domingo, 28 de agosto de 2016

“O MPLA, desde que Neto assumiu o poder, tem dentro de si o seu próprio inimigo”

“O MPLA, desde que Neto assumiu o poder, tem dentro de si o seu próprio inimigo”

Quando se fala em Agostinho Neto e no MPLA há milhares de factos que se ocultam. O historiador angolano Carlos Pacheco mergulhou nas trevas dos arquivos e trouxe-os à luz. Com muitos episódios terríveis e um herói bem definido: as camponesas angolanas.



Em 2006, há dez anos, pediram a Carlos Pacheco, historiador angolano, um artigo sobre Agostinho Neto (1922-1979), líder histórico do MPLA e primeiro presidente de Angola após a independência, para uma revista. Ele escreveu-o, umas vinte páginas. Mas o artigo não chegou a ser publicado. Então, em conversa, o seu editor (Assírio Bacelar, da Nova Vega, onde têm sido editados os seus livros) sugeriu-lhe que o transformasse em algo maior. O resultado, dez anos depois, é Agostinho Neto, O Perfil de Um Ditador – A História do MPLA em Carne Viva, 1500 dolorosas páginas divididas por dois grossos volumes. Milhares de horas de trabalho, buscas, investigação e escrita, num processo que ele aqui explica, em entrevista, das motivações iniciais até ao resultado final.

Qual foi o principal impulso que o levou a fazer este trabalho monumental sobre Agostinho Neto, quando tinha outros projectos em mão, na altura?
Sim, eu estava a trabalhar num livro sobre o Joaquim António de Carvalho e Meneses, que é uma personagem do século XIX. Porque é que eu abracei um projecto tão vasto como este? Talvez bem no meu íntimo radicasse esse desejo. Num artigo que escrevi a pedido de uma revista, e que não chegou a ser publicado, estava limitado a 20 páginas. Mas aqui achei que as minhas asas ficavam livres para voar sem limites. O desafio do Assírio [Bacelar], meu editor, foi decisivo, e o da minha mulher [Célia Borges] também. Nós estávamos no nosso escritório e ela disse: “Carlos, agora rasga um caminho maior.”
Talvez não estivesse à espera de chegar a uma obra tão volumosa… O que é que o foi estimulando a continuar para chegar a dois volumes com 1500 páginas?
A minha sensação era a de estar num túnel. E o meu propósito não foi escrever um livro comum sobre Agostinho Neto. Se me abalancei a um projecto desta envergadura, tinha de revelar os contornos da personalidade política de um homem, ainda desconhecida. Não só do homem mas de tudo. E o grande painel sobre a luta armada foi-se impondo. Tinha de trazer a lume um MPLA de que ninguém fala, e que se esconde.
Os livros hagiográficos sobre Agostinho Neto têm muitos pormenores da sua vida pessoal, familiar, na escola, etc. Mas este seu livro ignora-os…
Eu quis confinar o Neto e tudo o mais a uma dimensão política. Claro que aparecem questões que, não sendo tanto de dimensão política, acabam por se enquadrar nesse âmbito. Por exemplo, determinados “pecados” dos dirigentes. Os problemas sexuais, os abusos que se praticavam dentro do movimento, dirigentes a requestarem mulheres dos camaradas. Mas tudo isso se enquadra no grande painel político do livro.
Pelo que se depreende do livro, as guerras internas marcaram os movimentos de libertação desde o seu início, o MPLA e os outros. Tinha noção dessas guerras?
Não com esta dimensão. Ao princípio, quando comecei a mergulhar no túnel, eu tinha alguma luz. Mas depois fui perdendo essa luz. E a escuridão foi-se impondo. Mas eu ia fazendo luz pela devassa que ia fazendo dos arquivos.
Provindo grande parte da documentação citada dos arquivos da PIDE (que estão depositados na Torre do Tombo, onde esses documentos foram consultados), muita gente pode interrogar-se: então esta é a versão da PIDE sobre estas coisas?
Não. Grande parte (90%) do acervo é documentação vinda do interior dos movimentos de libertação. No caso do MPLA, vêm das estruturas internas, não só das estruturas de comando (implantadas em Brazzaville, em Lusaka, em Dar-es-Salaam), mas também da guerrilha. Como foram parar à PIDE? A própria PIDE explica: documentos capturados na operação tal. Em operações militares. Fosse o exército regular ou forças milicianas, Flechas e outros, apanhavam os documentos e entregavam-nos à PIDE. A guerrilha tinha um grande medo dos Flechas, por exemplo, porque eram corpos constituídos por ex-guerrilheiros, que conheciam a estrutura das organizações onde tinham militado.
Em várias passagens do livro regista-se um “namoro” entre as entidades coloniais e elementos dos movimentos de libertação, no sentido de os atrair para o seu lado.
Isso era uma constante. Julga-se que a PIDE se assumiu como uma força eminentemente repressora. Nada disso. A PIDE utilizava a inteligência para penetrar no interior dos movimentos, e penetrou profundamente: nas estruturas internas do MPLA, da UNITA e da FNLA. O MPLA diz sempre que “os outros” é que foram sujeitos a infiltrações. Mas o MPLA também o foi, e de que forma! Havia membros do alto escalão do MPLA que trabalhavam directamente ou indirectamente para a PIDE. E forneciam documentos. Então os documentos que havia nos arquivos da PIDE também lá foram parar pelas mãos desses senhores. Que eram dirigentes.
Outro caso descrito no livro: o desvio de armas que iam para os movimentos de libertação e que eram roubadas pelos próprios guerrilheiros, que as vendiam às organizações coloniais que alimentavam esse negócio. Como justifica isso?
Era uma forma de subtrair armas ao dispositivo militar do MPLA, mas também era uma maneira de os órgãos de segurança portugueses conhecerem o tipo de armas que os guerrilheiros utilizavam. Mas há um fenómeno lateral interessantíssimo, que se desenrolou ao longo dos tempos: o abandono deliberado de armas pelos guerrilheiros.
Isso deveu-se a quê?
Medo. Fuga. No início dos anos 1970, quando o general Costa Gomes assume o comando da região militar de Angola, ele começou a utilizar métodos exactamente iguais aos que os americanos usavam no Vietname. Os meios aeromóveis foram mortíferos para a guerrilha, sobretudos os helicópteros equipados com canhões. E os guerrilheiros, permanentemente acossados, fugiam. As chefias abandonavam os seus homens e as armas e debandavam. Chegou um momento em que a PIDE e o exército português andaram recolhendo armas que estavam em poder dos camponeses. E isso atingiu tal dimensão que a direcção da PIDE em Luanda dizia que já não tinha capacidade nem tantos armazéns para acondicionar o armamento recolhido.
Por outro lado, há um episódio contado no livro (pág. 907) que mostra o efeito funesto da propaganda que atribuía múltiplas vitórias ao MPLA: um almoço na mata do Luango que acabou destroçado à bomba. Só ali o MPLA perdeu seis dos seus comandantes, mais tarde dados como vítimas de um acidente de comboio…
O MPLA usa uma propaganda que serve para encobrir tudo. Essa ideia da acção heróica dos guerrilheiros, levando os portugueses adiante de si, sempre foi uma constante no desenrolar da luta. Até se propagandeava que os portugueses estavam condenados a ser atirados ao Atlântico! E o Basil Davidson [jornalista, historiador e africanista inglês, 1914-2010], o grande propagandista das epopeias do MPLA, num célebre artigo publicado em Londres e difundido por toda a parte, diz precisamente que os portugueses estavam no limite da sua capacidade de resistência frente à pujança da guerrilha. E que dali a poucos meses teriam de abandonar Angola ou seriam atirados ao Atlântico. Só que as coisas não corriam como eles propagandeavam, a vitória não estava iminente.




Isso não se devia, em parte, à forma como o MPLA lidava com os seus militantes e os outros movimentos? Isso não atrasava o avanço das forças anticolonialistas?
Internamente havia um esfacelamento. Passava-se para o exterior a mensagem de que a vitória era quase total, que havia uma implantação considerável no território…
E isso não era verdade?
Não, de modo algum. Aliás, nunca houve tomada de território em parte alguma de Angola, isso é outra falácia que eu ponho em causa no livro.
Internamente, havia alguém no MPLA que pusesse em causa esse triunfalismo?
Havia. Vários comandantes chamaram à atenção, dizendo que era preciso haver mais moderação, não tanto ufanismo, que o ufanismo era perigoso. O Janginda, por exemplo, era muito lúcido. Até dizia: nós estamos aqui por uma vontade libertadora, porque as coisas internamente estão muito mal. Era um homem decepcionado com o que se passava na organização, mas, mesmo muito contrariado, dizia: temos de ir em frente.
Voltando à implantação no território…
Essa alegada implantação, e o Neto era o primeiro a vangloriar-se dela, tinha como objectivo conseguir mais apoios internacionais, sobretudo em dinheiro. Recorde-se que na fronteira leste de Angola, a que a separa da Zâmbia, o Kenneth Kaunda consentiu o delineamento de um território vasto onde o MPLA estava instalado. E movimentava-se livremente ali. Mas esse território só existiu teoricamente. Isto serviu de plataforma para captar mais apoios internacionais, ou em material de guerra ou em dinheiro.
Mas a FNLA e a UNITA não faziam o mesmo?
Faziam exactamente o mesmo. Tudo para concitar apoios internacionais.
Mas o MPLA conseguiu mais apoios. Porquê? Convenceu melhor?
Convenceram, sim. Até os próprios soviéticos, e eu dou alguns exemplos, estavam perfeitamente rendidos à palavra do Neto. Por isso é que eu comparo o Neto com uma personagem do Thomas Mann. Ele era um verdadeiro mágico.



Como é que essa imagem, a de mágico, joga com a do título do livro, um ditador?
Mas o Estaline também era um mágico! Mao Tsétung também. Os grandes ditadores foram mágicos. Aliás, o carisma desses homens assenta numa magia.
Pode dizer-se que Agostinho Neto era um homem carismático? É que essa palavra parece assentar melhor, por exemplo, a Amílcar Cabral ou a Samora Machel…
Ele usava de um grande ascendente sobre uma boa parcela dos seus companheiros. Para o exterior, não tinha a aura de um Samora Machel ou de um Amílcar Cabral. Enquanto o Samora ou o Amílcar projectavam, principalmente o Amílcar, uma grande aura e um grande respeito para o exterior, o Neto projectava essa aura para o interior e para uma parcela das suas hostes. Porque o MPLA estava dividido. Os homens do leste não tinham a admiração pelo Neto que tinham os homens do norte.
Falou há pouco de vontade libertadora. Mas como é que isso se conjuga com os episódios terríveis, narrados no livro, da relação do MPLA com os camponeses?
Eles exerceram sobre os camponeses um domínio total, geralmente pela força das armas. A componente terror, medo, esteve sempre presente. A principal preocupação, não só do MPLA como das guerrilhas angolanas em geral, foi sempre fixar os camponeses à terra. Os guerrilheiros dependiam dos camponeses para poderem obter os seus suprimentos alimentares. Só que os fixaram à terra de uma forma terrível.
Não haveria outra forma de os cativar, sem recorrer à opressão?
Eu cito outros casos, por exemplo na América Latina. O Sendero Luminoso e outras guerrilhas (como os Khmers no Camboja) foram forças devastadoras. E o MPLA não queria perder muito tempo. Os alimentos começavam a faltar e eles entenderam que tinham de submeter aquelas populações, e faziam-no de uma forma muito mais violenta quando se tratava de populações que não lhes eram favoráveis. Se entravam numa aldeia que dava apoio ou era potencialmente simpática para a FNLA ou para a UNITA, eles não perdiam tempo: ou massacravam, para criar terror, ou impunham trabalho forçado. E os camponeses não tinham como fugir. Se não cumprissem, eram mortos.
Este livro é, em parte, um grito dos próprios camponeses. Porque, dos seus relatos, fica a ideia de que no silêncio das matas se praticaram grandes crimes.
Justamente porque perdura um grande silêncio acerca das violências cometidas sobre os camponeses, aquela guerra acabou por se transformar numa guerra invisível. Porque tudo se passou no recesso das matas e pouca coisa vinha para o exterior, ou quando vinha obedecia sempre à propaganda arquitectada pelo MPLA. O MPLA é que oferecia os elementos com que os jornalistas iam compor as suas matérias. E muitas nem eram compostas depois das visitas, pois nem punham lá os pés. Ou ficavam em Brazzaville, nas sedes do MPLA, ou nem saíam de Paris ou de Londres.





.
O livro sublinha com particular vigor os momentos mais terríveis da história do MPLA. Mas pode perguntar-se, ao lê-lo: e não há nada de glorioso para contar? No MPLA não há coisas heróicas a par destas coisas terríveis e criminosas?
Há, sim. Há facetas gloriosas (prefiro usar esta palavra). Há facetas luminosas no comportamento de vários comandantes, e eu até os cito e nem escondo a minha simpatia por eles. Foram comandantes verdadeiros, porque jamais ocultaram aquilo que eram as muitas gangrenas internas. Há um que diz: nós estamos no meio dum caos, temos de sair disto, temos de ser verdadeiros para com as populações. E há outro que diz: nós estamos a trair as populações. Este é o lado glorioso do MPLA. O resto, os que tentaram ocultar propagandeando, são o lado negro do MPLA. O da mentira contínua.
Há um momento no livro (pág. 795) onde compara a evolução de Agostinho Neto entre 1963 e 1973, concluindo que “ao colocar a ferros Viriato da Cruz e mais umas dezenas de companheiros seus”, Neto “emergiu ostentando uma nova máscara: a de presidente-assassino.” O que o levou a concluir isto?
O envolvimento do Neto em muitos dos crimes que transcorreram das florestas, não só dele mas da direcção do MPLA, é de responsabilidade moral. Porque eles tinham conhecimento do que se estava a passar. Mesmo os que ainda estão vivos não podem dizer que não tinham conhecimento do que se passava lá dentro. Tinham, sim. Porque chegavam cartas dos tais comandantes que preferiam dizer a verdade a dar informações falaciosas. E como eu acentuo no livro, nunca se fez nada contra isso. Por exemplo: castigava-se por prevaricações de ordem material (desvios, sobretudo de dinheiro) mas quando se tratava de crimes de sangue, cedia-se. Se houve castigos, foram raríssimos. O “Kima Kienda” (Aristides Mateus Cadete), sobrinho do Neto, foi um comandante dos maiores, mas era um assassino. Entoaram-se hinos gloriosos ao grande comandante, ao grande nacionalista, mas foi um grande assassino. O Neto sabia e nunca lhe faltou com apoios. Na cronologia resumida estão lá os actos nefandos que ele praticou!
Essa cronologia, aliás, é penosíssima, porque tem uma lista verdadeiramente arrepiante de crimes, de coisas horríveis… 
Está bem expresso no livro, mas gostava de reiterá-lo aqui. O poder angolano tem-se queixado de que eu liquidei os heróis da história da libertação de Angola. Não é verdade. Há heróis, como os tais comandantes que eu citei e outros (há mais). Mas a figura heróica da luta de libertação foram as camponesas angolanas. Pelas penas que sofreram, as perseguições, as violações. As mulheres foram muito sacrificadas. Elas faziam muitas piruetas para se libertarem das garras da guerrilha, dos soldados.
Conheceu Agostinho Neto pessoalmente. Qual foi a impressão que guardou do primeiro encontro com ele?
Não foi muito lisonjeira. Foi no Futungo de Belas, em Julho ou Agosto de 1975, e eu tinha ido lá com um grupo que estava a trabalhar na obtenção de material de guerra para o MPLA, que estava muito desfalcado de armas. Ora o meu imaginário, em relação ao Agostinho Neto, estava todo ele fertilizado por uma figura majestosa, perante a qual eu me deslumbraria. Sentámo-nos na sala, ele não apareceu logo, mas quando apareceu a sua figura causou-me algum incómodo. Tinha um ventre dilatadíssimo, talvez devido à bebida, avançou em passos lentos, sentou-se, nós levantámo-nos, cumprimentámo-lo, e quando ele começou a falar a minha impressão agravou-se. Era a de um homem sem atractivos. E essa impressão foi-se reforçando nos encontros seguintes.
Esteve alguma vez a sós com Agostinho Neto?
Estive. Duas ou três vezes. Uma marca no Neto, que eu captei logo, foi que ele sempre foi incapaz de dar instruções rigorosas: façam isto ou isto. Nós fazíamos, adivinhando o pensamento do chefe. E eu comecei a sentir-me muito incomodado. Por isso é que no livro eu classifico esta vacuidade no MPLA como uma ilha de monólogos. Porque os próprios comandantes se queixavam: nunca houve instruções ditadas claramente pela cúpula. Tudo ficava ao critério de cada um. Se desse certo, saíam glorificados e eram postos no panteão; se desse para o torto, eram sacrificados. E isto repetia-se.
É curioso que, apesar de ter estado preso na sequência do 27 de Maio, passa com algum recolhimento por esse episódio. Fala da violência desse episódio [alegada tentativa de golpe em Angola que levou, em 1977, a muitas prisões e fuzilamentos], como sempre falou, mas evita falar deter-se no seu caso em particular. Porquê?
Falo do mundo carcerário. Mas tenho tido algum escrúpulo, porque não me quero aproveitar do 27 de Maio para chamar a atenção para aquilo que eu fui: uma vítima. Recuso-me, e tenho inclusive censurado outras pessoas. Houve até quem achasse que devíamos pedir indemnizações, mas eu sempre me opus a isso. Porque a melhor indemnização é o MPLA reconhecer que errou e pedir desculpas. E isso não foi feito.
Quase no final do segundo volume (pág. 1152), inclui na íntegra um relatório assinado pelo comandante “Gato”(Ciel da Conceição Cristóvão), datado de Outubro de 1968, onde ele detalha o processo de execução de três prisioneiros. É um documento particularmente chocante. Escolheu-o entre vários?
Entre muitos. Porque é paradigmático. O que está aí não foi escrito pela PIDE, foi escrito por alguém do MPLA que hoje é general. Esse documento é chocante (até a mim chocou) mas é indesmentível.
Como é que acha que um militante do MPLA crédulo numa história só de glórias e devoto da memória de Agostinho Neto reagirá ao ler este livro?
É difícil responder. Porque o cérebro dessas pessoas é um mundo muito opaco. Pode sentir tudo a ruir à sua volta, porque as coisas funcionam muito à base de crença, não há nenhuma racionalidade no seu comportamento. E o Neto é projectado também nessa dimensão, faz parte das crenças do MPLA. É a crença maior. Se a figura do fundador fosse discutida naturalmente, porque tudo é discutível... Mas Neto é deificado, é visto numa dimensão quase religiosa. Então acredito que haja um grande repúdio pelo livro.
Mas entre os princípios teóricos do movimento e as práticas narradas no livro há chocantes contradições. O que tornou isso possível, no seu entender?
Aqueles homens estavam politicamente muito mal preparados. A preparação militar era a fundamental, mas no capítulo da preparação política houve uma grande fragilidade do MPLA. Dou vários exemplos de homens que não tinham uma concepção política da luta. Para eles, era pegar na arma e fazer fogo o mais possível. Não tinham a concepção de que o inimigo era o colonialismo português. Sabiam vagamente. O que faziam com os camponeses ou com os seus rivais traduz isso: a política estava na ponta do fuzil.
Isso não anda a par com um certo desprezo pelo conhecimento e pelos livros? No seu livro dedica até um capítulo a esse tema. O Neto também alimentava isso?
Alimentava. Ele tem vários discursos onde exterioriza essa aversão aos livros, esse desprezo, projectando-o nos intelectuais, descrevendo-os como figuras que passavam demasiado tempo a ler e não se ocupavam das actividades práticas da organização. Aliás o Neto é o grande fomentador do fenómeno de anti-intelectualismo no movimento.
Não há aí uma contradição com o facto de, ao mesmo tempo, ele ser poeta?
Essa é a minha pergunta, exactamente. E engalado com honrarias de escritor e poeta. Isto embora eu valorize a poesia dele, que tem de ser enquadrada num contexto histórico de mobilização. Quando ele fala nas correntes que agrilhoam o povo angolano, etc. Só que esta mesma imagem, que foi mobilizadora, vai-se aplicar ao MPLA.
O que o terá mantido tão agarrado ao poder até ao final? A ideia do que o poderiam querer afastar, atingir, até matar? Um espírito acossado?
Conhecendo hoje todos os contornos da figura do Neto e o apego dele ao poder, vê-se que ele e os seus acólitos transformavam quaisquer críticas em perigosas ameaças.
No livro, aliás, não faltam descrições de inventonas e falsos golpes…
Os chamados magnicídios [assassínios de grandes homens, de pessoas ilustres], palavra que julgo ainda não fazer parte do vocabulário português comum mas é muito utilizada pelos espanhóis e é uma palavra que eu prezo muito. O Neto criava essa figura, ao longo dos tempos, para justificar acções repressivas e a liquidação de pessoas que lhe podiam fazer sombra. Os intelectuais, sobretudo, que eram figuras suspeitas para ele. Então, o que estava sempre presente era o perigo de ele poder ser eliminado por essas pessoas.
De que maneira é que tudo isso se reflecte na situação actual de Angola?
A tradição de desconfiança, essa paranóia, está bem presente nos actos dos governantes. E a componente militar é ainda muito forte e não tenho qualquer dúvida de que sustenta o poder do José Eduardo dos Santos. E isto é tanto mais perceptível quando vemos que o regimento presidencial é equipado com as armas mais modernas, enquanto as forças armadas (exército, força aérea e marinha) estão um tanto esvaziadas. A força do José Eduardo dos Santos repousa aqui, precisamente, para prevenir qualquer ameaça.
E Angola tem ameaças reais, neste momento?
Não, não tem. A ameaça existe, mas é provocada pela má governação. Costumo dizer que o MPLA, desde as origens, desde que o Neto assumiu o poder, tem dentro de si o seu próprio inimigo. Até hoje. Eles apontam sempre o dedo a outros, à UNITA, a este, àquele, até ao trabalho de um historiador (eles dizem que o meu trabalho é perigoso). Mas o principal inimigo está dentro deles.
O que pode ser feito para mudar esse paradigma?
Com a hegemonia que eles implantaram é muito difícil. Terá de haver uma catarse muito grande. Mas com esta geração, herdeira da tradição da luta (ainda há alguns comandantes vivos e estão no poder), essa catarse não é possível.
Então Angola terá de esperar por novas gerações para que alguma coisa mude?
A pluralidade política, pela qual estes homens têm a maior aversão, não é possível neste momento. Quando eu defendo uma reconciliação nacional é porque ela é indispensável à construção de um novo projecto. Não é possível pensar num novo projecto para Angola, económico, social, político, sem uma reconciliação. Aquele país tem de se conformar consigo próprio. Todos praticaram os maiores crimes: MPLA, FNLA, UNITA. Todos têm heranças muito feias. Enquanto não houver um reconhecimento destes crimes, como fez a África do Sul, não é possível um novo projecto. Nem há paz. (fonte:jornal Público)

Sem comentários:

Enviar um comentário