porta). Noutro, tiveram de entregar as joias e os casacos de peles. Depois, os rádios, os instrumentos musicais, as máquinas fotográficas e as bicicletas. Os transportes públicos foram-lhes interditados. Passaram a ter de ostentar a Cruz de David amarela na roupa, com a palavra “Jude”. O pai de Dita, advogado, ficou sem emprego quando o Terceiro Reich publicou uma lei que proibia os judeus de trabalhar. Os três tiveram de se mudar para o antigo bairro judeu do outro lado da cidade, porque um oficial nazi lhes requisitou o apartamento onde moravam. E Dita, enfim, deixou de ser autorizada a frequentar a escola. “Roubaram-me a infância e a juventude”, diz. “E isso afetou-me o resto da vida.” A comunidade judaica local, num esforço por manter a normalidade possível, organizou grupos de estudos clandestinos para as crianças. Foram tempos difíceis, mas nada preparara Dita e os pais para o que se seguiria. A convicção entre os judeus era de que havia uma distinção entre discriminação e barbárie. Que o pesadelo, mais tarde ou mais cedo, terminaria. Mas estava só no início.

O BEIJO EM CIMA DE UMA LÁPIDE 

Aos 13 anos, Dita deu o primeiro beijo. Erik, colega das aulas judaicas, não era a sua escolha – o coração pendia-lhe para outro colega, Zdenek, até que o rapaz foi levado para Terezín, um gueto com características de campo de concentração, 60 quilómetros a norte de Praga. Mas o pretendente Erik acompanhava-a no regresso, a pé, para casa, transportando-lhe os livros, e certo dia Dita acedeu aos seus avanços: pararam num cemitério judaico (os judeus estavam proibidos de passear nos parques e jardins públicos) e beijaram-se, sentados numa lápide de um qualquer morto desconhecido. 
 A 20 de novembro de 1942, seria a vez de a sua família ser transferida para Terezín, que servia de entreposto para os campos de extermínio. O apeadeiro antes da última estação. A primeira notícia que teve à chegada foi a da morte da sua paixão, Zdenek, vítima de tifo. Aos 13 anos, Dita tornava-se uma prisioneira, condenada a trabalhos forçados, pelo crime de ter nascido judia. Começou por trabalhar nas hortas e depois numa oficina de carteiras de couro falso. De noite, dormia separada dos pais, num dormitório para raparigas. 
 Passou um ano. A 18 de dezembro, nova ordem de transporte: a família seria deportada para Auschwitz-Birkenau.. Pais e filha teriam, no entanto, a relativa felicidade de serem colocados no bloco BIIb, o “campo de família” da mais prolífica fábrica de morte da História. Enquanto a maioria dos prisioneiros eram gaseados à chegada ou semanas mais tarde, os deste bloco estavam marcados para morrer daí a seis meses. Não há consenso entre os historiadores sobre a razão da existência do campo de família em Auschwitz. O mais certo é que tivesse sido uma encenação para mostrar à Cruz Vermelha, que efetivamente visitou o campo em junho de 1944. No mês seguinte, finda a sua utilidade, a maior parte destes prisioneiros acabaria nas câmaras de gás. 
 Setenta e sete anos mais tarde, a viagem de comboio para Auschwitz continua cravada na memória de Dita. “Íamos encostados uns aos outros, como sardinha em lata, sem espaço para nos sentarmos”, descreve, ao telefone. Não havia janelas que deixassem entrar uma brisa, nem forma de despejar o único balde disponível para homens, mulheres e crianças fazerem as suas necessidades, à vista de todos; o balde rapidamente ficou a transbordar, e o odor espesso a urina e fezes tornou-se insuportável. O trajeto durou um dia e meio – 36 horas de pé, a respirar o ar mais nauseabundo que se pode imaginar. “Foi um choque mental tremendo. Uma experiência inumana.” À chegada, de noite, os prisioneiros começaram por sentir o ar empestado de carne queimada. Caía uma cinza fina. Os guardas retiraram as pessoas e, à força de bastonadas, encaminharam-nas para um barracão para serem tatuadas, homens para um lado, mulheres e crianças para o outro. Dita Kraus tem o número 73 305 no braço.
Seguiu-se a imagem mais horrenda que alguma vez presenciou, que lhe destruiu a pouca esperança que ainda tinha. “Mandaram as pessoas subirem para umas carrinhas, e lembro-me de uma mulher que caiu lá de cima, quando a carrinha começou a andar, e ficou imóvel no chão, e ninguém a ajudou. Foi o cúmulo do horror.” Nunca viria a saber se a mulher estava morta, porque também não teve coragem para se aproximar. No primeiro dia em Auschwitz, Dita e a mãe desistiram de viver. A miséria humana destruiu-lhes o espírito, tal como pretendiam os nazis. Não se suicidaram nesse momento porque não encontraram forma de o fazer. Dita foi para o bloco 31, o Kinderblock (bloco de crianças), gerido por um jovem e carismático judeu alemão, Fredy Hirsch, que conseguira convencer os nazis a manter um pavilhão relativamente privilegiado, com rações adicionais. Na sua supervisão, que incluía exercício diário e higiene cuidada, quase todas as 700 crianças a seu cargo sobreviveram nos primeiros seis meses, quando a taxa de mortalidade no campo era de um em cada quatro. Fredy encarregou Dita de tomar conta da biblioteca mais pequena do mundo: uma coleção de dez ou 12 livros que haviam sido encontrados nas malas de judeus mortos no campo e trazidos, à socapa, para o Kinderblock, e guardados perto da chaminé. Este pormenor da biblioteca clandestina daria origem ao bestseller internacional de ficção A Bibliotecária de Auschwitz, do espanhol Antonio Iturbe, já traduzido em 13 línguas.

O ENCONTRO COM MENGEL
 O inverno foi passando, lentamente, nas condições miseráveis de Auschwitz. Ao frio e à fome (os prisioneiros só comiam sopa aguada, à base de nabos, e boa parte das mortes devia-se a desnutrição extrema) juntava-se uma higiene degradante. Dita conta como as pessoas – muitas delas com diarreia – eram obrigadas a defecar para buracos comunitários, à vista de toda a gente, no meio de uma imundície repugnante, com uma mistura de cheiros pestilentos a fezes, urina, doença e morte. Todas as manhãs, Dita espreitava o pátio, para ver os pais na contagem matinal. No dia 4 de fevereiro de 1944, o pai não apareceu. Nessa noite, a adolescente esgueirou-se para o bloco dos homens. Se fosse apanhada, seria certamente executada, mas ela tinha de saber. “Eu via-o sempre na chamada, e até falávamos um bocadinho cá fora”, recorda. “Encontrei-o deitado no beliche. Tentei falar com ele, chamei-o, mas ele não respondeu nem reagiu à minha voz. Não sei se estava num sono profundo, em coma ou morto.” No mês seguinte, Dita perdeu o segundo pai: Fredy Hirsch foi marcado para morrer por já terem passado seis meses desde a sua chegada. Quase todas as crianças morreriam com ele. Conta-se que Fredy se matou com calmantes antes de o levarem, por não suportar ver os seus protegidos agonizarem na câmara de gás. O campo de família seria desmantelado quatro meses mais tarde. O infame médico de Auschwitz, Josef Mengele, ficou encarregado da seleção dos que poderiam vir a ser úteis aos nazis. Dita tinha 15 anos, o que a deixava automaticamente no grupo dos condenados à morte, mas mentiu. “73 305, 16 anos, pintora”, disse, quando chegou a sua vez. “Pintora de retratos ou de casas?”, perguntou Mengele. “De retratos.” “Eras capaz de pintar o meu retrato?” “Sim.” O médico apontou-lhe o grupo das mulheres com aspeto mais saudável. Apavorada, Dita viu a mãe, considerada demasiado velha, ser encaminhada para o outro grupo. Mas, no último segundo, conseguiu entrar no grupo dela, sem que os guardas reparassem. Mil e quinhentas pessoas salvaram-se. Sete mil sucumbiram ao Zyklon B

“NÃO SEI ONDE ENCONTREI A FORÇA

” No início de abril de 1945, os nazis levaram Dita e a mãe para o campo de concentração de Bergen-Belsen. Aí, quase morta de fome, Dita testemunhou um grupo de mulheres a cozinhar um fígado, que só podia ser humano. Nessa altura, a jovem já não sentia qualquer emoção. O que há para sentir quando nos habituámos a viver no meio de “merda e mortos”, como ela descreve, cruamente? O exército britânico entrou em Bergen-Belsen a 15 de abril, dez dias antes de Hitler se suicidar à porta do seu bunker de Berlim. Abalados com o que viram, muitos soldados e oficiais ofereceram as suas rações de carne e feijão aos prisioneiros famintos. A mãe autorizou-a a comer apenas açúcar com leite em pó, provavelmente salvando-lhe a vida: muitos morreram porque o corpo não conseguiu processar a súbita ingestão de proteína. Os prisioneiros continuaram a viver no campo, de quarentena, devido a um surto de tifo. Dita estava entre os infetados, mas foi melhorando com o tempo. Todos os dias ia visitar a mãe, que entretanto dera entrada no hospital improvisado. Durante uma dessas visitas, lembra-se de ela lhe dizer qualquer coisa, pedindo-lhe para não se esquecer. Mas a jovem, entusiasmada com uma festa, nessa noite, nas camaratas dos oficiais britânicos, não tomou atenção. No dia seguinte, encontrou a cama vazia. A mãe sobreviveu ao cárcere e morreu já livre. A filha nunca se conseguiria recordar das últimas palavras que lhe ouviu. A 1 de julho de 1945, Dita, então com 16 anos, regressou a Praga, onde encontrou Otto Kraus, outro dos poucos sobreviventes do Kinderblock de Auschwitz. “Lembro-me de ti”, disse-lhe o jovem. “A rapariga de pernas magras, lá sentada com os teus livros junto à chaminé.” Casaram-se em 1947, mudaram-se para Israel, tiveram três filhos. H. G. Wells termina Uma Breve História do Mundo com uma nota de esperança. “O que o Homem fez, e toda a sua História, é apenas o prelúdio das coisas que o Homem ainda fará.” Mas se Dita tivesse lido o livro, rodeada de horror e morte, estas palavras soar-lhe-iam sinistras. E mesmo hoje sentiria a frase como uma ameaça de terrores que ainda estão por vir. “O que aconteceu pode voltar a acontecer”, avisa. “O ódio não morreu.” (VISÃO)




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