quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Adeus, liberdade de expressão? A “Lei Mordaça” na Espanha dos Borbons também existe em Portugal .É aplicada com diligência pelos juízes fascistas portugueses

 


 Pablo Rivadulla Duró, mais conhecido pelo seu nome artístico Pablo Hasél, tem apenas 32 anos mas já conta como uma carreira musical de 15, em que produziu e editou 49 álbuns. Paradoxalmente, são muito poucos os que conhecem as suas canções e muito menos os que assistiram aos seus concertos. Isabel Medina Pe Pralta conta ainda menos fãs, por só agora ter chegado à idade adulta e por estar ainda a dar os primeiros passos como uma ilustre política “falangista e nacional-socialista”, como a própria orgulhosamente se define, devido à sua admiração por tiranos e tiranetes, como Adolfo Hitler, Francisco Franco e José António Primo de Rivera. 
 Só que as redes sociais, as eleições na Catalunha e as eternas questiúnculas que dividem Espanha e os espanhóis converteram Hasél e Peralta nas mais recentes estrelas do debate à volta da liberdade de expressão a que o reino de Filipe VI assiste. Até ao início deste mês, tanto o rapper como a suposta estudante da Universidade Complutense de Madrid viviam num regime de semianonimato, mas a vida de ambos mudou a 16 de fevereiro. Nesta data, a Justiça do país vizinho anunciou uma investigação formal para apurar se houve ou não “algum delito relativo ao exercício dos direitos fundamentais” num polémico comício, realizado três dias antes, em que a jovem neofascista foi a principal oradora. 

 Nesse encontro, no cemitério de La Almudena, na capital do país, um grupo de três centenas de pessoas teceu loas aos regimes nazi e franquista, além de ter exaltado as façanhas da Divisão Azul, a unidade militar espanhola que combateu sob comando hitleriano na frente russa, durante a II Guerra Mundial. A iniciativa incluiu ainda uma cerimónia religiosa, em que um sacerdote católico perorou sobre o facto de o “marxismo continuar a impedir a paz nas nossas sociedades”, enquanto os assistentes anuíam e manifestavam a “suprema obrigação de lutar por Espanha e pela Europa”. De qualquer forma, o discurso mais aplaudido foi proferido por Isabel Medina Peralta que se ataviou a rigor para a ocasião, com uma camisa azul da Falange: “O inimigo será sempre o mesmo, ainda que se apresente com diferentes máscaras. Porque nada é mais certo do que esta afirmação – o judeu é o culpado!”. Estas declarações antissemitas tornaram- -se virais no mundo digital, e a jovem, que é filha de um antigo autarca do PP e da diretora de uma escola budista nas Canárias, teve direito a uma imediata e inusitada fama. O Twitter suspendeu-lhe a conta pessoal, a Federação das Comunidades Judaicas veio pedir que não fiquem impunes os “insultos”, e algumas organizações não-governamentais anunciaram que pretendem apresentar ações legais contra a ativista ruiva que, numa conversa com o jornal digital El Español, se mostrou tranquila e disposta a morrer pelas suas ideias: “Sei que acabarei na prisão, seja agora ou dentro de uns anos”, admite a personagem que confessa ser uma discípula de Ramiro Ledesma, o intelectual e ideólogo do nacional-sindicalismo espanhol – entenda-se fascismo –, executado aos 31 anos por milícias socialistas radicais, em 1936, no início da Guerra Civil Espanhola.

 REVOLTA DA CALÇADA

 Também Pablo Hasél viveu uma terça-feira, 16, deveras agitada. Após se barricar, durante 24 horas, na reitoria da Universidade de Lérida, instituição que nunca frequentou por nem o Ensino Secundário ter concluído, o rapper cumpriu meticulosamente os seus planos: ser “sequestrado” da forma mais mediática possível. Convidou dezenas de amigos e de conhecidos para o acompanharem e dificultarem a missão dos Mossos d’Esquadra (a polícia catalã), através de vídeos que fossem logo publicados online, de modo a difundir-se a “repressão judicial e política” e a “luta pela liberdade de expressão”.
 
 Condenado, em última instância, pelo Tribunal Supremo do país a nove meses e um dia de prisão por enaltecer o terrorismo e por injúrias e calúnias à monarquia e às forças de segurança – e ainda obrigado a pagar uma multa de 30 mil euros pelos mesmos motivos –, os magistrados deram como provado que Hasél é “reincidente e não tem intenção de reparar moralmente os danos causados e persiste na sua atitude antissocial”. Em causa estão as canções e, sobretudo, os tweets do músico a insultar e a ameaçar inúmeras figuras públicas, ao longo da última década. 
 A sua detenção, que viria a decorrer de forma pacífica, acabaria por ter um enorme eco, na tarde desse mesmo dia, no Parlamento nacional, em Madrid. Albert Botran, um deputado catalão da CUP (Candidatura de Unidade Popular, formação independentista e de extrema-esquerda), aproveitou um debate no hemiciclo sobre a igualdade de género para pôr a tocar no seu telemóvel uma das canções de Pablo Hásel. Foi quanto bastou para as diferentes bancadas iniciarem uma acalorada discussão sobre a qualidade da democracia espanhola e a necessidade de se proceder à reforma do Código Penal e, em particular, à derrogação de vários artigos daquela que é conhecida como a “Lei Mordaça”, aprovada em 2015, ainda durante o consulado conservador do PP e de Mariano Rajoy. 
 Os socialistas do PSOE e o atual primeiro-ministro, Pedro Sánchez, tinham já mostrado disponibilidade para negociar esta questão durante a campanha para as eleições na Catalunha, que decorreram no Dia dos Namorados e que ditaram uma abstenção recorde e a vitória dos partidos independentistas, mas a prisão de Hásel precipitou todo o processo. A Unidas Podemos, partido que integra a coligação governamental de Sánchez, uniu-se a várias forças da oposição para denunciar um facto que consideram inaceitável: “O Estado espanhol é o país com mais artistas detidos em todo o mundo.” Esta delicada conclusão resulta de um relatório da Freemuse, organização que pugna pela liberdade artística e tem o estatuto de consultora da UNESCO e do Conselho Económico e Social da ONU. Ora segundo o último relatório elaborado por esta entidade, divulgado em abril passado e com dados referentes a 2019, Espanha tem 14 artistas atrás das grades, um número superior ao que se regista no Irão (13), na Turquia (9), na Birmânia (8) e no Egito (6). Um ranking que tem vindo a suscitar muitas dúvidas e outras tantas indignações no país vizinho, com duas centenas de criadores espanhóis a invocarem este documento num manifesto crítico, em que se pede a liberdade de Pablo Hasél, e que tem o ator Javier Bardem e os cineastas Pedro Almodóvar e Fernando Trueba como principais subscritores. 

  Foi neste contexto que se iniciou, na noite de 16 de fevereiro, uma vaga de violência que alastrou a 80 localidades catalãs e a várias metrópoles da Península Ibérica. Os protestos, os distúrbios, as pilhagens e os atos de vandalismo fizeram com que alguns comentadores falassem numa revolta de los adoquines (revolta das pedras da calçada) que, só em Barcelona, provocou uma centena de detenções, quase dois milhões de euros em prejuízos materiais e ainda dezenas de feridos, incluindo vários agentes de segurança e uma jovem de 19 anos que perdeu um olho ao ser atingida por uma flash-ball (tipo de munição usada pela Brima a polícia antimotim) localmente conhecida por “bala de foam” (bala de esponja). 

 Na madrugada da última terça-feira, 23, as manifestações já mobilizavam muito pouca gente, mas a polémica subsiste. “Com 40% de desemprego juvenil, a Espanha é, neste momento, um barril de pólvora, e podemos estar perante um ciclo de protestos sociais explosivos”, escreveu, no diário La Vanguardia, Enric Juliana. Para este e muitos outros comentadores, o debate sobre a liberdade de expressão reflete as fraturas do país e a incapacidade da classe política em lidar com os desafios nacionais. Uma sondagem publicada por El Confidencial, no último fim de semana, reflete isso mesmo: 63% dos espanhóis acredita que existe liberdade de expressão, mas só 41% dos catalães dizem o mesmo e apenas 18% dos votantes e simpatizantes do Podemos têm essa opinião. Portanto, não é estranhar que a Amnistia Internacional e até o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos continuem a criticar o regime espanhol pela Lei Mordaça. Convém sublinhar, porém, que Pablo Hasél é apenas o último exemplo de uma longa lista de casos que inclui Valtònic, rapper obrigado a exilar-se na Bélgica, em 2018, após ter sido também condenado por exaltação ao terrorismo, ou Abel Azcona, artista plástico, performer e ativista que, nos últimos dois anos, passou a viver entre Lisboa e Nova Iorque, na sequência de sentenças judiciais que lhe foram desfavoráveis. Mas será que faz sentido comparar o que se passa em Espanha com o resto do mundo, onde os direitos liberdades e garantias são ostensivamente ignorados?

AS ILHAS DA CENSURA 

Os artistas espanhóis podem ter muitas razões de queixa por zurzirem Juan Carlos e Felipe VI, mas podem dar graças por não viverem no país onde manda o rei Maha Vajiralongkorn. A Tailândia é uma monarquia constitucional, mas o crime de lesa-majestade pode equivaler a uma longa pena de prisão. Que o diga Anchan Peelert, uma antiga funcionária pública, condenada, em janeiro, a 43 anos de cárcere por ter partilhado vídeos considerados difamatórios para a família real. A pena aplicada, sem precedentes nas últimas décadas e reduzida para metade da inicialmente prevista, porque a sexagenária se deu como culpada, é um sinal de que o regime de Banguecoque pretende ser implacável com o movimento de protesto iniciado há quase um ano, bem como desviar as atenções da forma caótica como tem gerido a pandemia e a economia. Os estudantes e a oposição exigem – até agora sem êxito – que se reveja a Constituição e se reduzam os poderes dos militares e do excêntrico monarca que passa mais tempo na Alemanha do que em Banguecoque – e cujas aventuras amorosas incluem um affair com uma enfermeira que, depois, ascendeu a general e ainda pode vir a ser coroada como “segunda rainha”. Algo equiparável está a acontecer na última monarquia absoluta de África, Eswatini, a antiga Suazilândia. Mswati III continua a levar uma vida de luxo e a fazer extravagâncias, enquanto os seus súbditos se afundam cada vez mais na pobreza. E nem a Covid-19 o atrapalha. Infetado com a doença já em 2021, recebeu ajuda e tratamento de Taiwan, sem que tal o tivesse impedido de calar as poucas vozes críticas que se habilitavam a ser condenadas por “alta traição”. Uma situação que os Repórteres sem Fronteiras consideram ilustrativa do que está a acontecer em várias partes do continente. Nesta semana, um dos líderes da oposição ruandesa, Seif Bamporiki, foi misteriosamente assassinado na África do Sul e, mais uma vez, as suspeitas recaem no regime liderado por Paul Kagame. No último ano e a pretexto da crise sanitária global, o Presidente intensificou a perseguição aos críticos e deu-se até ao luxo de sequestrar um dos seus inimigos de estimação, Paul Rusesabagina, figura imortalizada num filme de Hollywood sobre o genocídio no país, Hotel Ruanda, protagonizado por Don Cheadle. Acusado de terrorismo, Rusesabagina habilita-se a enfrentar um pelotão de fuzilamento, a não ser que a União Europeia e a administração Biden intercedam por ele. 

  É precisamente a pressão internacional que tornou possível denunciar os abusos que estão a ocorrer naquela que é, muitas vezes, designada como a maior democracia do mundo, a Índia. Caso contrário, o que teria acontecido a Disha Ravi, de 22 anos, uma ambientalista detida neste mês? Acusada de estar envolvida no movimento dos agricultores que contestam as políticas do governo nacionalista hindu, liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, a jovem conta com a solidariedade e o empenho de figuras como Rihanna e Greta Thunberg para a sua libertação. A reforma agrária apregoada pelo executivo de Nova Deli pode ter os dias contados, mas a vaga repressiva parece estar para durar. Palaniappan Chidambaram, um antigo ministro do Interior, considera que o país está “prestes a tornar-se um teatro do absurdo”, e a jornalista Tavleen Singh fala em “paranoia” para referir-se aos estudantes, intelectuais e humoristas que estão a ser encarcerados por simples comentários e piadas. A censura começa a ser uma prática comum, as plataformas internacionais de streaming, como a Netflix, enfrentam desafios crescentes para operar, e nem as vedetas de Bollywood escapam, como Deepika Pakukone, a atriz mais bem paga da Índia, alvo das críticas e das ameaças das milícias hindus. 

 Ao longo de 2020, o número de profissionais de comunicação social assassinados em todo o mundo duplicou relativamente ao ano anterior, e a explicação, no entender do Comité para a Proteção dos Jornalistas, deve-se em larga medida à pandemia e à forma como esta está a ser instrumentalizada pelos governos. Do Afeganistão ao México, passando pelas Filipinas e pelas antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central, são muitos os exemplos de impunidade e de recuo global na liberdade de expressão. Na Rússia, personagens como Alexei Navalny ou a jornalista Irina Slavina (obrigada a suicidar-se, em outubro, devido aos seus trabalhos de investigação e ao assédio constante das autoridades) são testemunho do que está a acontecer um pouco por todo o lado. Provocador como Pablo Hasél, o presidente do Parlamento russo, Vyacheslav Volodin, afiança que a Rússia é “a última ilha da liberdade” ao nível planetário. ---VISÃO






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