sábado, 20 de fevereiro de 2021

Os tribunais não existem para fazer justiça, mas tão-somente para aplicar as leis. Diz com toda a propriedade Francisco Teixeira da Mota

 

A falar é que se (a)prende

 O rapper espanhol Pablo Hasél foi, há dias, detido para cumprir uma pena de nove meses de prisão — a que acrescerão mais dois anos e três meses se não pagar, como é provável, as multas a que foi condenado — pela prática de três crimes, cometidos exclusivamente através de palavras: insultos à Coroa, apologia do terrorismo e insultos às instituições do Estado.   Saliente-se que o próprio tribunal de recurso, que reduziu a pena, reconheceu que as expressões usadas não criaram qualquer risco para a ordem pública nem configuraram um incitamento à prática de quaisquer crimes. Enquanto este cantor espanhol entrava nos calabouços, o rei emérito Juan Carlos, um dos principais insultados por Pablo Hasél, gozava tranquilamente as suas imunidades e impunidades nos Emirados Árabes Unidos, após aí se ter refugiado na sequência dos escândalos de corrupção em que está envolvido. 
 Esta disparidade na actuação da máquina da justiça criminal — de que se encontram, permanentemente, casos similares — é sempre algo de chocante quando nos debruçamos sobre o funcionamento da Justiça. 
 E, no entanto, é assim mesmo o sistema: na verdade, os tribunais não existem para fazer justiça, mas tão-somente para aplicar as leis. Se a isto acrescentarmos as possibilidades que têm os transgressores, pertencentes às elites sociais, de “torcer” o sistema judicial a seu favor, fácil é concluir que nada tem de surpreendente o rapper ir para a prisão e o rei (sem mérito) ir para Abu Dhabi. 
 O evidente absurdo que é condenar um cidadão, num país democrático, a uma pena de prisão efectiva por crimes como a injúria, a calúnia, a difamação e o insulto, nomeadamente quando estão em causa figuras do poder, foi sublinhado por um abaixo-assinado de mais de 200 personalidades do mundo das artes em Espanha solidárias com o cantor. 
 E o Governo espanhol já veio anunciar que “o Ministério da Justiça vai propor a revisão dos crimes relativos a excessos no exercício da liberdade de expressão para que somente sejam punidas as condutas que claramente envolvam a criação de risco para a ordem pública ou provocação de algum tipo de conduta violenta, com penas dissuasoras, mas não privativas da liberdade”. 
 Mais acrescentou o Governo espanhol que “na sua proposta de lei considerará que aqueles excessos verbais cometidos no contexto de manifestações artísticas, culturais ou intelectuais devem permanecer à margem da sanção penal”. Uma das criminalizações que, certamente, deixarão de existir será a que proíbe a utilização da imagem do rei e de outras figuras da família real de “qualquer forma que possa prejudicar o prestígio da Coroa”. De resto, já em 2018, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) condenara a Espanha por violação da liberdade de expressão, no caso Stern Taulats e Rora Capellera contra Espanha, exactamente por os tribunais espanhóis terem condenado, pelo crime de insultos à Coroa, dois catalães que, numa
manifestação pública, tinham pegado fogo a uma imagem, de grandes dimensões, do rei e da rainha virados de cabeça para baixo, o que, no entender do Tribunal Constitucional espanhol, ultrapassava os limites da liberdade de expressão para se situar no domínio do discurso de ódio ou do incitamento à violência. 
 Para o TEDH, pelo contrário, esta era uma forma de discurso, claramente simbólico e de intervenção política, que não devia ser proibido numa sociedade democrática. Espera-se, pois, que Pablo Hasél, para além de um mártir, seja um marco importante na expansão dos limites da liberdade de expressão em Espanha. E, claro, que seja restituído à liberdade rapidamente! P.S.: O facto de o novo presidente do Tribunal Constitucional ser uma pessoa com opiniões marcadamente conservadoras com grandes dificuldades em se relacionar com a homossexualidade não me parece que o impeça de exercer plenamente as suas novas funções, mas já o facto de ter afirmado “estou convencido de que existem mais vegetarianos do que homossexuais em Portugal — e, porventura, até mais adeptos do Dalai Lama. Não beneficiam, porém, do mesmo nível de acesso aos jornais, aos microfones das rádios e às objetivas das televisoes” me parece não abonar muito quanto às suas competências intelectuais e sociais. --Teixeira da Mota, advogado



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