Um Tarrafal saído de uma caixa de sapatos
Em 1948, Guilherme da Costa Carvalho foi preso na estação do Rossio e deportado para o Tarrafal.
A sua mãe, D.Herculana, como aqui se disse, montou uma corajosa campanha de denúncia contra o campo da morte.
Nesta foto e em muitos documentos , enviados ao General Norton de Matos pede o apoio do líder oposicionista para todos os presos.
E Norton deu-o.
Foi uma bufa abrantina que denunciou Guilherme da Costa Carvalho.
ma
vénia ao Arquivo de Ponte de Lima
É um livro/álbum sob vários aspetos excecional, inclusive como testemunho sobre o “campo da morte lenta”, sobre um
grande combatente contra o fascismo que nele penou, Guilherme da Costa Carvalho, e a devoção e coragem dos seus pais.
Que deixaram as fotos e cartas que integram o volume da autoria do bisneto/neto, o destacado fotógrafo João Pina
A entrada do ex campo de concentração do Tarrafal, hoje, fotogrado
por João Pina (abaixo na foto) Entre 1949 e 1951, os pais do militante comunista Guilherme da Costa
Carvalho visitaram o filho por duas
vezes no campo de concentração,
onde estava desterrado. No livro
Tarrafal, João Pina mostra as espantosas fotografias então tiradas pelo
seu bisavô Luiz e publica algumas
das mais de 800 cartas trocadas
entre os pais e o filho.
Era uma vez… Assim costumam
começar todas as grandes histórias,
não apenas para crianças mas também para adultos. E este livro bem
poderia arrancar com um “Era uma
vez uma caixa de sapatos…” Uma
caixa daquelas de papelão grosso e
resistente ao tempo e à humidade,
que guardava, intacto, um segredo
familiar com 70 anos e cuja descoberta deu lugar a um riquíssimo
filão afetivo e memorialístico.
Foi em 2019 que Herculana
Carvalho mostrou ao filho João Pina
(JP) a tal caixa de sapatos, onde
acondicionara cuidadosamente o
arquivo fotográfico de Luiz Alves de
Carvalho (avô de Herculana e bisavô
de João) sobre o Tarrafal. Um acervo
notável de imagens registadas nas
duas visitas que fez, em 1949 e
1950, àquele campo de concentração, para onde fora desterrado
o filho Guilherme. Além das fotos,
havia ainda cerca de oito centenas
(sim, 800!) de cartas trocadas entre
os pais e o preso, meticulosamente
arquivadas em dossiês, um material
único e inédito.
Acontece que Guilherme da
Costa Carvalho não era um preso
qualquer. O pai Luiz era o corretor da Bolsa de Valores do Porto,
pertencente à (grande) burguesia
nortenha. E Guilherme, militante
clandestino do PCP, que havia sido
preso em 1948, viria a ser um dos
quadros heroicos e míticos do partido, averbando quatro prisões e duas
fugas coletivas, ambas espetaculares: em janeiro de 1960, do forte
de Peniche, com Álvaro Cunhal, e
em dezembro do ano seguinte, da
cadeia de Caxias, no célebre carro
blindado de Salazar.
Bisneto de Luiz Alves de
Carvalho, neto de Guilherme da
Costa Carvalho (e filho de Joaquim
Pina Moura), o fotógrafo JP andou
quatro anos a “casar” as imagens
com as cartas dos antepassados,
que não conheceu pessoalmente, a
investigar, a fotografar e a escrever
este livro
FOTOGRAFIAS COMO “PROVA
DE VIDA”
Comecemos pelo mais
surpreendente, as imagens. O livro
inclui cinco blocos de fotografias:
dois com a assinatura do autor,
João Pina, um fotógrafo não apenas
conhecido e reconhecido, como premiado; e os restantes três blocos
da autoria do bisavô Luiz, cego
de uma vista, e que constituem a
grande novidade e revelação do
livro. É muito fácil distingui-las:
as do bisavô são a preto e branco,
enquanto as do bisneto são a cores.
Pina pensa que terão sido feitas com
uma câmara Rolleyflex de médio
formato, com negativos quadrados
(6X6cm).
Um primeiro bloco são imagens de 16 tarrafalistas, o primeiro
dos quais é o filho do improvisado
fotógrafo, cuja imagem, de resto,
abre o livro, um Guilherme da
Costa Carvalho sorridente e jovial,
de bigode, com aspeto saudável,
descontraído, mãos nos bolsos,
camisa branca lavada. Estes são
sinais comuns a quase todas as
restantes fotos, que se destinavam a
ser enviadas às respetivas famílias,
que não os viam desde que haviam sido desterrados há quase 15 anos
para aquele lugarejo perdido da
ilha cabo-verdiana de Santiago.
Constituindo o que JP classificou
acertadamente como “uma prova
de vida” junto dos familiares e
amigos, e não para serem publicitadas, compreende-se que todos se
apresentem na fotografia a preceito: com bom aspeto, roupa lavada
e engomada, por vezes de fato
completo e gravata, bem penteados
e barbeados, ainda que raramente
sorridentes.
Era assim que cada um deles
desejava que os seus entes mais
queridos o vissem, a imagem, quem
sabe se a última, que gostariam
que perdurasse nas suas memórias
e corações. Se há um padrão que
sobressai em todas elas é a enorme
dignidade que transpiram – desde
o mais velho, Bernardo Casaleiro
Pratas (n. 1899), um anarco-sindicalista que esteve no campo 17 anos
consecutivos, que figura de óculos,
boina basca e lapiseira no bolso da
camisa, a ler uma edição recente
da revista O Século Ilustrado, até
ao mais jovem, o comunista Josué
Martins Romão (n. 1918), envolvido
na Revolta dos Marinheiros, que ali
passou 16 anos, preferindo mostrar-se impecável de fato e gravata.
FLORES EM TODAS AS CAMPAS
O
segundo bloco é, em simultâneo,
um levantamento e uma homenagem. Um levantamento de todos
os prisioneiros que morreram na
primeira fase do campo, entre 1936
e 1948. As fotos são propositadamente muito semelhantes: a esposa
do improvisado fotógrafo a depor
um ramo de flores na campa de
cada um dos 32 mortos – vítimas
de malária e febres várias, de uma
alimentação deficiente, de água
inquinada ou simplesmente de
tortura na célebre “frigideira”. É
uma sequência muito impressiva
de 16 páginas, cada uma com duas
fotografias ao alto, sem legenda,
todas idênticas, até na forma como
Herculana Rosa se veste, mas todas
diferentes, porque diferentes são os
nomes e as datas inscritas na lápide
de pedra. Como escreve João Pina, a
bisavó Herculana “foi mãe de todos
por uns dias”.
Alguns dos nomes são bem conhecidos, com lugar de destaque na
resistência à ditadura, como Bento António Gonçalves, o segundo
secretário-geral do PCP, e Mário dos
Santos Castelhano, o anarcosindicalista que liderou a Confederação
Geral do Trabalho (CGT). A esmagadora maioria dos mortos seriam ou
comunistas, ou anarcosindicalistas,
ou republicanos, ou maçons; ninguém cuidou de saber como prefeririam ser sepultados, razão pela
qual as campas são todas iguais,
encimadas com uma inevitável
cruz. Nem na morte as suas crenças
foram respeitadas.
Esta sequência é igualmente
uma homenagem: a todos e a cada
um daqueles mortos, para que não
caíssem no esquecimento. E uma
acusação feroz, como que individualizada, ao regime de Oliveira
Salazar, que os desterrou e deixou
morrer no Tarrafal, então batizado,
com toda a propriedade, de “campo
da morte lenta”.
FOTOS DOS FAMILIARES PARA
OS PRESOS O terceiro grupo de
fotos captadas pelo bisavô de JP é
muito curioso e terno. Destinava-se
a retribuir as imagens dos presos
que o autor, uma vez chegado ao
Porto, fez questão de entregar
pessoalmente às respetivas famílias.
Era a vez, agora, de os familiares e
alguns amigos se fazerem fotografar, encarregando-se o autor de as
fazer chegar aos tarrafalistas, para
deleite de cada um dos presos, que
voltaram a poder ver os seus. São
22 imagens, das muitas que Luiz
fez e que o bisneto foi obrigado a
selecionar, por razões óbvias de
espaço, mas também de qualidade.
Uma delas reúne 13 familiares do
marinheiro comunista Fernando
Vicente (n. 1914), de três gerações,
quase todas mulheres, onde não
é possível iludir a pobreza daquela gente. Compreensivelmente,
surgem três imagens enviadas ao
filho Guilherme, uma das quais, que
encerra este bloco, é dos próprios
pais, Luiz e Herculana, na neve da
Serra da Estrela.
A contrastar deliberadamente
com as fotos do bisavô, as de JP são,
como se disse, a cores. O grupo
mais numeroso é de imagens de
Cabo Verde na atualidade e acabam
por ser um tributo a um povo que,
após a independência, conseguiu
fazer daquelas ilhas um país a
muitos títulos exemplar. Um subgrupo são retratos de uma dezena
de tarrafalistas da última fase do
campo, destinado a guerrilheiros
ou militantes dos movimentos de
libertação que lutaram contra o
colonialismo português na Guiné,
Angola e Cabo Verde. Relevo para o
escritor angolano Luandino Vieira,
do MPLA, que ali penou durante
oito anos e que, surpreendentemente, confidenciou “que passou
ali alguns dos melhores anos da
sua vida”. Na visão do autor de
Luuanda, o Tarrafal “não tem cor”
e “tem que ser fotografado a preto-
-e-branco, porque tem aquele tom
de terra cinzenta que não é possível
captar a cores”. Nada convencido, JP decidiu-se a “contrariar” o
romancista, e com sucesso: “Fui para Cabo Verde olhar para as cores.
E encontrei-as”.
MAIS DE 800 CARTAS EM DOIS
ANOS
Se as imagens são simplesmente admiráveis, as cartas não
o são menos. Durante os quase
dois anos que Guilherme da Costa
Carvalho expiou no Tarrafal, ele e
os pais (se bem que escritas sempre
pelo pai) trocaram cerca de oito
centenas de cartas, ou seja, uma
média de mais de duas por dia.
A explicação para tão vasta correspondência é dada num telegrama enviado pelos pais a assinalar
um aniversário da detenção de
Guilherme: “Nosso querido filho
[,] hoje como sempre desde que
partiste [,] todos os dias [,] todas
as horas [,] todos os minutos [, e]
todos os segundos da nossa vida
estamos contigo [.]” Diversa mas
convergente foi a razão apontada
pelo filho: “Eu vou procurando
viver sem pensar que estou preso,
é por isso que vos escrevo muito, pois, enquanto vos escrevo, é
como se estivesse aí, apenas longe
de vós, mas em liberdade.” Numa
outra missiva dirá, simplesmente:
“Aqui estamos nós com um único
motivo de conversa: as saudades
dos nossos, as perguntas sobre os
que muito amamos.” E num desabafo: “Grande amparo para nós são
as palavras – inesquecíveis – dos
nossos.” Tanto escreveu Guilherme
que, a dada altura, se lhe esgotaram
os blocos de papel de carta, queixando-se igualmente da escassez de
bicos para lapiseiras…
Meticuloso, o pai guardou todas
as cartas (o original das do filho e
uma cópia das suas), em dossiês.
São cartas por vezes longuíssimas,
manuscritas as de Guilherme,
frequentemente datilografadas as do pai Luiz, o que obrigou
João Pina a uma difícil seleção. O
arco temporal tem início a 14 de
setembro de 1949, véspera da saída
de Guilherme do forte de Peniche,
com o preso a escrever de noite,
com destino ainda desconhecido
mas que seria o Tarrafal. Termina a
14 de abril de 1951, com mais uma
carta do deportado, que ainda não
recebera a carta do pai, de oito dias
antes, com a desejada e ansiada boa
nova: “O Snr. Ministro da Justiça,
depois de ouvir o Snr. Diretor da
Colónia, determinou o teu regresso da Colónia.” Em maio, com
efeito, após 21 meses de desterro,
foi transferido para a fortaleza de
Peniche.
As cartas, quase sempre
transcritas na íntegra, são muito
comoventes e abordam todo o tipo
de assuntos. Uma ternura infinita é
a sua marca de água. “Meus muito
queridos Pais” ou “Paizinho” e
“Mãezinha”, é a forma habitual
como Guilherme se lhes dirige,
nunca os tratando por tu. A que
o pai responde, invariavelmente,
com “meu amado e adorado Filho”,
ou “meu muito querido e adorado
Filho”. Sabendo que as cartas eram
censuradas, no sentido em que
eram lidas pelas autoridades prisionais antes de serem entregues aos
destinatários, compreende-se que a
política só seja ventilada marginalmente e num tom porventura codificado. O suficiente para se perceber
que pai e filho não comungavam
exatamente da mesma ideologia.
Ainda assim, dando provas de extrema tolerância e compreensão, o
pai jamais o recrimina. “Ideias políticas não sou eu que as discuto nem
sou eu que as vou condenar. Sei
somente que te eduquei no caminho
da honra, da Justiça e do dever,
tu sempre assim o seguiste com a
felicidade para mim de nunca na
minha vida te ter censurado qualquer ato da tua vida, nem mesmo
aqueles pelos quais para aí foste.”
Coincidência, esta carta é datada de
25 de Abril de 1950… Cartas virtuais
ao avô e ao bisavô
O diálogo, no entanto, é tripartido, porque JP cedo se intrometeu
na conversa, dirigindo cartas,
necessariamente virtuais, ora ao
avô Guilherme, ora ao bisavô Luiz.
Numa delas, de setembro de 2019,
conta: “Acabo de abrir uma caixa de sapatos, e encontrei dentro dela
mais caixas e envelopes, todos
cheios de fotografias, negativos e
provas de contacto”, entre as quais
a sequência das imagens da bisavó
Herculana junto às campas. “Sem
me dar conta, as lágrimas começaram-me a escorrer pela cara, e
as mãos tremiam. Não era tristeza,
mas pura emoção.”
As cartas de JP servem para contextualizar o diálogo de há 75 anos
entre os familiares que não chegou a
conhecer e são uma espécie de catarse de um drama que marcou toda
a família. Não por acaso, numa das
suas cartas imaginárias, endereçada
em 2023 ao avô Guilherme a partir
de Nova Iorque, onde vive, confidenciou: “Ao fim de quatro anos a
trabalhar sobre o Tarrafal (…), hoje,
pela primeira vez que me lembre,
sonhei contigo.”
As cartas revelam que, durante
dois anos, os pais de Costa Carvalho
abasteceram regularmente não
apenas o filho mas os demais presos
com alimentos variados e em
quantidade: “de bacalhau a carne
enlatada, frutos secos, conservas de
sardinha e até lampreia em lata!”
Incluindo caixas de garrafas de
champanhe, uma vez que, à época,
se acreditava que “era bom para
curar febres”. Para a malária, que
tantas vítimas fizera anos antes,
forneceram doses bastantes do
fármaco Atebrina.
O FACTO DE AS CARTAS TEREM
SIDO
numeradas permitiu verificar
que todas elas chegaram ao destinatário. Ou seja, eram certamente
inspecionadas, mas a censura,
neste caso singular, não se traduziu
em cortes ou rasuras, muito menos
em apreensões. Foi o próprio recluso que o assinalou: “grande felicidade para nós, tudo o quanto vos
tenho escrito vos tem chegado”.
Apesar da inevitável autocensura,
encontram-se referências pontuais
mas significativas a diversas figuras
da oposição, como os militantes
comunistas Joaquim Pires Jorge,
Humberto Lopes e Virgínia Moura,
vultos republicanos do Porto
como Olívio França e Santos Silva,
escritores como Vergílio Ferreira
e Maria Lamas, o escultor Júlio
Pomar (que fora recrutado para o
PCP pelo próprio Costa Carvalho)
e o compositor Fernando Lopes
Graça. Há ainda alusões a Henrique
Galvão, já à beira de romper com
a ditadura, e a Mário Soares, que
o desterrado conhecera quando
ambos estiveram encarcerados no
Aljube.
A partir do Porto, os pais foram
enviando para o Tarrafal exemplares
avulso ou por assinatura de jornais
como O Século e Jornal do Comércio,
o mensário Jornal-Magazine da
Mulher, de pendor neorrealista,
e revistas estrangeiras como a
Life, Tempo, Oggi e, surpresa das
surpresas, a Labour Monthly, ligada
ao Partido Comunista da GrãBretanha. Por barco, foram remetidos numerosos livros e dicionários,
alguns deles encomendados junto
da editora francesa Hachette.
Também precisamos dum tarrafal aqui, para os ppds...
ResponderEliminarOnde anda p seca-pipas
EliminarQue texto enfadonho, tens tempo para tudo 🇻🇪
ResponderEliminarAté para tirar fotos no espelho como uma mulher, avariado dos cornos
Flores em todas as campas
ResponderEliminarAinda não havia Coelhos para gamar flores