Pablo Rivadulla Duró, mais conhecido pelo seu nome
artístico Pablo Hasél, tem apenas 32 anos mas já conta
como uma carreira musical de 15, em que produziu e
editou 49 álbuns. Paradoxalmente, são muito poucos
os que conhecem as suas canções e muito menos os
que assistiram aos seus concertos. Isabel Medina Pe
Pralta conta ainda menos fãs, por só agora ter chegado
à idade adulta e por estar ainda a dar os primeiros
passos como uma ilustre política “falangista e nacional-socialista”, como a própria orgulhosamente se
define, devido à sua admiração por tiranos e tiranetes,
como Adolfo Hitler, Francisco Franco e José António
Primo de Rivera.
Só que as redes sociais, as eleições na Catalunha
e as eternas questiúnculas que dividem Espanha e
os espanhóis converteram Hasél e Peralta nas mais
recentes estrelas do debate à volta da liberdade de
expressão a que o reino de Filipe VI assiste. Até ao
início deste mês, tanto o rapper como a suposta estudante da Universidade Complutense de Madrid viviam
num regime de semianonimato, mas a vida de ambos
mudou a 16 de fevereiro. Nesta data, a Justiça do país
vizinho anunciou uma investigação formal para apurar
se houve ou não “algum delito relativo ao exercício
dos direitos fundamentais” num polémico comício,
realizado três dias antes, em que a jovem neofascista
foi a principal oradora.
Nesse encontro, no cemitério de La Almudena, na
capital do país, um grupo de três centenas de pessoas
teceu loas aos regimes nazi e franquista, além de ter
exaltado as façanhas da Divisão Azul, a unidade militar espanhola que combateu sob comando hitleriano na frente russa, durante a II Guerra Mundial. A
iniciativa incluiu ainda uma cerimónia religiosa, em
que um sacerdote católico perorou sobre o facto de
o “marxismo continuar a impedir a paz nas nossas
sociedades”, enquanto os assistentes anuíam e manifestavam a “suprema obrigação de lutar por Espanha
e pela Europa”. De qualquer forma, o discurso mais
aplaudido foi proferido por Isabel Medina Peralta que
se ataviou a rigor para a ocasião, com uma camisa azul
da Falange: “O inimigo será sempre o mesmo, ainda
que se apresente com diferentes máscaras. Porque
nada é mais certo do que esta afirmação – o judeu é
o culpado!”. Estas declarações antissemitas tornaram-
-se virais no mundo digital, e a jovem, que é filha de
um antigo autarca do PP e da diretora de uma escola
budista nas Canárias, teve direito a uma imediata
e inusitada fama. O Twitter suspendeu-lhe a conta
pessoal, a Federação das Comunidades Judaicas veio
pedir que não fiquem impunes os “insultos”, e algumas organizações não-governamentais anunciaram
que pretendem apresentar ações legais contra a
ativista ruiva que, numa conversa com o jornal
digital El Español, se mostrou tranquila e disposta a morrer pelas suas ideias: “Sei que acabarei na
prisão, seja agora ou dentro de uns anos”, admite
a personagem que confessa ser uma discípula
de Ramiro Ledesma, o intelectual e ideólogo do
nacional-sindicalismo espanhol – entenda-se
fascismo –, executado aos 31 anos por milícias
socialistas radicais, em 1936, no início da Guerra
Civil Espanhola.
REVOLTA DA CALÇADA
Também Pablo Hasél viveu uma terça-feira,
16, deveras agitada. Após se barricar, durante
24 horas, na reitoria da Universidade de Lérida, instituição que nunca frequentou por nem
o Ensino Secundário ter concluído, o rapper
cumpriu meticulosamente os seus planos: ser
“sequestrado” da forma mais mediática possível.
Convidou dezenas de amigos e de conhecidos
para o acompanharem e dificultarem a missão
dos Mossos d’Esquadra (a polícia catalã), através
de vídeos que fossem logo publicados online,
de modo a difundir-se a “repressão judicial e
política” e a “luta pela liberdade de expressão”.
Condenado, em última instância, pelo Tribunal Supremo do país a nove meses e um dia de
prisão por enaltecer o terrorismo e por injúrias
e calúnias à monarquia e às forças de segurança
– e ainda obrigado a pagar uma multa de 30 mil
euros pelos mesmos motivos –, os magistrados
deram como provado que Hasél é “reincidente
e não tem intenção de reparar moralmente os
danos causados e persiste na sua atitude antissocial”. Em causa estão as canções e, sobretudo, os
tweets do músico a insultar e a ameaçar inúmeras figuras públicas, ao longo da última década.
A sua detenção, que viria a decorrer de forma
pacífica, acabaria por ter um enorme eco, na
tarde desse mesmo dia, no Parlamento nacional,
em Madrid. Albert Botran, um deputado catalão da CUP (Candidatura de Unidade Popular,
formação independentista e de extrema-esquerda), aproveitou um debate no hemiciclo
sobre a igualdade de género para pôr a tocar no
seu telemóvel uma das canções de Pablo Hásel.
Foi quanto bastou para as diferentes bancadas
iniciarem uma acalorada discussão sobre a qualidade da democracia espanhola e a necessidade
de se proceder à reforma do Código Penal e, em
particular, à derrogação de vários artigos daquela
que é conhecida como a “Lei Mordaça”, aprovada
em 2015, ainda durante o consulado conservador
do PP e de Mariano Rajoy.
Os socialistas do PSOE e o atual primeiro-ministro, Pedro Sánchez, tinham já mostrado
disponibilidade para negociar esta questão
durante a campanha para as eleições na Catalunha, que decorreram no Dia dos Namorados e que ditaram uma abstenção recorde e
a vitória dos partidos independentistas, mas
a prisão de Hásel precipitou todo o processo.
A Unidas Podemos, partido que integra a coligação governamental de Sánchez, uniu-se a várias forças da oposição para denunciar um
facto que consideram inaceitável: “O Estado
espanhol é o país com mais artistas detidos
em todo o mundo.” Esta delicada conclusão
resulta de um relatório da Freemuse, organização que pugna pela liberdade artística e
tem o estatuto de consultora da UNESCO e
do Conselho Económico e Social da ONU. Ora
segundo o último relatório elaborado por esta
entidade, divulgado em abril passado e com
dados referentes a 2019, Espanha tem 14 artistas atrás das grades, um número superior
ao que se regista no Irão (13), na Turquia (9),
na Birmânia (8) e no Egito (6). Um ranking que
tem vindo a suscitar muitas dúvidas e outras
tantas indignações no país vizinho, com duas
centenas de criadores espanhóis a invocarem
este documento num manifesto crítico, em que se pede a liberdade de Pablo Hasél, e que
tem o ator Javier Bardem e os cineastas Pedro
Almodóvar e Fernando Trueba como principais subscritores.
Foi neste contexto que se iniciou, na noite
de 16 de fevereiro, uma vaga de violência que
alastrou a 80 localidades catalãs e a várias metrópoles da Península Ibérica. Os protestos, os
distúrbios, as pilhagens e os atos de vandalismo
fizeram com que alguns comentadores falassem numa revolta de los adoquines (revolta
das pedras da calçada) que, só em Barcelona,
provocou uma centena de detenções, quase
dois milhões de euros em prejuízos materiais
e ainda dezenas de feridos, incluindo vários
agentes de segurança e uma jovem de 19 anos
que perdeu um olho ao ser atingida por uma
flash-ball (tipo de munição usada pela Brima a polícia antimotim) localmente conhecida por
“bala de foam” (bala de esponja).
Na madrugada da última terça-feira, 23, as
manifestações já mobilizavam muito pouca
gente, mas a polémica subsiste. “Com 40% de
desemprego juvenil, a Espanha é, neste momento, um barril de pólvora, e podemos estar
perante um ciclo de protestos sociais explosivos”,
escreveu, no diário La Vanguardia, Enric Juliana.
Para este e muitos outros comentadores, o debate
sobre a liberdade de expressão reflete as fraturas
do país e a incapacidade da classe política em
lidar com os desafios nacionais. Uma sondagem
publicada por El Confidencial, no último fim de
semana, reflete isso mesmo: 63% dos espanhóis
acredita que existe liberdade de expressão, mas
só 41% dos catalães dizem o mesmo e apenas
18% dos votantes e simpatizantes do Podemos
têm essa opinião. Portanto, não é estranhar que a
Amnistia Internacional e até o Tribunal Europeu
dos Direitos Humanos continuem a criticar o regime espanhol pela Lei Mordaça. Convém sublinhar, porém, que Pablo Hasél é apenas o último
exemplo de uma longa lista de casos que inclui
Valtònic, rapper obrigado a exilar-se na Bélgica,
em 2018, após ter sido também condenado por
exaltação ao terrorismo, ou Abel Azcona, artista
plástico, performer e ativista que, nos últimos
dois anos, passou a viver entre Lisboa e Nova
Iorque, na sequência de sentenças judiciais que
lhe foram desfavoráveis. Mas será que faz sentido comparar o que se passa em Espanha com
o resto do mundo, onde os direitos liberdades e
garantias são ostensivamente ignorados?
AS ILHAS DA CENSURA
Os artistas espanhóis podem ter muitas razões
de queixa por zurzirem Juan Carlos e Felipe
VI, mas podem dar graças por não viverem no
país onde manda o rei Maha Vajiralongkorn. A
Tailândia é uma monarquia constitucional, mas
o crime de lesa-majestade pode equivaler a uma
longa pena de prisão. Que o diga Anchan Peelert,
uma antiga funcionária pública, condenada,
em janeiro, a 43 anos de cárcere por ter partilhado vídeos considerados difamatórios para a
família real. A pena aplicada, sem precedentes
nas últimas décadas e reduzida para metade da
inicialmente prevista, porque a sexagenária se
deu como culpada, é um sinal de que o regime
de Banguecoque pretende ser implacável com
o movimento de protesto iniciado há quase um
ano, bem como desviar as atenções da forma
caótica como tem gerido a pandemia e a economia. Os estudantes e a oposição exigem – até
agora sem êxito – que se reveja a Constituição
e se reduzam os poderes dos militares e do
excêntrico monarca que passa mais tempo na
Alemanha do que em Banguecoque – e cujas
aventuras amorosas incluem um affair com
uma enfermeira que, depois, ascendeu a general
e ainda pode vir a ser coroada como “segunda
rainha”. Algo equiparável está a acontecer na
última monarquia absoluta de África, Eswatini, a antiga Suazilândia. Mswati III continua a
levar uma vida de luxo e a fazer extravagâncias,
enquanto os seus súbditos se afundam cada vez
mais na pobreza. E nem a Covid-19 o atrapalha.
Infetado com a doença já em 2021, recebeu ajuda e tratamento de Taiwan, sem que tal o tivesse impedido de calar as poucas vozes críticas
que se habilitavam a ser condenadas por “alta
traição”. Uma situação que os Repórteres sem
Fronteiras consideram ilustrativa do que está a
acontecer em várias partes do continente. Nesta
semana, um dos líderes da oposição ruandesa,
Seif Bamporiki, foi misteriosamente assassinado
na África do Sul e, mais uma vez, as suspeitas
recaem no regime liderado por Paul Kagame.
No último ano e a pretexto da crise sanitária
global, o Presidente intensificou a perseguição
aos críticos e deu-se até ao luxo de sequestrar
um dos seus inimigos de estimação, Paul Rusesabagina, figura imortalizada num filme de
Hollywood sobre o genocídio no país, Hotel
Ruanda, protagonizado por Don Cheadle. Acusado de terrorismo, Rusesabagina habilita-se a
enfrentar um pelotão de fuzilamento, a não ser
que a União Europeia e a administração Biden
intercedam por ele.
É precisamente a pressão internacional que
tornou possível denunciar os abusos que estão
a ocorrer naquela que é, muitas vezes, designada
como a maior democracia do mundo, a Índia.
Caso contrário, o que teria acontecido a Disha
Ravi, de 22 anos, uma ambientalista detida neste
mês? Acusada de estar envolvida no movimento
dos agricultores que contestam as políticas do
governo nacionalista hindu, liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, a jovem conta
com a solidariedade e o empenho de figuras como
Rihanna e Greta Thunberg para a sua libertação.
A reforma agrária apregoada pelo executivo de Nova Deli pode ter os dias contados, mas a vaga
repressiva parece estar para durar. Palaniappan
Chidambaram, um antigo ministro do Interior,
considera que o país está “prestes a tornar-se um
teatro do absurdo”, e a jornalista Tavleen Singh
fala em “paranoia” para referir-se aos estudantes,
intelectuais e humoristas que estão a ser encarcerados por simples comentários e piadas. A censura
começa a ser uma prática comum, as plataformas
internacionais de streaming, como a Netflix, enfrentam desafios crescentes para operar, e nem
as vedetas de Bollywood escapam, como Deepika
Pakukone, a atriz mais bem paga da Índia, alvo
das críticas e das ameaças das milícias hindus.
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