A falar é que se (a)prende
O rapper espanhol Pablo Hasél
foi, há dias, detido para
cumprir uma pena de nove
meses de prisão — a que
acrescerão mais dois anos e três
meses se não pagar, como é
provável, as multas a que foi condenado —
pela prática de três crimes, cometidos
exclusivamente através de palavras: insultos à
Coroa, apologia do terrorismo e insultos às
instituições do Estado. Saliente-se que o
próprio tribunal de recurso, que reduziu a
pena, reconheceu que as expressões usadas
não criaram qualquer risco para a ordem
pública nem configuraram um incitamento à
prática de quaisquer crimes. Enquanto este
cantor espanhol entrava nos calabouços, o rei
emérito Juan Carlos, um dos principais
insultados por Pablo Hasél, gozava
tranquilamente as suas imunidades e
impunidades nos Emirados Árabes Unidos,
após aí se ter refugiado na sequência dos
escândalos de corrupção em que está
envolvido.
Esta disparidade na actuação da máquina
da justiça criminal — de que se encontram,
permanentemente, casos similares — é
sempre algo de chocante quando nos
debruçamos sobre o funcionamento da
Justiça.
E, no entanto, é assim mesmo o
sistema: na verdade, os tribunais não existem
para fazer justiça, mas tão-somente para
aplicar as leis. Se a isto acrescentarmos as
possibilidades que têm os transgressores,
pertencentes às elites sociais, de “torcer” o
sistema judicial a seu favor, fácil é concluir
que nada tem de surpreendente o rapper ir
para a prisão e o rei (sem mérito) ir para Abu
Dhabi.
O evidente absurdo que é condenar um
cidadão, num país democrático, a uma pena
de prisão efectiva por crimes como a injúria, a
calúnia, a difamação e o insulto,
nomeadamente quando estão em causa figuras do poder, foi sublinhado por um
abaixo-assinado de mais de 200
personalidades do mundo das artes em
Espanha solidárias com o cantor.
E o Governo
espanhol já veio anunciar que “o Ministério da
Justiça vai propor a revisão dos crimes relativos
a excessos no exercício da liberdade de
expressão para que somente sejam punidas as
condutas que claramente envolvam a criação de
risco para a ordem pública ou provocação de
algum tipo de conduta violenta, com penas
dissuasoras, mas não privativas da liberdade”.
Mais acrescentou o Governo espanhol que
“na sua proposta de lei considerará que aqueles excessos verbais cometidos no contexto de
manifestações artísticas, culturais ou
intelectuais devem permanecer à margem da
sanção penal”.
Uma das criminalizações que, certamente,
deixarão de existir será a que proíbe a
utilização da imagem do rei e de outras figuras
da família real de “qualquer forma que possa
prejudicar o prestígio da Coroa”. De resto, já
em 2018, o Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos (TEDH) condenara a Espanha por
violação da liberdade de expressão, no caso
Stern Taulats e Rora Capellera contra
Espanha, exactamente por os tribunais
espanhóis terem condenado, pelo crime de
insultos à Coroa, dois catalães que, numamanifestação pública, tinham pegado fogo a
uma imagem, de grandes dimensões, do rei e
da rainha virados de cabeça para baixo, o que,
no entender do Tribunal Constitucional
espanhol, ultrapassava os limites da liberdade
de expressão para se situar no domínio do
discurso de ódio ou do incitamento à
violência.
Para o TEDH, pelo contrário, esta
era uma forma de discurso, claramente
simbólico e de intervenção política, que não
devia ser proibido numa sociedade
democrática.
Espera-se, pois, que Pablo Hasél, para além
de um mártir, seja um marco importante na
expansão dos limites da liberdade de
expressão em Espanha. E, claro, que seja
restituído à liberdade rapidamente!
P.S.: O facto de o novo presidente do
Tribunal Constitucional ser uma pessoa com
opiniões marcadamente conservadoras com
grandes dificuldades em se relacionar com a
homossexualidade não me parece que o
impeça de exercer plenamente as suas novas
funções, mas já o facto de ter afirmado “estou
convencido de que existem mais vegetarianos
do que homossexuais em Portugal — e,
porventura, até mais adeptos do Dalai Lama.
Não beneficiam, porém, do mesmo nível de
acesso aos jornais, aos microfones das rádios e
às objetivas das televisoes” me parece não
abonar muito quanto às suas competências
intelectuais e sociais. --Teixeira da Mota, advogado
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