Foi acusado de pertencer à maçonaria e de injuriar através de um soneto o então Bispo do Funchal D. José da Costa Torres
Francisco Álvares de Nóbrega - Camões Pequeno
Francisco André Álvares de Nóbrega que também foi conhecido pelo Camões Pequeno, segundo alguns autores teria nascido no sítio da Torre, em Machico; tendo passado a infância na casa dos progenitores localizada naquele concelho, na Banda D’Além, mais precisamente na Rua dos Moinhos, onde também consta que teria nascido, a 30 de Novembro de 1773, aliás como vem claramente expresso no seu Registo de Baptismo.
Era filho do 2º casamento de Domingos de Nóbrega Barreto, O Furão, que nascera no Funchal, na freguesia de Santa Maria Maior do Calhau, e de Dª Ana Rita de Sampaio, natural de Machico; onde casaram em 15 de Fevereiro de 1773.
Segundo informa a distinta investigadora Ivone Correia Alves no ensaio Para Uma Biografia de Francisco André Álvares de Nóbrega, o padrinho do nosso poeta «foi o Dr. João José Espinosa Martel (1746-1812), bacharel em Cânones, formado pela Universidade de Coimbra, professor de Gramática Latina no Funchal, mas natural e com residência principal em Machico»; casado com Dª Ana Martins Perestrelo da Câmara, herdeira do vínculo do Caramanchão de Machico e de outros bens; facto que nos leva a presumir, com segurança, que os pais do escritor seriam pessoas consideradas e estavam bem relacionados.
Na verdade, o progenitor do nosso poeta era sapateiro e exercia a função de Contestável da Fortaleza de São João Baptista, cargo meramente representativo, mas de muita importância, pois competia-lhe vigiar e dar aviso com fachos ou búzios, sempre que assomassem à costa armadas de corsários; acontecimento que naquela época era frequente e muito perigoso para as populações e os seus haveres.
Podemos assim dizer que embora não fosse filho da classe dominante, o escritor pertencia à camada média machiquense, e por consequência, viveu uma juventude normal e sem grandes privações materiais, na vila de Machico, onde circundado por uma deslumbrante paisagem, teria sido feliz, em pobre, sim, mas paternal morada, bem abrigado por gente simples, respeitada e trabalhadora, e espairecendo junto ao mar azul da mais bela baía da ilha, como, aliás, deixou bem assinalado num precioso soneto:
Na fralda de dois íngremes rochedos,
Que levantam aos Céus fronte orgulhosa,
Existe de Machim a Vila idosa,
Povoada de escassos arvoredos.
Pelo meio, alisando alvos penedos,
Desce extensa Ribeira preguiçosa:
Porém tão crespa na estação chuvosa,
Que aos Íncolas infunde respeito e medos.
Às margens dela em hora atenuada,
Vi a primeira luz do sol sereno.
Em pobre, sim, mas paternal morada.
Aos trabalhos me afiz desde pequeno,
O abrigo deixei da Pátria amada,
E vim ser infeliz noutro terreno.
Depois de aprender as primeiras letras em Machico, seu pai permitiu que viesse para o Funchal, com apenas com nove anos de idade, para se empregar na loja de fazendas do abastado comerciante Marco João de Ornelas, que foi descobrindo que o seu jovem protegido, além de desfrutar de muita sensibilidade e criatividade, possuía grande talento para escrever e poetar, e talvez por isso, em Janeiro de 1793, quando Francisco Álvares de Nóbrega teria cerca de 20 anos de idade, propiciou-lhe a possibilidade de matricular-se no Real Seminário de São João Evangelista, que então era dirigido pelos jesuítas. De facto, apesar do nosso poeta ter escrito que o seu patrão lhe tinha ministrado ensinamentos e instrução, tudo nos indica que antes de encetar estudos mais avançados, aprendera a ler, a escrever e a contar em Machico; e só depois, o seu protector proporcionou-lhe outros conhecimentos e saberes, atenção que Francisco Álvares de Nóbrega sempre enalteceu com gratidão:
Sisudo Ornelas meu, em cujos lares
A tenra flor dos anos meus abriu,
Flor que, ao depois, do tempo a mão cobriu
De hórrido luto, e de fatais pesares.
Transpondo o espaço de alongados ares,
Leve sinal de gratidão te enviu,
Da minha história o entre-cortado fio
Verás, quando este livro folheares.
Ao ler os duros males que lastimo,
Não afogues em mar de novo pranto
Planta nutrida ao teu afago e mimo.
Vingam-me as musas de infortúnio tanto;
Afugento a Desgraça, a dor suprimo
Quando ao toque da Lyra a voz levanto.
Naquela época em que se respirava uma atmosfera de mudança, e fervilhavam surdas controvérsias contra a aspereza e o conservadorismo da Velha Ordem, Francisco Álvares de Nóbrega, influenciado pelos ventos revolucionários desses tempos, confidenciou ao seu amigo e colega de Seminário João Mendes da Silva, que se sentia aferrolhado e oprimido no Colégio jesuíta, onde lhe aplicavam carradas de arcaísmos em enfadonhas aulas de Teologia e Gramática Portuguesa e Latina:
Caro colega meu, Mendes querido,
Lenitivo suave a meu cuidado,
Quando em austero asilo aferrolhado
Nos verdes anos meus era oprimido.
Pela mão da verdade aqui tecido
C’as próprias tintas, que moera o fado,
O quadro vê daquele antigo estado,
Em trabalhos fatais reproduzido.
O que é a desventura enfim repara;
Depois que desandou a roda sua,
Oh! como, amigo, raras vezes pára!
Tem sido a minha vida amarga e crua,
De martírios sem fim cadeia rara,
Que de hora em hora sem cessar gradua.
Podemos compreender melhor a aversão que Francisco Álvares de Nóbrega nutria contra o retrógrado sistema de ensino dessa mirrada e estéril sociedade, através dum belo soneto que também nos legou:
Terreno estéril, árido e mirrado,
Dos mais terrenos, por meu mal, desdouro,
Tu convertes em peste a chuva de ouro,
Que entorna sobre ti Jove Sagrado
Terreno ingrato, onde mal é plantado,
Murcha, definha e cai por terra o Louro,
Tu, podendo das graças ser tesouro,
És só de espinhos ásperos juncado.
Atado o cepo vil da Independência,
Em ti o Sábio vê com dor, com luto
Amortecer-se a luz da Sapiência.
O grande Deus, que em ti se adora, é Pluto;
Do seio maternal brota inocência;
Crimes, crimes cruéis são só seu fruto.
Todavia, como relatou o brilhante investigador Daniel Pires numa conferência realizada em Machico, intitulada Francisco Álvares de Nóbrega: Retrato dum Pensador, o nosso poeta compensava esses constrangimentos bebendo, absorto e mudo, as brilhantes aulas do professor de Retórica e membro activo da maçonaria, cónego Deão da Sé João Francisco Lopes da Rocha, que o marcavam, particularmente, pelo seu discurso claro e pelos seus ideais filantrópicos, afeição que ficaria bem patente num emocionante poema que o nosso poeta lhe dirigiu:
Cícero funchalense, eu te saúdo,
E grato cá de longe a voz alçando,
Te agradeço as lições que bebi, quando
Comecei a gostar o doce estudo.
Elas escoram o alentado escudo
Com que espanto este mal, que estou passando,
No meio dos trabalhos recordando
Ditames, que te ouvi absorto e mudo.
Tu me dispusestes o loiro que me enrama,
Que nem o raio cresta, nem me consome,
Apesar da desgraça, que me acama.
Com a minha glória a tua glória assome,
Participa também da minha fama,
Ouvido seja, a par do meu, teu Nome.
Todas essas circunstâncias, e muito especialmente a sua inclinação para a poesia repentista, conjugada com a falta de apego pela carreira eclesiástica, determinaram que muito cedo fosse conhecido como poeta de mérito, e intelectual com pendor para conhecer e divulgar as mais modernas correntes de pensamento da sua época, então muito marcadas pelos ventos da Revolução Francesa, e pelo pensamento rebelde e liberalizante de Voltaire, dos enciclopedistas, e doutros filósofos revolucionários.
Simplesmente, para grande desventura do jovem escritor, em todo aquele período era rigorosamente proibida a livre expressão de tais doutrinas, punidas pela legislação opressora da rainha D. Maria Iª, e sobretudo pela actividade policial do Intendente Diogo Inácio Manique - terrífico reaccionário que, acolitado pelos seus informadores e bufos, então chamados Moscas, reprimia qualquer tentativa progressista, que agitasse, minimamente, os parâmetros ideológicos em que assentava a Velha Ordem.
E, quando já frequentava o 3º ano, e tinha sido admitido a ordens menores, impelido pelo entusiasmo e pelas verduras da juventude, Francisco Alvares de Nóbrega se atreveu a satirizar o bispo D. José da Costa Torres, figura conservadora e doutorado em cânones pela Universidade de Coimbra; este, não suportando a irreverência e a crítica mordaz dos seus versos, ordenou a expulsão do poeta do Seminário e manobrou para que ficasse preso nos cárceres do regime; acusado de pertencer à maçonaria, e de ser um perigoso pedreiro-livre, doutrinado pelo seu mestre e mação, Cónego Dr. Lopes Rocha, fidagal inimigo do Bispo, com quem se tinha envolvido em ruidosas polémicas, que só não atingiram consequências mais extremas, pelo facto de, em 23 de Junho de 1792, ter sido promulgado um edital que perdoava os que se tinham alistado nas lojas maçónicas.
É, assim, um facto indiscutível o papel decisivo do bispo D. José da Costa Nunes, na expulsão do nosso poeta do Seminário e na sua posterior prisão. De notar até, que devido às crueldades e à desmedida opressão exercida sobre os defensores das ideias progressistas, temendo fortes represálias e vinganças, esse prelado saiu, precipitadamente, e quase em fuga da Madeira, a 6 de Outubro de 1976, sem se despedir de pessoa alguma, nem do Santíssimo Sacramento, ocorrência que Francisco Álvares de Nóbrega exprimiu com regozijo:
Alvíssaras, Funchal, da opressa frente
Arranca enfim o ramo d’acipreste;
As alvas roupas de alegria veste;
As faces banha de prazer veemente!
O flagelo tenaz da humana gente,
Mais terrível que fome, guerra e peste
Por decreto fatal de Mão celeste
A seu pesar te deixa em paz contente!
Era um «santo» Varão!... Viver devia
Lá no calado horror das mudas selvas,
Onde nem sequer visse a luz do dia;
Brutas feras tratar, manter-se em relvas,
Esse aborto da torpe hipocrisia,
O Bispo do Funchal, eleito d’Elvas.
Debruçando-se sobre esses acontecimentos, num ensaio denominado Notícia Biográfica e Literária – Francisco Álvares de Nóbrega, Jaime Moniz referiu que o poeta foi despedido do Seminário, indo preso para o Aljube, daqui para Lisboa, por causa de uns versos que apareceram, digo, se ouviram dele.
Consequentemente, estamos certos que pelo menos daquela vez, o escritor esteve detido no já demolido Aljube do Funchal, antes de partir para o continente, aliás como ele próprio afirmou num soneto enviado ao Dr. Luís António Jardim, pedindo que o leia sem desmaio, e pesares:
Se d’entre as lidas do enredado foro,
Q ue das Musas louçãs desdenha o mimo, (…)
Se do metro suave o som canoro,
A cujo encanto o gasto alento animo,
Inda sabe em teu seio achar arrimo,
E a Lyra adoras, bem como eu adoro:
Acolhe brandamente em teu recinto
A escassa produção com que à luz saio,(…)
De mim só fala, lê-lo sem desmaio
Porque eu fiz por tratar do mal que sinto,
Sem me queixar de quem me forja o raio.
Contudo, a ilustre investigadora Ivone Correia Alves, num brilhante estudo lido em Machico intitulado Para Uma Biografia de Francisco André Álvares de Nóbrega, começa por referir que através do Registo de entradas e saídas dos alunos, ficamos a saber que, em 1796, e após três anos de Seminário, Francisco Álvares Minorista, fora despedido indo prezo para o Aljube, daqui para Lisboa onde teve Sentença de degredo (…) por cauza de huns verços que appareceram, digo se ouvirão por boca delle.
Todavia, essa distinta historiadora acrescenta que encontrou nos Arquivos da Torre do Tombo, datado de 1798, um Sumário contra Francisco Alvares, por apelido Camoens, morador na cidade do Funchal ilha da Madeira. Porém, as razões dessa sindicância, de 9 de Outubro de 1798, não são as mesmas que o registo do Seminário invocou. Referem-se sim, a uma denúncia à Mesa do Santo Ofício, no Funchal, apresentada por Tomás Ferreira Saldanha, proferindo que ouviu dizer a José de Menezes, Sargento do Terço dos Auxiliares, que Francisco Álvares, Colegial que fora no Colégio de S. João Evangelista (…) proferira preposições ímpias, heréticas, tais como que não havia Eternidade (negando a imortalidade da alma); Nª Sª não fora Virgem porque era impossível que hua molher parice e ficasse virgem; negando ainda a Existencia do S.mo Corpo de Christo na Ostia Consagrada.
Note-se que esse deplorável delator nada viu e nada escutou, pois apenas repetiu o que afirma ter ouvido a um tal Menezes, facto que, segundo Alberto F. Gomes, anuncia que a atmosfera que pairava, e o modo como eram feitas as denúncias, levam-nos a crer que as palavras atribuídas ao poeta, no documento acima transcrito, não correspondem inteiramente à verdade, mas envolvem um propósito de empurrar o vate para o cárcere, evitando, por outro lado, que continuasse a destilar seu humor sobre as entidades visadas.
Naquela difícil conjuntura, para conseguirem a libertação do nosso poeta, foi importante o apelo de alguns amigos influentes; nomeadamente a influência decisiva do novo Bispo do Funchal, D. Luís Rodrigues de Villares, que se tornou protector do escritor, e a quem Francisco Álvares de Nóbrega enalteceu num dos seus mais belos e comovidos sonetos:
Prelado Excelso, o Nóbrega doente,Cá das margens do Tejo, onde o remistes,
Vai, sobre as asas de seus versos tristes,
A beijar-vos humilde a mão clemente.
Ainda se lembra da tenaz corrente,
Que de seu roto pé, Sábio despistes,
Quando em cárcere abjecto em luto o vistes
Dos pais, do bemfeitor, da Pátria ausente.
Só vós o fado meu vencer pudestes,
Só vós os amargos dias me adoçastes,
Do vosso antecessor mimos agrestes.
Conheça o Mundo o quão diverso andastes;
Aquele me espancou, vós me acolhestes;
Aquele me prendeu, vós me soltastes.
Em 1797, ultrapassada a agonia dessa primeira prisão no Aljube do Funchal e nas masmorras do Reino, e recuperada a liberdade querida e suspirada, Francisco Álvares de Nóbrega, segundo refere Daniel Pires no ensaio que já citamos, ter-se ia encantado pelo cosmopolitismo de Lisboa, onde as tripulações dos navios de mercadorias contribuíam para impregnar a cidade de um colorido peculiar e de um toque de subversão, pois eram frequentemente portadoras de panfletos clandestinos, de gravuras e de obras que sugeriam formas distintas de encarar a política, a sociedade e a própria natureza humana. A trilogia emblemática da Revolução Francesa – igualdade, fraternidade e liberdade – era acenada mais ou menos sub-repticiamente (…), nos cafés e pelas ruas; embora fosse duramente reprimida pelo Intendente Pina Manique, com o empenho dos seus Moscas.
Por tudo isso, Daniel Pires, arrematou que a adesão do poeta de Machico à maçonaria, na capital do reino, constituiu um passo previsível, tendo em consideração o seu percurso de vida e o ambiente sociopolítico existente na sua terra natal. (…) Consequentemente, não será precipitado, afirmar que Nóbrega terá envidado, durante aquele período, múltiplos esforços para a disseminação dos ideais filantrópicos que a ideologia maçónica encerra.
Contudo, para além dessa militância política, o nosso escritor de Machico cultivou, sobretudo, a poesia, visto que, entre 1801 e 1802, vieram a lume os quatro folhetos das suas Rimas.
Aconteceu até, que de forma corajosa e de certo modo atrevida para os constrangimentos reaccionários da época, Francisco Álvares de Nóbrega chegou a dedicar um interessante poema a Voltaire, onde, veladamente, patenteava a sua inclinação pelo estro sublime e os alto escritos desse célebre pensador francês:
Se lá de quando em quando, Águia do Sena,
Sobre os ditames da moral mais pura,
Não entornasses a letal doçura,
Que teus altos escritos envenena;
Se o Sol da Graça fúlgida, serena,
Iluminasse igual tua escritura:
Quem não te levaria à sepultura
Amplos tributos de saudade e pena!
Que vezes pela noite extensa e fria,
Curvado sobre ti, absorto exclamo:
Oh alma grande! Assim não fora ímpia!
Com teu estro sublime ali m’ inflamo;
E abrasado na luz que o acendia,
Sem teus erros amar, seus vôos amo.
Glorificou, também as grandes conquistas que iam acontecendo nas investigações científicas, e, claramente, rendeu homenagem a Newton:
Ave real, que a esfera demandando,
Sobre o clima bretano o voo erguias,
E de perto a tratar co´os astros ias,
Leis infalíveis a seu giro dando…
Porém, nos últimos meses de 1802, piorou, significativamente, a insidiosa elefantíase que afligia o infeliz poeta de Machico, que além de suportar dores cada vez maiores, e ver o seu rosto cada vez mais estigmatizado, sofria com desgosto, o receio de contágio patenteado por alguns dos seus amigos, que chegaram a abandoná-lo. Amargamente, Álvares de Nóbrega lamentava:
(…)
Entre desgosto e desgosto
Caminho ao meu triste fim,
Como se já para mim
Da vida o Sol fora posto;
As manchas que tem meu rosto,
Da morte são já matizes,
Meu mal tem fundas raízes.
E quer a acerba desgraça
Que eu brilhante época faça
No livro dos infelizes.
Quem deste fatal volume
Quizer combinar os factos,
Em mim os tem mais exactos,
Mais fieis do que presume;
A minha vida resume
Todo o rigor d’impios fados:
Enfim se forem lembrados
Nos tempos mais horrorosos
Se julgarão fabulosos
Os meus dias desgraçados.
E para cúmulo da tragédia, Daniel Pires refere, que a tudo isto, juntou-se um outro facto igualmente lancinante: a própria amada evitava-o:
Nos olhos o pranto ferve,
No coração cresce a dor,
E com males da fortuna
Se mistura o mal de amor...
Assim, mesmo com as dúvidas de mero pormenor apontadas por Ivone Correia Alves, é absolutamente certo que o nosso poeta esteve preso, pelo menos uma vez, no Aljube do Funchal e pouco depois em Lisboa.
Após voltar à liberdade, devastado pela doença, e até dos mesmo seus abandonado, Francisco Álvares de Nóbrega encontrou protecção e abrigo na casa do seu amigo e livreiro Manuel José Moreira Pinto Baptista, onde mais tarde, na madrugada de 16 de Janeiro de 1803, tornaria a ser detido, numa altura em que se encontrava cada vez mais doente, e já acamado há quatro meses. Deste modo, em 1803, - segundo aquela investigadora concluiu num importante estudo sobre o julgamento de Álvares de Nóbrega pelo Tribunal do Santo Ofício, a que chamou Inquisição de Lisboa – Processo nº 15764 – o infeliz poeta de Machico voltou à prisão na Cadeia do Limoeiro, durante cinco longos meses e seis dias, sem julgamento, apesar de se encontrar doente, como ele próprio descreve e afirma:
Um mortal sem valia, um desgraçado,
Que em pobre leito há meses geme aflito,
Que traz na própria face o mal escrito,
Até dos mesmos seus abandonados,
De agudíssimas dores volteado.
Aos céus mandando inconsável grito,
Que desordem, que crime, que delito
Cometer poderia, ou que atentado?
Juízo dos mortais, quanto te iludes!
A menor sombra tuas vozes borra,
Tu confundes os vícios c’o virtudes!
E sentirei em fúnebre masmorra
De parca desumana os golpes rudes,
Sem ter piedosa mão que me socorra?
Depois do período de prisão preventiva, Ivone Correia Alves refere que Francisco Álvares de Nóbrega, sempre enclausurado e no Segredo, teve um primeiro processo, com as datas extremas de 16 de Janeiro e 21 de Junho de 1803, que teria corrido apenas pela Cadeia do Limoeiro; e que a seu próprio pedido, foi julgado num segundo processo, pela Inquisição, a partir de 22 de Junho e até 13 de Agosto.
De notar, que nesse longo tempo de tormentos, mesmo apesar de estar «às portas da morte», o nosso infeliz poeta de Machico, além de ter sofrido horripilantes torturas físicas, jazeu no «Segredo», dormindo no chão, supliciado com algemas e grilhões. Por outro lado, nos interrogatórios praticados pela Inquisição, o réu foi ainda submetido a uma permanente e tenaz tortura psíquica, para que confessasse as suas culpas.
Mas, antes de nos debruçar, um pouco mais, sobre o Processo da Inquisição, com o número 15764, lembramos que Francisco Álvares de Nóbrega esteve preso no cárceres do Limoeiro, tal como aconteceu com Bocage, seu companheiro de clausura, de quem, na altura em que foi detido, possuía o poema manuscrito intitulado Pavorosa Ilusão da Eternidade, conforme confessou ao horrendo Tribunal do Santo Ofício, e ao qual dedicou três belos sonetos, de que extraímos algumas passagens:
Versos, que produzi, Cantor do Sado,
Ao tinir do grilhão áspero e duro,
Em cadafalso infame, hórrido, escuro,
A diversas paixões abandonado;
Vão, como os teus, em tempo desgraçado.
Ministrar novo pasto ao Zoilo impuro. (…)
E num outro poema também dedicado ao poeta de Setúbal, o nosso Camões Pequeno clamava:
Ao ler os Versos teus, prezado Elmano,
Teus versos, meu tesouro e meu feitiço,
Quanto um Augusto para ti cobiço
Que à Glória excelsa os elevasse ufano! (…)
Ainda noutro luzente soneto, Francisco Álvares de Nóbrega, voltou a demonstrar, a sua profunda admiração por Bocage:
Sem par Elmano, a quem do Pindo a chave
Franqueara o Pastor do loiro Amfriso,
Quanto mal te apontava ao rosto liso
A sombra, que afugenta o branco ignave;
Mana dos lábios teus néctar suave,
Se copias de Armia o doce riso;
Fala por tua boca um Deus diviso,
Se tratas da Moral sisuda e grave.
Sobre as asas reais, cria inda implume
Águia possante pouco a pouco exalta,
Té que a faça do Phebo o lume:
Assim teu metro, que meu estro esmalta,
Me convida a subir da Glória ao cume,
E o ensino me dá, que inda me falta.
Retomando a análise ao Processo nº 15764 da Inquisição, recentemente estudado por Ivone Correia Alves, esta começa por informar que se trata dum volume incompleto e restaurado, com vinte e oito fólios, com data de abertura a 22 de Junho e encerramento a 13 de Agosto de 1803; e que como refere Borges Coelho, deveria dividir-se, em duas partes: a primeira reunia a documentação anterior à prisão do réu; e a segunda agrupava as folhas que testemunhavam indirectamente a via-sacra dos cárceres até a marcha do auto-da-fé. Todavia, o processo de Francisco Álvares de Nóbrega, não tem a primeira parte, e a segunda não está completa, talvez porque atendendo à terrível doença e ampla «confissão»; o Príncipe se tivesse apiedado e ordenado a soltura do réu.
Logo na «abertura» dos autos, o representante do Inquisidor refere, que foi o próprio poeta, já preso e inquirido há mais de cinco meses no Limoeiro, quem tomou a iniciativa, de através do seu confessor, enviar à Mesa do Santo Ofício, o pedido para ser julgado pela Inquisição. E, na verdade, grato a esse confessor, Nóbrega dedicou-lhe um comovente soneto:
Palinuro Sagrado, oh, como absorto
Ao ver-vos fica o meu batel por certo!
Meu náufrago batel, que sábio e esperto
Vindes guiar da salvação ao porto.
De mim se apossa um divinal conforto
Á proporção que vos chegais mais perto;
Vós dourais da existência o fio incerto,
Vós arrancais da fria campa um morto.
Imagem do meu Deus, ministro augusto,
Tanto ímpio quebranta a vossa vinda,
Quanto conforta e fortalece o justo.
Minha interna aflição convosco finda,
Já o transe final me não dá susto;
Graças, graças aos céus! Não morro ainda.
Nos fólios seguintes, o poeta começou por mencionar toda a sua genealogia, com a curiosidade de apenas lembrar-se do nome dos pais e do avô materno; em interrogatórios, bem longos, se atendermos ao estado de saúde do réu; e sempre torturado física e psiquicamente; segundo refere Ivone Correia Alves.
No decurso das inquirições, Francisco Álvares de Nóbrega, exortado para confessar as seus erros, respondeu que tinha escrito nas três folhas que lhe deram, a totalidade do que se lembrava, mas instado e atormentado, sibilinamente, pelas constantes advertências do Comissário da Inquisição, que ameaçava que só seria melhor tratado, se abrisse os olhos da alma e explicasse a totalidade das suas ofensas, e tudo o que sabia da Sociedade dos Pedreiros Livres, Nóbrega foi pedindo mais folhas, e outras mais ainda, afim de registar todas as suas culpas; ao mesmo tempo que implorava que tivessem piedade e fossem misericordiosos com ele.
E o certo, é que o poeta preencheu doze folhas e meia com a confissão e denúncia, dos mais pequenos pormenores da sua vida, nomeadamente onde e o que estudou, que livros possuía, os conhecimentos religiosos, os seus escritos, leituras, amigos, pensamentos, viagens, e, obviamente, tudo o que sabia e pensava sobre os pedreiros livres, e da sua actividade em Portugal e no estrangeiro.
Muito em resumo, ficamos a saber da leitura dos autos, que Francisco Álvares de Nóbrega foi baptizado pelo Vigário de Machico; que Nossa Senhora da Conceição era sua madrinha; que foi crismado em Machico pelo bispo D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, tendo sido padrinho da crisma o Padre Matias do Nascimento, que se supõe ser seu parente por via materna; que frequentava as Igrejas, ouvia Missas e Pregações, se confessava, Comungava e fazia todos os mais actos e obras de Católico; que sabia todas as orações; que saio da sua pátria por três vezes para esta Corte, e desta foi por oito dias a Coina e ao Estoril em razão de tomar aí os banhos, e por passeio algumas vezes a Cascais; que esteve preso no Aljube, mas alcançou-lhe perdão, e o foi soltar o Bispo D. Luís Rodrigues Villares; que nenhum dos seus ascendentes foi julgado pela Inquisição; e que além do citado manuscrito de Bocage, leu o «Pope», emprestado pelo Secretário da Ilha da Madeira, João Marques Caldeira; Rousseau; o «Sistema da Natureza», emprestado por um moço de Setúbal primo dum boticário chamado José António Uxorio morador na Rua dos Cordoeiros para diante da Calçada de S. João Nepomuceno; e «Épocas da Natureza», emprestados por Manuel Ferreira, oficial de Arquitectura, morador na Rua dos Fanqueiros.
Perguntado nesse Processo 15764, porque se afirmou mação, e outros pormenores sobre as mais pessoas que declara; Francisco Álvares de Nóbrega disse que por ser constante entre os Maçãos que Melchior Manuel Curvo Semedo era venerável da Loge União, como declarou no adicionamento à sua Confissão, e achando-se em necessidade e precisado de todo Socorro, se lembrou de procurar o dito Semedo, esperando que dando-se lhe a conhecer por Sócio da Maçonaria, lhe prestasse algum donativo. (…) E voltando pela resposta, lhe dissera o tal Semedo que fosse falar com Francisco Xavier Torrezão a quem tinham dado ordem, como Secretário da Loge. (…) Que este era também o objecto, porque fora procurar José Sebastião por mandato do mesmo Semedo. (…) Que idêntico motivo o obrigou a declarar-se Mação com o Desembargador Maldonado; porém que de nenhum recebera o mais pequeno auxilio. Declarou ainda que conhece o sobredito Prior dos Anjos, por ser tido, e reputado Sócio da Corporação Maçónica pelos membros dela, mas nunca falou com ele, nem sabe quem falasse.
Seguidamente, Nóbrega afirmou que nunca se filiou noutra loja maçónica, além da tal que o dito Maurício estabeleceu, e para que o convidou, como já fez patente na sua Confissão. Todavia, dissertou sobre as lojas do Grande Oriente de Londres, Berlim, Roma e que circunstâncias sabe a esse respeito, nomeadamente, as ligações que um tal Hipólito tem tido com elas; declarando que na Corte há seis ou sete mações, mas quais sejam e no que consistem os seus Mistérios e Segredos, ele o ignora, por ser coisa absolutamente vedada nessa Sociedade; embora fosse voz corrente, entre eles, que em Lisboa haviam doze mil mações. E quanto ao conceito que forma dos Segredos e Mistérios reservados só aos Cavalheiros do Ultimo Segredo, (…) presentemente está persuadido não ser esta Sociedade tão lícita e conforme as Leis do Estado e da Religião, como seus sócios forsejam inculcar aos que pretendem atrair à mesma…
De novo, pede piedade e misericórdia, não só em atenção ao seu verdadeiro arrependimento mas à dilatada, penosa, e cruel prisão por que tem passado, e está sofrendo, e ao deplorável estado de sua saúde.
Contudo, sempre admoestado, por diversas vezes, para continuar no exame da sua consciência; ainda prestou algumas declarações sobre as organizações maçónicas, e torna a dizer que nada mais sabe. Termina afirmando que durante alguns anos, devido aos sofrimentos porque passou, alimentou a ideia de que não podia haver um Deus de bondade e justiça, pois permitia o vexassem e punissem tão cruelmente sem fulminar o raio contra os opressores da sua inocência; mas que nunca dera escândalo de maior. Todavia, reconhece na sua última infelicidade um evidente castigo do mesmo Deus a quem tinha ofendido tão sacrilegamente, prometendo não voltar a ter tais pensamentos, convencido de que só de Deus dimanam bens, e males, morte e vida, conforme o sentimento Sábio…
Resta lembrar que mesmo durante o julgamento no Tribunal do Santo Ofício, após os ignóbeis interrogatórios, o nosso desditoso poeta era arremessado com inaudita crueldade para o «segredo» do Limoeiro - terrível enxovia onde supliciado nem cama tinha para se acostar; e na qual suportou situações deveras apocalípticas:
(…)
A um lado um triste arremessava a custo
Algema pertinaz de sangue cheia,
Outro mostrava em comprimida veia
Roxeado vergão no pé robusto.
Desta cena esgotando o trago azedo,
Por esconso alçapão me arrojo abaixo
Onde foi dar a hórrido segredo. (…)
Segundo refere Alberto F. Gomes, o nosso poeta de Machico, durante o longo período de prisão, dirigiu-se em verso a vários protectores, entre eles um britânico e enaltece os que o atendem ou a seu favor se pronunciam. Ao Regente D. João VI, Príncipe do Brasil, também dedicou da cadeia do Limoeiro, 15 sonetos impetrando o perdão.
Começa por solicitar clemência e proclamar que não tem outro Deus, além do cristão:
Ah, Príncipe! E será, será possível,
Que não vos causem o menor abalo
Os ais que solta o íntegro vassalo
Neste hediondo cárcere terrível?
Mostrar-vos-eis acaso ainda insensível,
Quando a verdade, vos atesto e falo?
Olhai, Senhor, que de aflição estalo
Olhai que toco a meta impreterível. (…)
Não conheço outro Deus de Jove abaixo;
De vós só é que pende eu ser ditoso,
Seja, qual meu delito, o meu despacho.
Depois, protesta que não havia cometido qualquer crime ou delito, e fez questão de demonstrar que respeitava a Monarquia:
(…)
Sei que o Rei é porção da Divindade;
Rendo-lhe a adoração, que lhe é devida;(…)
Detesto a ingratidão, choro a violência,
Amo o nobre, o plebeu, o alto, o baixo
No estado em que os pôs a Providência.
E se me espreito da Razão co´facho
Se meto a mão na própria cosciência
Em minha vida um crime só não acho.
Com sentido desespero, Francisco Álvares de Nóbrega, protesta a sua inocência:
Príncepe Excelso, em lúgubre masmorra
A que jamais dá luz do Sol o facho,
Geme ao som do grilhão infame e baixo,
Sem ter piedosa mão, que me socorra.
Por mais que pense e que discorra,
Em minha vida um crime só não acho,
Seja qual meu delicto, o meu despacho
Que me soltem, mandai, ou que enfim morra.
Quem culpa cometeu, é bem que pague,
Em cadeia fatal, que o pé lhe oprime
Com lágrimas de dor embora alague.
Porém não consintais que se lastime
Na mesma estância, e em confusão se esmague
A singela inocência a par do crime.
E acaba pedindo a sua libertação; pois a quem tanto pode, é pedir pouco:
Príncipe suspirado, áurea vergonta
De um ramo, cuja sombra o Mundo abraça.
De quem a Lusa História, inda que escassa,
Mil glórias narra, mil prodígios conta. (…)
De vós não quero mais que alguns espaços,
Em que às Musas me dê, por quem sou louco,
Quebrada a algema, que me estreita os braços.
Consenti que eu melhore o canto rouco,
Fazei-me estes grilhões em mil pedaços,
A quem tanto pode, é pedir pouco.
Sabemos ainda que o seu grande amigo, Manuel José Moreira Pinto Baptista, em cuja casa o poeta estava acolhido, no malfadado dia em que foi preso pela última vez, também moveu vastas diligências para que libertassem o inditoso vate de Machico, que vivia aterrado; numa situação muito idêntica à tão bem resumida, dois séculos antes, pelo genial António Ferreira.
A medo vivo, escrevo e falo,
Hei medo do que falo só comigo,
Mas inda a medo cuido, a medo calo…
Com grande dignidade, mas comovido, o nosso Camões Pequeno anunciava a esse dedicado amigo do coração:
Não lastimes, Baptista, a minha sorte,
Nenhum abalo o dano meu te faça;
Batem em mim os golpes da desgraça,
Bem como as ondas num rochedo forte.
Ver-me-às tranquilo sujeitar ao corte.
Que da vida a cadeia desenlaça. (…)
Os homens, com tormento agudo e grave,
Podem fazer que desta estância abjecta
Meu sangue, espadanando, os tetos lave;
Podem no coração cravar-me a seta,
Porém não extorquir-me a paz suave,
Com que o Justo transpõe da vida a meta.
Até que, não sabemos a data precisa em que Francisco Álvares de Nóbrega foi posto em liberdade, mas podemos afirmar que, em fins de 1803, o nosso poeta publicou a tradução duma novela da autoria de Florian, intitulada Sélico ou Heroísmo Filial, o que nos dá a certeza que nessa era já estaria solto, sendo também certo que, em 13 de Agosto de 1803, o processo da Inquisição foi encerrado, abruptamente.
Nos cerca de três anos de vida que lhe restaram, o nosso poeta de Machico, aumentou, retocou, e editou as suas primorosas Rimas, que ofereceu ao livreiro que o acolhera na sua casa, Manuel José Moreira Pinto Baptista. Ainda teve tempo para traduzir, além da indicada novela de Florian, o livro de Fulchiron, Algar e Ainorex- Os Efeitos da Funesta Ambição de Um Pai; e uma novela de Mr. Gardy intitulada O Poder da Primeira Inclinação.
Até que, em dia incerto de 1806, sempre infeliz, minado e desfigurado pela lepra que grassava cada vez mais, Francisco Álvares de Nóbrega, cansou-se de lutar contra as adversidades, o infortúnio e os males do amor; e com apenas 33 anos de idade, na casa do amigo dilecto Baptista, à Calçada de São João Nepomuceno em Lisboa, depois de se fechar no quarto e enrolar-se num lençol que coseu até aos ombros, preparou-se para dormir o último sono, e sem mais alentos, quiçá em Paz, suicidou-se, ingerindo grandes porções de láudano, que antes havia comprado na botica.
Esventrando essa trágica morte, o jornalista Januário Justiniano de Nóbrega, sobrinho do nosso infeliz poeta e avô do poeta João Marinho de Nóbrega, refere que o seu tio levantou a própria eça no silêncio da noite, rodeou-se dos livros a que consagrava as longas horas de insónia, pôs à cabeceira os seus escritos, e libando, como Sócrates, a bebida fatal, adormeceu no seio do Criador.
Feita esta breve abordagem à trágica existência de Francisco Álvares de Nóbrega, resta-nos precisar que o poeta viveu entre finais do séc. XVIII e princípios do XIX, numa altura em que o cultivo da vinha em regime de quase monocultura, e a abundante produção e exportação do vinho, de novo, tornaram a Madeira famosa em todo o Mundo.
Na realidade, a economia do arquipélago conheceu um surto de grande expansão e até de certo fulgor nessa época; voltando o ancoradouro do Funchal a ser frequentado por muitas embarcações vindas de todos os quadrantes do planeta. Deste modo, entre 1787 a 1806, ou seja durante os últimos vinte anos da vida do poeta, o número médio de navios que entravam no porto do Funchal era de 350 por ano, ou seja, mais do que aqueles que no mesmo período demandavam a cidade do Porto.
Destacamos também as imensas plantações de vinhas malvasia, boal, sercial, verdelho, e negra mole, que com grande pujança, se estendiam desde os 600 metros de altitude na costa sul da ilha, onde os madeirenses fabricavam um vinho generoso de superior qualidade, empregado em abundantes e lucrativas exportações; mas que, diga-se de passagem, os nossos camponeses quase nunca o consumiam.
Salientamos ainda, que nesse tempo do esplendor vinhateiro, chegaram-se a atingir, anualmente, montantes produtivos superiores a 50.000 pipas de vinho; sendo também o período em que a Madeira exportava mais de 40.000 pipas anuais, sobretudo, como consequência dos principais mercados estarem encerrados por efeito das guerras europeias; o que determinava o recurso quase exclusivo ao «Madeira», nomeadamente por parte da Inglaterra e das colónias inglesas da América.
E como não podia deixar de ser, esse progresso da gentil Madeira - Ilha dos Amores para Luís de Camões - inspirou a Francisco Álvares de Nóbrega um bonito soneto, galhardamente, dedicado à sua flor do Oceano:
Do vasto Oceano flor, gentil Madeira,
Que murta viçosa o cimo enlaças,
Sóbria a teu seio amamentando as Graças,
Com o vítrio suco da imortal Parreira
Daquele, que em ti viu a luz primeira,
Se acaso é crível que inda apreço faças,
Entre o prazer das brincadeiras taças
Recolhe a minha produção rasteira.
É donativo escasso, eu bem conheço;
Mas o desejo que acompanha a oferenda,
Lhe avulta a estima, lhe engrandece o preço.
Deixa que a roda o meu Destino prenda;
Em cessando estes males, que padeço
Talvez então mais altos dons te renda.
Lembramos também, que naquela época, a Madeira não tinha, praticamente, relações comerciais com o Reino, onde o nosso poeta acabou os seus gloriosos dias, em virtude de por um lado, o Continente também se afirmar como grande produtor de vinho, e por outro lado, apresentar-se profundamente deficitário em cereais, que consistia precisamente o produto de que a ilha mais necessitava.
Referir ainda, que entre 1775 a 1783, ou seja no período da adolescência de Francisco Alvares de Nóbrega, surgiram algumas dificuldades na economia do arquipélago devido à Guerra da Independência da América, e ao Bloqueio Inglês às colónias, acontecimentos externos que durante um curto prazo determinaram uma significativa quebra nas exportações insulares, mas que depressa foram ultrapassados, com o retorno da paz.
Acrescentamos igualmente, que em consequência do pleno emprego e dos altos preços que os vinhos chegaram a alcançar, esse grande desenvolvimento que se verificou no ciclo de existência do nosso poeta, determinou melhorias no nível de vida de certos madeirenses, designadamente dum punhado de comerciantes, dalguns grandes proprietários de terras, e de meia dúzia de colonos que ainda trabalhavam superfícies com razoáveis dimensões.
Porém, nas esteira do historiador Alberto Vieira, também somos da opinião que o vinho Madeira foi sobretudo um vinho para inglês degustar e amealhar fortunas, e para o Ilhéu foi apenas um limitado recurso económico, e ao mesmo tempo um vexame pouco compensatório; como certamente constatou a aguçada sensibilidade humanista de Francisco Álvares de Nóbrega.
Resta lembrar, que condicionada pela estrutura económica que acabamos de descrever, o subconsciente colectivo e a superstrutura mental madeirense foi sendo dominada pelos temas ligados à exploração vinícola, ao mesmo tempo que, paulatinamente, se foram apagando as referências açucareiras. O próprio brasão da cidade do Funchal que no período áureo da produção e exportação do açúcar, tinha como armas cinco formas de açúcar dispostas em cruz e nos quatro cantos o escudo com cinco quinas ladeado por uma cana verde com folhas; nesta era do apogeu do vinho, viu precisamente essas folhas de cana serem substituídas por cachos de uva.
Do mesmo modo, acompanhando o fulgor vinhateiro, exprimiram-se nas Artes e na Arquitectura novos estilos e influências. Assim, foram construídas as típicas residências madeirenses do séc. XVIII com os seus óculos de pedra nas paredes, as torres avista navios, cimalhas nos beirais, cantarias de pedra vermelha, varandas decoradas com ferro forjado, o lagar do coxo no rés-do-chão, e os mirantes, balcões e casas de prazer nos jardins, que ainda hoje abundam nas ruas do centro histórico do Funchal, e de certo modo em Machico; os quais certamente influenciaram o sentido estético e o gosto refinado de Francisco Álvares de Nóbrega .
Ao mesmo tempo, um pouco por toda a Ilha, assistiu-se à vitória do barroco e da talha dourada sobre o gosto flamengo e o mudejarismo, de que escolhemos como exemplo a bela igreja jesuíta do Colégio, no Funchal.
Acresce que a classe dominante da Madeira copiou a vida cortesã dos numerosos ingleses que pontificavam na economia da ilha; e as suas quintas rodeadas de sumptuosos vinhedos e jardins, rivalizavam, por vezes, com os melhores exemplares das mansões britânicas.
Mas, nos últimos decénios do séc. XVIII, precisamente no período de vida do nosso poeta, o Neoclassicismo também começou a influir na arquitectura insular, como podemos verificar na Igreja Inglesa da Sagrada Trindade, e no palacete do cônsul inglês Henry Veitch, hoje sede do Instituto do Vinho da Madeira.
No campo da Literatura e da Poesia, Francisco Álvares de Nóbrega viveu no período final do Neoclassicismo, que foi um movimento literário que derivou do espírito critico do Iluminismo e do Racionalismo, que tinha como principal finalidade a restauração das formas, das técnicas, e das expressões clássicas da Renascença, que haviam vingado em Portugal e na Madeira do séc. XVI. Tratava-se, assim, duma corrente literária de ruptura frontal contra o barroquismo e os exageros do cultismo, e do conceptismo, preocupada com a restituição da sobriedade, e da prática de grande disciplina estética; tudo factores que podemos verificar e apreciar ao cotejar a obra poética do talentoso vate de Machico.
E tal como os escritores neoclássicos, também o nosso poeta procurou descrever a natureza com muita fidelidade, como é bem visível nalguns sonetos que já relatamos, e na seguinte Gloza que como mero exemplo, transcrevemos:
Natureza! Mãe fecunda
De tudo quanto respira,
Que prodígios não admira
Quem teus segredos profunda!
Do centro da terra funda
Tenra planta brota e cresce,
E tanto o ser agradece
Á causa donde proveio,
Que mostra trazer no seio
Uma alma, que reconhece. (…)
Este tributo expressivo
De amor e de gratidão,
Nos mostra que as plantas são
Dos Numes exemplar vivo;
Seu suco vegetativo,
Alma que as agita, e move,
Extrai porções da de Jove:
É sua mútua firmeza
Um dever, que a Natureza
Não altera, antes promove.
Cingindo frente com frente,
Unindo braços com braços,
Sem depender de outros laços,
Elas se amam mutuamente;
Propagam sua semente
Em gostosa liberdade,
Terno amor, doce amizade.
Vós que fazeis seu transporte,
Outorgai da mesma sorte
Este bem à Humanidade.
Porém, no Elucidário Madeirense, o padre Fernando Augusto da Silva e Carlos A. Menezes comentam que, Inocêncio Silva, falando do nosso poeta no «Dicionário Bibliográphico», explana que o vate de Machico, não seguiu escola determinada, porque dos seus versos, uns recordam a maneira de Bocage e outros a de Francisco Manuel. Acrescenta ainda que houve muito poucos poetas que o igualassem nos sonetos, e que a sua linguagem, posto que não abundante em demasia, é pura e correcta, e os versos são em geral fluentes e harmoniosos.
Quanto a nós, sem negar a nítida influência neoclássica que recheia toda a obra poética de Nóbrega, aditamos que tal como aconteceu com o Tomás António Gonzaga da Marília de Dirceu; e sobretudo com o seu contemporâneo e amigo Manuel Maria Barbosa du Bocage; o nosso poeta descreveu com grande realismo e sensibilidade as frementes emoções da doença e das masmorras, bem como os seus desesperos, infortúnios, e dores da alma, pelo que o podemos colocar, sem hesitação, entre os mais eminentes cultores do Pré-Romantismo português, como podemos apreender neste soneto de amor escrito na prisão:
Sadias virações da madrugada,
Que as folhas embalais deste arvoredo,
Entrando neste sítio inda mais cedo
Que a dúbia luz da aurora marchetada.
Agora que repousa a doce Amada
Em bençãos de jasmins seu corpo ledo,
Um pouco respirai mais em segredo,
Sádias virações da madrugada.
Respeitai de Marília o sono brando
Nos ramos destes álamos copados.
As subtis asas plácidas feixando.
Tende em morno silêncio os verdes prados,
Durma a causa do mal que estou passando
Enquanto dorme – dormem meus cuidados.
Acrescentamos mesmo, que uma das admiráveis zonas de inovação em relação aos modelos da sua época, quer de Bocage, quer do nosso Nóbrega, situa-se precisamente na exploração que ambos fizeram dos ambientes hórridos e tenebrosos, dentro da melhor tradição shakespereana, e no mais puro gosto pré-romântico.
Efectivamente, ambos legaram-nos os melhores depoimentos da literatura portuguesa e as mais vibrantes e comovedoras experiências da vida nos cárceres, particularmente os horrorosos enredos vividos nesses sepulcros dos viventes
Apenas, alguns exemplos:
Preso à rija cadeia, onde inocente
Suporto da calúnia o férreo açoite,
Sem achar outro arrimo, a que me acoite,
Bradava pela morte em pranto ardente. (…)
Quem me diz que entre os ferros da violência,
A cujo peso o meu valor quebranto,
Pode a dor sufocar, conter o pranto,
O que conserva ilesa a consciência;
Ou dos trabalhos tem pouca experiência,
Ou finge esforço inexpugnável, santo;
O delinquente em ferros geme tanto,
Como o herói da cândida inocência. (…)
Como está este dia tão soturno!
Pavoroso negrume o ar enlucta,
Naquele galho a regougar se escuta,
Crendo que é noite, o carpidor nocturno.(…)
O encrespado mar, de negro tinto,
Ostenta em sua túmida voragem
Querer o Orbe aniquilar faminto.
Sucedeu Bóreas torvo à branda aragem;
Da viva inquietação, que n´alma sinto
Ó dia de pavor, tu és a imagem!
Por último, este belo soneto, que Nóbrega dedicou a Camões:
Se me recordo, meu Camões divino,
De que em pobre hospital, sórdido, agreste,
O derradeiro adeus ao Mundo deste,
Leio em tua desgraça o meu destino.
O drago da doença, atroz, maligno,
Cospe em meu corpo tragadora peste;
Que meu fatal instante em fim se apreste,
Espero, como tu, em leito indigno.
Com tudo melhor sorte em ti conheço:
Tu do desprezo sofres só o insulto,
Eu entre ferros ao sepulcro desço,
Tu sem nota, eu infame me sepulto;
Porém menos, também, menos mereço,
Porque tu eras sábio, eu sou estulto.
Chegados aqui, é altura de recordar uma contradição ao fulgor económico do período histórico em apreço, com consequências que, certamente, preocuparam e alvoroçaram Francisco Álvares de Nóbrega, que não compreenderia, totalmente, os motivos de muitas dramas, que vitimavam, especialmente, os mais frágeis e desvalidos.
Na verdade, as explorações agrícolas e económicas madeirenses de então, tinham características de quase monocultura e praticamente estavam viradas em exclusivo para a exportação. Daí resultava que, quando por circunstâncias externas, nomeadamente tempestades, guerras internacionais, ou acção dos corsários, o tráfego de navios para a Madeira era afectado, tais ocorrências determinavam que o arquipélago deixasse de ser devidamente abastecido de cereais e doutros géneros alimentícios; desencadeando-se as tradicionais Crises de Subsistência e até pavorosas fomes, com todo o seu caudal de mortes, misérias e tormentos.
Por exemplo, em 1761, ou seja poucos anos antes do nascimento de Francisco Alvares de Nóbrega, os efeitos da Guerra dos Sete Anos afastaram a navegação do Funchal, provocando situações de grandes carências alimentares; que acarretavam intensos surtos emigratórios, sobretudo para o Brasil. Em 1767, a situação piorou, exacerbada por uma epidemia de sarampo que grassou na cidade e nos campos; e em 1777, já na infância do nosso Camões Pequeno, assistia-se ao triste espectáculo de ver as ruas cheias de gente famélica a procurar, desesperadamente, o pão que não havia.
Esta trágica conjuntura agravou-se ainda mais com a eclosão da Revolução Americana e da Guerra da Independência da América, que tornava impossível a previsão, com um mínimo de rigor, de quando arribariam ao porto do Funchal os navios abastecedores vindos da América do Norte. Para fazermos uma pequena ideia da real dimensão dessas crises, basta lembrar que Baltimore fornecia-nos trigo, milho e arroz; de Bóston recebíamos farinhas, biscoito, feijão, arroz e carne; de Charleston provinha biscoitos, salmão, arroz, feijão e carne; e da Filadélfia e Virgínia também adquiriríamos carne, farinha, e milho.
Para atenuar as fomes, e evitar mais mortes, em 6 de Dezembro de 1777, a Câmara Municipal do Funchal pedia, encarecidamente, que pela Junta do Bem Comum fossem enviados navios com trigo para a Madeira; e em 1789, quando Francisco Alvares de Nóbrega já trabalhava na cidade, os vereadores e procuradores dos mesteres do Funchal, seguramente contando com a solidariedade e o apoio do jovem poeta de Machico, reivindicavam com veemência, em nome do povo, que fosse autorizado importarmos, directamente, trigo e milho dos Açores, cuja aquisição era privilégio exclusivo da Coroa.
É de realçar que em todas estas reivindicações e manifestações, os procuradores dos mesteres sempre foram os mais activos, pois eram precisamente as classes populares que suportavam quase todo o peso das crises de subsistência, situação que, certamente, feriu a aguçada sensibilidade humanista de Francisco Álvares de
Nóbrega.
Aconteceu até, que em 1798, ainda no ciclo da existência do grande poeta de Machico, o governador Diogo Pereira Forjaz compeliu, violentamente, o comandante de uma galera estrangeira, vinda de Safin e que estava ancorada no porto do Funchal, a descarregar toda a carga de cereais que transportava para outro destino, invocando a falta de trigo que havia na Ilha para sustento dos seus habitantes que morriam de fome.
No século XX nada mudou. Em 1805, já no fim da vida de Francisco Alvares de Nóbrega, novo surto de fomes provocou lutas, arruaças e manifestações, reivindicando que o trigo dos Açores fosse importado sem entraves pelo nosso arquipélago; tendo sido tão intensa a reacção popular contra o autismo do Poder Central, que determinou a ordenação régia de 17 de Janeiro de 1806, onde, finalmente, constava que dada a esterilidade que se achava a Ilha pela falta de grão e farinhas, ordena-se que doravante nas Ilhas dos Açores não se compre grão de qualidade alguma, para ser remetido à Corte de Sua Real Fazenda, a fim de que o existente se transporte para a Madeira.
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Porque já nos alongamos, resta-nos debruçar, embora de forma muito sucinta, á volta da superstrutura relativa à História das ideias e das correntes de pensamento que se esgrimiam durante o curto tempo da vida do nosso poeta.
Assim, por um lado pontificavam os defensores do servilismo, dos Morgadios e Capelas, da obediência cega, do dogmatismo e de todas as instituições da Velha Ordem, robustecidos com a política conservadora de Dª Maria 1ª e do seu governo, que após o afastamento do Marquez de Pombal recorreu às ameaças, à prisão, e à tortura, com a finalidade de impedir o progresso do pensamento liberal, que um pouco por toda a Europa gerou as condições para a eclosão da Revolução Francesa.
Do outro lado, vítimas da opressão e relegados para a clandestinidade, pulsavam os paladinos da mudança, da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, que foram ganhando cada vez mais adeptos, sobretudo nas camadas intelectuais; sendo até certo que a Madeira foi das primeiras terras portuguesas onde se organizaram as célebres lojas maçónicas, condenadas em 1737, por bula papal; apesar de apenas difundirem os ideais filantrópicos, a fraternidade universal, e o auto-aperfeiçoamento moral e intelectual.
De facto, logo em 1770, ainda o nosso escritor não era nascido, o Governador do arquipélago mandou prender Aires Ornelas Frasão, Francisco Alincourt, e Bartolomeu Andrieux, acusados de serem perigosos pedreiros–livres, que ponham em perigo a ordem, a religião, as instituições, e a moral tradicional.
E em 1792, pouco antes de Francisco Álvares de Nóbrega entrar no Seminário, foi desencadeada pelo déspota Bispo D. José da Costa Torres, uma cruel perseguição contra os maçons e outros cidadãos que não se conformavam com o dogmatismo e a opressão. Para tanto o Prelado mandou publicar um raivoso edital convocando os cidadãos a denunciar à Inquisição todos aqueles que soubessem pertencer ao que ele chamava a maldita seita, que tinha pacto com Satanás e era excomungada.
Num importante estudo sobre estes factos, publicado em 1989, nas Actas do I Colóquio Internacional da História da Madeira com o título, A Madeira nos Arquivos da Inquirição, a investigadora Maria do Carmo Jardim Dias Farinha refere que se verificou um conjunto de denúncias para o Tribunal do Santo Ofício, tal como aconteceu em 1591 contra os cristãos-novos. Desta vez o alvo foi a Sociedade dos Pedreiros Livres; que organizava muitos membros da nobreza, grandes proprietários, intelectuais, e até padres católicos, chegando alguns a ser presos e outros foram exilados.
Comentando estes factos, a historiadora Anita Novinsky, com quem estamos inteiramente de acordo, referia que a violência punitiva e castradora da Inquisição era mais uma prova que esse Tribunal tinha por fim averiguar o grau de ortodoxia dos moradores, e testar a resistência que estes apresentarem em aceitar a doutrina, a moral e a explicação do Mundo dadas pelo Poder, representado por um lado pela Igreja e do outro pelo Estado.
E foi precisamente porque não se conformou com um Estado absolutista e tirano; e porque também afrontou a doutrina retrógrada duma Igreja caduca e prepotente, que o grande poeta Francisco Álvares de Nóbrega sofreu os tormentos do cárcere, e acabou tragicamente com os seus dias, muito infeliz e deprimido.
Podemos assim classificar Francisco Alvares de Nóbrega como um dos heróis que foram sacrificados na luta pela Liberdade, pela Justiça e pela profunda transformação da Humanidade, em favor de mais igualdade e fraternidade para todos os povos.
A finalizar, lembramos que tem sido voz corrente, que os tenebrosos esbirros da Inquisição, quando depararam com o cadáver do escritor, vandalizaram e destruíram os seus escritos, e até uma nova colecção de poesias que estava pronta para ser publicada; facto que torna imperativo que continuem a ser promovidas cuidadosas investigações e buscas para tentar descobrir os trabalhos do nosso poeta que, porventura, ainda estejam dispersos e desconhecidos.
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Por outro lado, continuam a faltar investigações, estudos, e ensaios sobre a vida e a obra deste grande poeta madeirense, pelo que terminamos este artigo com um apelo aos nossos eruditos, sobretudo aos organismos regionais de cultura, e à Universidade da Madeira, propondo que sejam motivados e incentivados mais estudos especializados para a procura, investigação crítica, e a reconstituição judiciosa dos escritos de Francisco Álvares de Nóbrega, e ainda para que prossigam investigações tendentes a colmatar as lacunas que ainda persistem em volta da biografia e das influências históricas, literárias e culturais na obra deste grande e nobre poeta; que muito honra Machico e a Madeira.
Ensaio histórico sobre a curta vida do poeta de Machico, Camões Pequeno (ver aqui)
Na fralda de dois íngremes rochedos,
Que levantam aos Céus fronte orgulhosa,
Existe de Machim a Vila idosa,
Povoada de escassos arvoredos.
Pelo meio, alisando alvos penedos,
Desce extensa Ribeira preguiçosa:
Porém tão crespa na estação chuvosa,
Que aos Íncolas infunde respeito e medos.
Às margens dela em hora atenuada,
Vi a primeira luz do sol sereno.
Em pobre, sim, mas paternal morada.
Aos trabalhos me afiz desde pequeno,
O abrigo deixei da Pátria amada,
E vim ser infeliz noutro terreno.
Depois de aprender as primeiras letras em Machico, seu pai permitiu que viesse para o Funchal, com apenas com nove anos de idade, para se empregar na loja de fazendas do abastado comerciante Marco João de Ornelas, que foi descobrindo que o seu jovem protegido, além de desfrutar de muita sensibilidade e criatividade, possuía grande talento para escrever e poetar, e talvez por isso, em Janeiro de 1793, quando Francisco Álvares de Nóbrega teria cerca de 20 anos de idade, propiciou-lhe a possibilidade de matricular-se no Real Seminário de São João Evangelista, que então era dirigido pelos jesuítas. De facto, apesar do nosso poeta ter escrito que o seu patrão lhe tinha ministrado ensinamentos e instrução, tudo nos indica que antes de encetar estudos mais avançados, aprendera a ler, a escrever e a contar em Machico; e só depois, o seu protector proporcionou-lhe outros conhecimentos e saberes, atenção que Francisco Álvares de Nóbrega sempre enalteceu com gratidão:
Sisudo Ornelas meu, em cujos lares
A tenra flor dos anos meus abriu,
Flor que, ao depois, do tempo a mão cobriu
De hórrido luto, e de fatais pesares.
Transpondo o espaço de alongados ares,
Leve sinal de gratidão te enviu,
Da minha história o entre-cortado fio
Verás, quando este livro folheares.
Ao ler os duros males que lastimo,
Não afogues em mar de novo pranto
Planta nutrida ao teu afago e mimo.
Vingam-me as musas de infortúnio tanto;
Afugento a Desgraça, a dor suprimo
Quando ao toque da Lyra a voz levanto.
Flor que, ao depois, do tempo a mão cobriu
De hórrido luto, e de fatais pesares.
Transpondo o espaço de alongados ares,
Leve sinal de gratidão te enviu,
Da minha história o entre-cortado fio
Verás, quando este livro folheares.
Ao ler os duros males que lastimo,
Não afogues em mar de novo pranto
Planta nutrida ao teu afago e mimo.
Vingam-me as musas de infortúnio tanto;
Afugento a Desgraça, a dor suprimo
Quando ao toque da Lyra a voz levanto.
Naquela época em que se respirava uma atmosfera de mudança, e fervilhavam surdas controvérsias contra a aspereza e o conservadorismo da Velha Ordem, Francisco Álvares de Nóbrega, influenciado pelos ventos revolucionários desses tempos, confidenciou ao seu amigo e colega de Seminário João Mendes da Silva, que se sentia aferrolhado e oprimido no Colégio jesuíta, onde lhe aplicavam carradas de arcaísmos em enfadonhas aulas de Teologia e Gramática Portuguesa e Latina:
Caro colega meu, Mendes querido,
Lenitivo suave a meu cuidado,
Quando em austero asilo aferrolhado
Nos verdes anos meus era oprimido.
Pela mão da verdade aqui tecido
C’as próprias tintas, que moera o fado,
O quadro vê daquele antigo estado,
Em trabalhos fatais reproduzido.
O que é a desventura enfim repara;
Depois que desandou a roda sua,
Oh! como, amigo, raras vezes pára!
Tem sido a minha vida amarga e crua,
De martírios sem fim cadeia rara,
Que de hora em hora sem cessar gradua.
Podemos compreender melhor a aversão que Francisco Álvares de Nóbrega nutria contra o retrógrado sistema de ensino dessa mirrada e estéril sociedade, através dum belo soneto que também nos legou:
Terreno estéril, árido e mirrado,
Dos mais terrenos, por meu mal, desdouro,
Tu convertes em peste a chuva de ouro,
Que entorna sobre ti Jove Sagrado
Terreno ingrato, onde mal é plantado,
Murcha, definha e cai por terra o Louro,
Tu, podendo das graças ser tesouro,
És só de espinhos ásperos juncado.
Atado o cepo vil da Independência,
Em ti o Sábio vê com dor, com luto
Amortecer-se a luz da Sapiência.
O grande Deus, que em ti se adora, é Pluto;
Do seio maternal brota inocência;
Crimes, crimes cruéis são só seu fruto.
Todavia, como relatou o brilhante investigador Daniel Pires numa conferência realizada em Machico, intitulada Francisco Álvares de Nóbrega: Retrato dum Pensador, o nosso poeta compensava esses constrangimentos bebendo, absorto e mudo, as brilhantes aulas do professor de Retórica e membro activo da maçonaria, cónego Deão da Sé João Francisco Lopes da Rocha, que o marcavam, particularmente, pelo seu discurso claro e pelos seus ideais filantrópicos, afeição que ficaria bem patente num emocionante poema que o nosso poeta lhe dirigiu:Quando em austero asilo aferrolhado
Nos verdes anos meus era oprimido.
Pela mão da verdade aqui tecido
C’as próprias tintas, que moera o fado,
O quadro vê daquele antigo estado,
Em trabalhos fatais reproduzido.
O que é a desventura enfim repara;
Depois que desandou a roda sua,
Oh! como, amigo, raras vezes pára!
Tem sido a minha vida amarga e crua,
De martírios sem fim cadeia rara,
Que de hora em hora sem cessar gradua.
Podemos compreender melhor a aversão que Francisco Álvares de Nóbrega nutria contra o retrógrado sistema de ensino dessa mirrada e estéril sociedade, através dum belo soneto que também nos legou:
Terreno estéril, árido e mirrado,
Dos mais terrenos, por meu mal, desdouro,
Tu convertes em peste a chuva de ouro,
Que entorna sobre ti Jove Sagrado
Terreno ingrato, onde mal é plantado,
Murcha, definha e cai por terra o Louro,
Tu, podendo das graças ser tesouro,
És só de espinhos ásperos juncado.
Atado o cepo vil da Independência,
Em ti o Sábio vê com dor, com luto
Amortecer-se a luz da Sapiência.
O grande Deus, que em ti se adora, é Pluto;
Do seio maternal brota inocência;
Crimes, crimes cruéis são só seu fruto.
Cícero funchalense, eu te saúdo,
E grato cá de longe a voz alçando,
Te agradeço as lições que bebi, quando
Comecei a gostar o doce estudo.
Elas escoram o alentado escudo
Com que espanto este mal, que estou passando,
No meio dos trabalhos recordando
Ditames, que te ouvi absorto e mudo.
Tu me dispusestes o loiro que me enrama,
Que nem o raio cresta, nem me consome,
Apesar da desgraça, que me acama.
Com a minha glória a tua glória assome,
Participa também da minha fama,
Ouvido seja, a par do meu, teu Nome.
Todas essas circunstâncias, e muito especialmente a sua inclinação para a poesia repentista, conjugada com a falta de apego pela carreira eclesiástica, determinaram que muito cedo fosse conhecido como poeta de mérito, e intelectual com pendor para conhecer e divulgar as mais modernas correntes de pensamento da sua época, então muito marcadas pelos ventos da Revolução Francesa, e pelo pensamento rebelde e liberalizante de Voltaire, dos enciclopedistas, e doutros filósofos revolucionários.
Simplesmente, para grande desventura do jovem escritor, em todo aquele período era rigorosamente proibida a livre expressão de tais doutrinas, punidas pela legislação opressora da rainha D. Maria Iª, e sobretudo pela actividade policial do Intendente Diogo Inácio Manique - terrífico reaccionário que, acolitado pelos seus informadores e bufos, então chamados Moscas, reprimia qualquer tentativa progressista, que agitasse, minimamente, os parâmetros ideológicos em que assentava a Velha Ordem.
E, quando já frequentava o 3º ano, e tinha sido admitido a ordens menores, impelido pelo entusiasmo e pelas verduras da juventude, Francisco Alvares de Nóbrega se atreveu a satirizar o bispo D. José da Costa Torres, figura conservadora e doutorado em cânones pela Universidade de Coimbra; este, não suportando a irreverência e a crítica mordaz dos seus versos, ordenou a expulsão do poeta do Seminário e manobrou para que ficasse preso nos cárceres do regime; acusado de pertencer à maçonaria, e de ser um perigoso pedreiro-livre, doutrinado pelo seu mestre e mação, Cónego Dr. Lopes Rocha, fidagal inimigo do Bispo, com quem se tinha envolvido em ruidosas polémicas, que só não atingiram consequências mais extremas, pelo facto de, em 23 de Junho de 1792, ter sido promulgado um edital que perdoava os que se tinham alistado nas lojas maçónicas.
É, assim, um facto indiscutível o papel decisivo do bispo D. José da Costa Nunes, na expulsão do nosso poeta do Seminário e na sua posterior prisão. De notar até, que devido às crueldades e à desmedida opressão exercida sobre os defensores das ideias progressistas, temendo fortes represálias e vinganças, esse prelado saiu, precipitadamente, e quase em fuga da Madeira, a 6 de Outubro de 1976, sem se despedir de pessoa alguma, nem do Santíssimo Sacramento, ocorrência que Francisco Álvares de Nóbrega exprimiu com regozijo:
Alvíssaras, Funchal, da opressa frente
Arranca enfim o ramo d’acipreste;
As alvas roupas de alegria veste;
As faces banha de prazer veemente!
O flagelo tenaz da humana gente,
Mais terrível que fome, guerra e peste
Por decreto fatal de Mão celeste
A seu pesar te deixa em paz contente!
Era um «santo» Varão!... Viver devia
Lá no calado horror das mudas selvas,
Onde nem sequer visse a luz do dia;
Brutas feras tratar, manter-se em relvas,
Esse aborto da torpe hipocrisia,
O Bispo do Funchal, eleito d’Elvas.
Debruçando-se sobre esses acontecimentos, num ensaio denominado Notícia Biográfica e Literária – Francisco Álvares de Nóbrega, Jaime Moniz referiu que o poeta foi despedido do Seminário, indo preso para o Aljube, daqui para Lisboa, por causa de uns versos que apareceram, digo, se ouviram dele.
Consequentemente, estamos certos que pelo menos daquela vez, o escritor esteve detido no já demolido Aljube do Funchal, antes de partir para o continente, aliás como ele próprio afirmou num soneto enviado ao Dr. Luís António Jardim, pedindo que o leia sem desmaio, e pesares:
Se d’entre as lidas do enredado foro,
Q ue das Musas louçãs desdenha o mimo, (…)
Se do metro suave o som canoro,
A cujo encanto o gasto alento animo,
Inda sabe em teu seio achar arrimo,
E a Lyra adoras, bem como eu adoro:
Acolhe brandamente em teu recinto
A escassa produção com que à luz saio,(…)
De mim só fala, lê-lo sem desmaio
Porque eu fiz por tratar do mal que sinto,
Sem me queixar de quem me forja o raio.
Contudo, a ilustre investigadora Ivone Correia Alves, num brilhante estudo lido em Machico intitulado Para Uma Biografia de Francisco André Álvares de Nóbrega, começa por referir que através do Registo de entradas e saídas dos alunos, ficamos a saber que, em 1796, e após três anos de Seminário, Francisco Álvares Minorista, fora despedido indo prezo para o Aljube, daqui para Lisboa onde teve Sentença de degredo (…) por cauza de huns verços que appareceram, digo se ouvirão por boca delle.
Todavia, essa distinta historiadora acrescenta que encontrou nos Arquivos da Torre do Tombo, datado de 1798, um Sumário contra Francisco Alvares, por apelido Camoens, morador na cidade do Funchal ilha da Madeira. Porém, as razões dessa sindicância, de 9 de Outubro de 1798, não são as mesmas que o registo do Seminário invocou. Referem-se sim, a uma denúncia à Mesa do Santo Ofício, no Funchal, apresentada por Tomás Ferreira Saldanha, proferindo que ouviu dizer a José de Menezes, Sargento do Terço dos Auxiliares, que Francisco Álvares, Colegial que fora no Colégio de S. João Evangelista (…) proferira preposições ímpias, heréticas, tais como que não havia Eternidade (negando a imortalidade da alma); Nª Sª não fora Virgem porque era impossível que hua molher parice e ficasse virgem; negando ainda a Existencia do S.mo Corpo de Christo na Ostia Consagrada.
Note-se que esse deplorável delator nada viu e nada escutou, pois apenas repetiu o que afirma ter ouvido a um tal Menezes, facto que, segundo Alberto F. Gomes, anuncia que a atmosfera que pairava, e o modo como eram feitas as denúncias, levam-nos a crer que as palavras atribuídas ao poeta, no documento acima transcrito, não correspondem inteiramente à verdade, mas envolvem um propósito de empurrar o vate para o cárcere, evitando, por outro lado, que continuasse a destilar seu humor sobre as entidades visadas.
Naquela difícil conjuntura, para conseguirem a libertação do nosso poeta, foi importante o apelo de alguns amigos influentes; nomeadamente a influência decisiva do novo Bispo do Funchal, D. Luís Rodrigues de Villares, que se tornou protector do escritor, e a quem Francisco Álvares de Nóbrega enalteceu num dos seus mais belos e comovidos sonetos:
Prelado Excelso, o Nóbrega doente,Cá das margens do Tejo, onde o remistes,
Vai, sobre as asas de seus versos tristes,
A beijar-vos humilde a mão clemente.
Ainda se lembra da tenaz corrente,
Que de seu roto pé, Sábio despistes,
Quando em cárcere abjecto em luto o vistes
Dos pais, do bemfeitor, da Pátria ausente.
Só vós o fado meu vencer pudestes,
Só vós os amargos dias me adoçastes,
Do vosso antecessor mimos agrestes.
Conheça o Mundo o quão diverso andastes;
Aquele me espancou, vós me acolhestes;
Aquele me prendeu, vós me soltastes.
Em 1797, ultrapassada a agonia dessa primeira prisão no Aljube do Funchal e nas masmorras do Reino, e recuperada a liberdade querida e suspirada, Francisco Álvares de Nóbrega, segundo refere Daniel Pires no ensaio que já citamos, ter-se ia encantado pelo cosmopolitismo de Lisboa, onde as tripulações dos navios de mercadorias contribuíam para impregnar a cidade de um colorido peculiar e de um toque de subversão, pois eram frequentemente portadoras de panfletos clandestinos, de gravuras e de obras que sugeriam formas distintas de encarar a política, a sociedade e a própria natureza humana. A trilogia emblemática da Revolução Francesa – igualdade, fraternidade e liberdade – era acenada mais ou menos sub-repticiamente (…), nos cafés e pelas ruas; embora fosse duramente reprimida pelo Intendente Pina Manique, com o empenho dos seus Moscas.
Por tudo isso, Daniel Pires, arrematou que a adesão do poeta de Machico à maçonaria, na capital do reino, constituiu um passo previsível, tendo em consideração o seu percurso de vida e o ambiente sociopolítico existente na sua terra natal. (…) Consequentemente, não será precipitado, afirmar que Nóbrega terá envidado, durante aquele período, múltiplos esforços para a disseminação dos ideais filantrópicos que a ideologia maçónica encerra.
Contudo, para além dessa militância política, o nosso escritor de Machico cultivou, sobretudo, a poesia, visto que, entre 1801 e 1802, vieram a lume os quatro folhetos das suas Rimas.
Aconteceu até, que de forma corajosa e de certo modo atrevida para os constrangimentos reaccionários da época, Francisco Álvares de Nóbrega chegou a dedicar um interessante poema a Voltaire, onde, veladamente, patenteava a sua inclinação pelo estro sublime e os alto escritos desse célebre pensador francês:
Se lá de quando em quando, Águia do Sena,
Sobre os ditames da moral mais pura,
Não entornasses a letal doçura,
Que teus altos escritos envenena;
Se o Sol da Graça fúlgida, serena,
Iluminasse igual tua escritura:
Quem não te levaria à sepultura
Amplos tributos de saudade e pena!
Que vezes pela noite extensa e fria,
Curvado sobre ti, absorto exclamo:
Oh alma grande! Assim não fora ímpia!
Com teu estro sublime ali m’ inflamo;
E abrasado na luz que o acendia,
Sem teus erros amar, seus vôos amo.
Glorificou, também as grandes conquistas que iam acontecendo nas investigações científicas, e, claramente, rendeu homenagem a Newton:
Ave real, que a esfera demandando,
Sobre o clima bretano o voo erguias,
E de perto a tratar co´os astros ias,
Leis infalíveis a seu giro dando…
Porém, nos últimos meses de 1802, piorou, significativamente, a insidiosa elefantíase que afligia o infeliz poeta de Machico, que além de suportar dores cada vez maiores, e ver o seu rosto cada vez mais estigmatizado, sofria com desgosto, o receio de contágio patenteado por alguns dos seus amigos, que chegaram a abandoná-lo. Amargamente, Álvares de Nóbrega lamentava:
(…)
Entre desgosto e desgosto
Caminho ao meu triste fim,
Como se já para mim
Da vida o Sol fora posto;
As manchas que tem meu rosto,
Da morte são já matizes,
Meu mal tem fundas raízes.
E quer a acerba desgraça
Que eu brilhante época faça
No livro dos infelizes.
Quem deste fatal volume
Quizer combinar os factos,
Em mim os tem mais exactos,
Mais fieis do que presume;
A minha vida resume
Todo o rigor d’impios fados:
Enfim se forem lembrados
Nos tempos mais horrorosos
Se julgarão fabulosos
Os meus dias desgraçados.
E para cúmulo da tragédia, Daniel Pires refere, que a tudo isto, juntou-se um outro facto igualmente lancinante: a própria amada evitava-o:
Nos olhos o pranto ferve,
No coração cresce a dor,
E com males da fortuna
Se mistura o mal de amor...
Assim, mesmo com as dúvidas de mero pormenor apontadas por Ivone Correia Alves, é absolutamente certo que o nosso poeta esteve preso, pelo menos uma vez, no Aljube do Funchal e pouco depois em Lisboa.
Após voltar à liberdade, devastado pela doença, e até dos mesmo seus abandonado, Francisco Álvares de Nóbrega encontrou protecção e abrigo na casa do seu amigo e livreiro Manuel José Moreira Pinto Baptista, onde mais tarde, na madrugada de 16 de Janeiro de 1803, tornaria a ser detido, numa altura em que se encontrava cada vez mais doente, e já acamado há quatro meses. Deste modo, em 1803, - segundo aquela investigadora concluiu num importante estudo sobre o julgamento de Álvares de Nóbrega pelo Tribunal do Santo Ofício, a que chamou Inquisição de Lisboa – Processo nº 15764 – o infeliz poeta de Machico voltou à prisão na Cadeia do Limoeiro, durante cinco longos meses e seis dias, sem julgamento, apesar de se encontrar doente, como ele próprio descreve e afirma:
Um mortal sem valia, um desgraçado,
Que em pobre leito há meses geme aflito,
Que traz na própria face o mal escrito,
Até dos mesmos seus abandonados,
De agudíssimas dores volteado.
Aos céus mandando inconsável grito,
Que desordem, que crime, que delito
Cometer poderia, ou que atentado?
Juízo dos mortais, quanto te iludes!
A menor sombra tuas vozes borra,
Tu confundes os vícios c’o virtudes!
E sentirei em fúnebre masmorra
De parca desumana os golpes rudes,
Sem ter piedosa mão que me socorra?
Depois do período de prisão preventiva, Ivone Correia Alves refere que Francisco Álvares de Nóbrega, sempre enclausurado e no Segredo, teve um primeiro processo, com as datas extremas de 16 de Janeiro e 21 de Junho de 1803, que teria corrido apenas pela Cadeia do Limoeiro; e que a seu próprio pedido, foi julgado num segundo processo, pela Inquisição, a partir de 22 de Junho e até 13 de Agosto.
De notar, que nesse longo tempo de tormentos, mesmo apesar de estar «às portas da morte», o nosso infeliz poeta de Machico, além de ter sofrido horripilantes torturas físicas, jazeu no «Segredo», dormindo no chão, supliciado com algemas e grilhões. Por outro lado, nos interrogatórios praticados pela Inquisição, o réu foi ainda submetido a uma permanente e tenaz tortura psíquica, para que confessasse as suas culpas.
Mas, antes de nos debruçar, um pouco mais, sobre o Processo da Inquisição, com o número 15764, lembramos que Francisco Álvares de Nóbrega esteve preso no cárceres do Limoeiro, tal como aconteceu com Bocage, seu companheiro de clausura, de quem, na altura em que foi detido, possuía o poema manuscrito intitulado Pavorosa Ilusão da Eternidade, conforme confessou ao horrendo Tribunal do Santo Ofício, e ao qual dedicou três belos sonetos, de que extraímos algumas passagens:
Versos, que produzi, Cantor do Sado,
Ao tinir do grilhão áspero e duro,
Em cadafalso infame, hórrido, escuro,
A diversas paixões abandonado;
Vão, como os teus, em tempo desgraçado.
Ministrar novo pasto ao Zoilo impuro. (…)
E num outro poema também dedicado ao poeta de Setúbal, o nosso Camões Pequeno clamava:
Ao ler os Versos teus, prezado Elmano,
Teus versos, meu tesouro e meu feitiço,
Quanto um Augusto para ti cobiço
Que à Glória excelsa os elevasse ufano! (…)
Ainda noutro luzente soneto, Francisco Álvares de Nóbrega, voltou a demonstrar, a sua profunda admiração por Bocage:
Sem par Elmano, a quem do Pindo a chave
Franqueara o Pastor do loiro Amfriso,
Quanto mal te apontava ao rosto liso
A sombra, que afugenta o branco ignave;
Mana dos lábios teus néctar suave,
Se copias de Armia o doce riso;
Fala por tua boca um Deus diviso,
Se tratas da Moral sisuda e grave.
Sobre as asas reais, cria inda implume
Águia possante pouco a pouco exalta,
Té que a faça do Phebo o lume:
Assim teu metro, que meu estro esmalta,
Me convida a subir da Glória ao cume,
E o ensino me dá, que inda me falta.
Retomando a análise ao Processo nº 15764 da Inquisição, recentemente estudado por Ivone Correia Alves, esta começa por informar que se trata dum volume incompleto e restaurado, com vinte e oito fólios, com data de abertura a 22 de Junho e encerramento a 13 de Agosto de 1803; e que como refere Borges Coelho, deveria dividir-se, em duas partes: a primeira reunia a documentação anterior à prisão do réu; e a segunda agrupava as folhas que testemunhavam indirectamente a via-sacra dos cárceres até a marcha do auto-da-fé. Todavia, o processo de Francisco Álvares de Nóbrega, não tem a primeira parte, e a segunda não está completa, talvez porque atendendo à terrível doença e ampla «confissão»; o Príncipe se tivesse apiedado e ordenado a soltura do réu.
Logo na «abertura» dos autos, o representante do Inquisidor refere, que foi o próprio poeta, já preso e inquirido há mais de cinco meses no Limoeiro, quem tomou a iniciativa, de através do seu confessor, enviar à Mesa do Santo Ofício, o pedido para ser julgado pela Inquisição. E, na verdade, grato a esse confessor, Nóbrega dedicou-lhe um comovente soneto:
Palinuro Sagrado, oh, como absorto
Ao ver-vos fica o meu batel por certo!
Meu náufrago batel, que sábio e esperto
Vindes guiar da salvação ao porto.
De mim se apossa um divinal conforto
Á proporção que vos chegais mais perto;
Vós dourais da existência o fio incerto,
Vós arrancais da fria campa um morto.
Imagem do meu Deus, ministro augusto,
Tanto ímpio quebranta a vossa vinda,
Quanto conforta e fortalece o justo.
Minha interna aflição convosco finda,
Já o transe final me não dá susto;
Graças, graças aos céus! Não morro ainda.
Nos fólios seguintes, o poeta começou por mencionar toda a sua genealogia, com a curiosidade de apenas lembrar-se do nome dos pais e do avô materno; em interrogatórios, bem longos, se atendermos ao estado de saúde do réu; e sempre torturado física e psiquicamente; segundo refere Ivone Correia Alves.
No decurso das inquirições, Francisco Álvares de Nóbrega, exortado para confessar as seus erros, respondeu que tinha escrito nas três folhas que lhe deram, a totalidade do que se lembrava, mas instado e atormentado, sibilinamente, pelas constantes advertências do Comissário da Inquisição, que ameaçava que só seria melhor tratado, se abrisse os olhos da alma e explicasse a totalidade das suas ofensas, e tudo o que sabia da Sociedade dos Pedreiros Livres, Nóbrega foi pedindo mais folhas, e outras mais ainda, afim de registar todas as suas culpas; ao mesmo tempo que implorava que tivessem piedade e fossem misericordiosos com ele.
E o certo, é que o poeta preencheu doze folhas e meia com a confissão e denúncia, dos mais pequenos pormenores da sua vida, nomeadamente onde e o que estudou, que livros possuía, os conhecimentos religiosos, os seus escritos, leituras, amigos, pensamentos, viagens, e, obviamente, tudo o que sabia e pensava sobre os pedreiros livres, e da sua actividade em Portugal e no estrangeiro.
Muito em resumo, ficamos a saber da leitura dos autos, que Francisco Álvares de Nóbrega foi baptizado pelo Vigário de Machico; que Nossa Senhora da Conceição era sua madrinha; que foi crismado em Machico pelo bispo D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, tendo sido padrinho da crisma o Padre Matias do Nascimento, que se supõe ser seu parente por via materna; que frequentava as Igrejas, ouvia Missas e Pregações, se confessava, Comungava e fazia todos os mais actos e obras de Católico; que sabia todas as orações; que saio da sua pátria por três vezes para esta Corte, e desta foi por oito dias a Coina e ao Estoril em razão de tomar aí os banhos, e por passeio algumas vezes a Cascais; que esteve preso no Aljube, mas alcançou-lhe perdão, e o foi soltar o Bispo D. Luís Rodrigues Villares; que nenhum dos seus ascendentes foi julgado pela Inquisição; e que além do citado manuscrito de Bocage, leu o «Pope», emprestado pelo Secretário da Ilha da Madeira, João Marques Caldeira; Rousseau; o «Sistema da Natureza», emprestado por um moço de Setúbal primo dum boticário chamado José António Uxorio morador na Rua dos Cordoeiros para diante da Calçada de S. João Nepomuceno; e «Épocas da Natureza», emprestados por Manuel Ferreira, oficial de Arquitectura, morador na Rua dos Fanqueiros.
Perguntado nesse Processo 15764, porque se afirmou mação, e outros pormenores sobre as mais pessoas que declara; Francisco Álvares de Nóbrega disse que por ser constante entre os Maçãos que Melchior Manuel Curvo Semedo era venerável da Loge União, como declarou no adicionamento à sua Confissão, e achando-se em necessidade e precisado de todo Socorro, se lembrou de procurar o dito Semedo, esperando que dando-se lhe a conhecer por Sócio da Maçonaria, lhe prestasse algum donativo. (…) E voltando pela resposta, lhe dissera o tal Semedo que fosse falar com Francisco Xavier Torrezão a quem tinham dado ordem, como Secretário da Loge. (…) Que este era também o objecto, porque fora procurar José Sebastião por mandato do mesmo Semedo. (…) Que idêntico motivo o obrigou a declarar-se Mação com o Desembargador Maldonado; porém que de nenhum recebera o mais pequeno auxilio. Declarou ainda que conhece o sobredito Prior dos Anjos, por ser tido, e reputado Sócio da Corporação Maçónica pelos membros dela, mas nunca falou com ele, nem sabe quem falasse.
Seguidamente, Nóbrega afirmou que nunca se filiou noutra loja maçónica, além da tal que o dito Maurício estabeleceu, e para que o convidou, como já fez patente na sua Confissão. Todavia, dissertou sobre as lojas do Grande Oriente de Londres, Berlim, Roma e que circunstâncias sabe a esse respeito, nomeadamente, as ligações que um tal Hipólito tem tido com elas; declarando que na Corte há seis ou sete mações, mas quais sejam e no que consistem os seus Mistérios e Segredos, ele o ignora, por ser coisa absolutamente vedada nessa Sociedade; embora fosse voz corrente, entre eles, que em Lisboa haviam doze mil mações. E quanto ao conceito que forma dos Segredos e Mistérios reservados só aos Cavalheiros do Ultimo Segredo, (…) presentemente está persuadido não ser esta Sociedade tão lícita e conforme as Leis do Estado e da Religião, como seus sócios forsejam inculcar aos que pretendem atrair à mesma…
De novo, pede piedade e misericórdia, não só em atenção ao seu verdadeiro arrependimento mas à dilatada, penosa, e cruel prisão por que tem passado, e está sofrendo, e ao deplorável estado de sua saúde.
Contudo, sempre admoestado, por diversas vezes, para continuar no exame da sua consciência; ainda prestou algumas declarações sobre as organizações maçónicas, e torna a dizer que nada mais sabe. Termina afirmando que durante alguns anos, devido aos sofrimentos porque passou, alimentou a ideia de que não podia haver um Deus de bondade e justiça, pois permitia o vexassem e punissem tão cruelmente sem fulminar o raio contra os opressores da sua inocência; mas que nunca dera escândalo de maior. Todavia, reconhece na sua última infelicidade um evidente castigo do mesmo Deus a quem tinha ofendido tão sacrilegamente, prometendo não voltar a ter tais pensamentos, convencido de que só de Deus dimanam bens, e males, morte e vida, conforme o sentimento Sábio…
Resta lembrar que mesmo durante o julgamento no Tribunal do Santo Ofício, após os ignóbeis interrogatórios, o nosso desditoso poeta era arremessado com inaudita crueldade para o «segredo» do Limoeiro - terrível enxovia onde supliciado nem cama tinha para se acostar; e na qual suportou situações deveras apocalípticas:
(…)
A um lado um triste arremessava a custo
Algema pertinaz de sangue cheia,
Outro mostrava em comprimida veia
Roxeado vergão no pé robusto.
Desta cena esgotando o trago azedo,
Por esconso alçapão me arrojo abaixo
Onde foi dar a hórrido segredo. (…)
Segundo refere Alberto F. Gomes, o nosso poeta de Machico, durante o longo período de prisão, dirigiu-se em verso a vários protectores, entre eles um britânico e enaltece os que o atendem ou a seu favor se pronunciam. Ao Regente D. João VI, Príncipe do Brasil, também dedicou da cadeia do Limoeiro, 15 sonetos impetrando o perdão.
Começa por solicitar clemência e proclamar que não tem outro Deus, além do cristão:
Ah, Príncipe! E será, será possível,
Que não vos causem o menor abalo
Os ais que solta o íntegro vassalo
Neste hediondo cárcere terrível?
Mostrar-vos-eis acaso ainda insensível,
Quando a verdade, vos atesto e falo?
Olhai, Senhor, que de aflição estalo
Olhai que toco a meta impreterível. (…)
Não conheço outro Deus de Jove abaixo;
De vós só é que pende eu ser ditoso,
Seja, qual meu delito, o meu despacho.
Depois, protesta que não havia cometido qualquer crime ou delito, e fez questão de demonstrar que respeitava a Monarquia:
(…)
Sei que o Rei é porção da Divindade;
Rendo-lhe a adoração, que lhe é devida;(…)
Detesto a ingratidão, choro a violência,
Amo o nobre, o plebeu, o alto, o baixo
No estado em que os pôs a Providência.
E se me espreito da Razão co´facho
Se meto a mão na própria cosciência
Em minha vida um crime só não acho.
Com sentido desespero, Francisco Álvares de Nóbrega, protesta a sua inocência:
Príncepe Excelso, em lúgubre masmorra
A que jamais dá luz do Sol o facho,
Geme ao som do grilhão infame e baixo,
Sem ter piedosa mão, que me socorra.
Por mais que pense e que discorra,
Em minha vida um crime só não acho,
Seja qual meu delicto, o meu despacho
Que me soltem, mandai, ou que enfim morra.
Quem culpa cometeu, é bem que pague,
Em cadeia fatal, que o pé lhe oprime
Com lágrimas de dor embora alague.
Porém não consintais que se lastime
Na mesma estância, e em confusão se esmague
A singela inocência a par do crime.
E acaba pedindo a sua libertação; pois a quem tanto pode, é pedir pouco:
Príncipe suspirado, áurea vergonta
De um ramo, cuja sombra o Mundo abraça.
De quem a Lusa História, inda que escassa,
Mil glórias narra, mil prodígios conta. (…)
De vós não quero mais que alguns espaços,
Em que às Musas me dê, por quem sou louco,
Quebrada a algema, que me estreita os braços.
Consenti que eu melhore o canto rouco,
Fazei-me estes grilhões em mil pedaços,
A quem tanto pode, é pedir pouco.
Sabemos ainda que o seu grande amigo, Manuel José Moreira Pinto Baptista, em cuja casa o poeta estava acolhido, no malfadado dia em que foi preso pela última vez, também moveu vastas diligências para que libertassem o inditoso vate de Machico, que vivia aterrado; numa situação muito idêntica à tão bem resumida, dois séculos antes, pelo genial António Ferreira.
A medo vivo, escrevo e falo,
Hei medo do que falo só comigo,
Mas inda a medo cuido, a medo calo…
Com grande dignidade, mas comovido, o nosso Camões Pequeno anunciava a esse dedicado amigo do coração:
Não lastimes, Baptista, a minha sorte,
Nenhum abalo o dano meu te faça;
Batem em mim os golpes da desgraça,
Bem como as ondas num rochedo forte.
Ver-me-às tranquilo sujeitar ao corte.
Que da vida a cadeia desenlaça. (…)
Os homens, com tormento agudo e grave,
Podem fazer que desta estância abjecta
Meu sangue, espadanando, os tetos lave;
Podem no coração cravar-me a seta,
Porém não extorquir-me a paz suave,
Com que o Justo transpõe da vida a meta.
Até que, não sabemos a data precisa em que Francisco Álvares de Nóbrega foi posto em liberdade, mas podemos afirmar que, em fins de 1803, o nosso poeta publicou a tradução duma novela da autoria de Florian, intitulada Sélico ou Heroísmo Filial, o que nos dá a certeza que nessa era já estaria solto, sendo também certo que, em 13 de Agosto de 1803, o processo da Inquisição foi encerrado, abruptamente.
Nos cerca de três anos de vida que lhe restaram, o nosso poeta de Machico, aumentou, retocou, e editou as suas primorosas Rimas, que ofereceu ao livreiro que o acolhera na sua casa, Manuel José Moreira Pinto Baptista. Ainda teve tempo para traduzir, além da indicada novela de Florian, o livro de Fulchiron, Algar e Ainorex- Os Efeitos da Funesta Ambição de Um Pai; e uma novela de Mr. Gardy intitulada O Poder da Primeira Inclinação.
Até que, em dia incerto de 1806, sempre infeliz, minado e desfigurado pela lepra que grassava cada vez mais, Francisco Álvares de Nóbrega, cansou-se de lutar contra as adversidades, o infortúnio e os males do amor; e com apenas 33 anos de idade, na casa do amigo dilecto Baptista, à Calçada de São João Nepomuceno em Lisboa, depois de se fechar no quarto e enrolar-se num lençol que coseu até aos ombros, preparou-se para dormir o último sono, e sem mais alentos, quiçá em Paz, suicidou-se, ingerindo grandes porções de láudano, que antes havia comprado na botica.
Esventrando essa trágica morte, o jornalista Januário Justiniano de Nóbrega, sobrinho do nosso infeliz poeta e avô do poeta João Marinho de Nóbrega, refere que o seu tio levantou a própria eça no silêncio da noite, rodeou-se dos livros a que consagrava as longas horas de insónia, pôs à cabeceira os seus escritos, e libando, como Sócrates, a bebida fatal, adormeceu no seio do Criador.
Feita esta breve abordagem à trágica existência de Francisco Álvares de Nóbrega, resta-nos precisar que o poeta viveu entre finais do séc. XVIII e princípios do XIX, numa altura em que o cultivo da vinha em regime de quase monocultura, e a abundante produção e exportação do vinho, de novo, tornaram a Madeira famosa em todo o Mundo.
Na realidade, a economia do arquipélago conheceu um surto de grande expansão e até de certo fulgor nessa época; voltando o ancoradouro do Funchal a ser frequentado por muitas embarcações vindas de todos os quadrantes do planeta. Deste modo, entre 1787 a 1806, ou seja durante os últimos vinte anos da vida do poeta, o número médio de navios que entravam no porto do Funchal era de 350 por ano, ou seja, mais do que aqueles que no mesmo período demandavam a cidade do Porto.
Destacamos também as imensas plantações de vinhas malvasia, boal, sercial, verdelho, e negra mole, que com grande pujança, se estendiam desde os 600 metros de altitude na costa sul da ilha, onde os madeirenses fabricavam um vinho generoso de superior qualidade, empregado em abundantes e lucrativas exportações; mas que, diga-se de passagem, os nossos camponeses quase nunca o consumiam.
Salientamos ainda, que nesse tempo do esplendor vinhateiro, chegaram-se a atingir, anualmente, montantes produtivos superiores a 50.000 pipas de vinho; sendo também o período em que a Madeira exportava mais de 40.000 pipas anuais, sobretudo, como consequência dos principais mercados estarem encerrados por efeito das guerras europeias; o que determinava o recurso quase exclusivo ao «Madeira», nomeadamente por parte da Inglaterra e das colónias inglesas da América.
E como não podia deixar de ser, esse progresso da gentil Madeira - Ilha dos Amores para Luís de Camões - inspirou a Francisco Álvares de Nóbrega um bonito soneto, galhardamente, dedicado à sua flor do Oceano:
Do vasto Oceano flor, gentil Madeira,
Que murta viçosa o cimo enlaças,
Sóbria a teu seio amamentando as Graças,
Com o vítrio suco da imortal Parreira
Daquele, que em ti viu a luz primeira,
Se acaso é crível que inda apreço faças,
Entre o prazer das brincadeiras taças
Recolhe a minha produção rasteira.
É donativo escasso, eu bem conheço;
Mas o desejo que acompanha a oferenda,
Lhe avulta a estima, lhe engrandece o preço.
Deixa que a roda o meu Destino prenda;
Em cessando estes males, que padeço
Talvez então mais altos dons te renda.
Lembramos também, que naquela época, a Madeira não tinha, praticamente, relações comerciais com o Reino, onde o nosso poeta acabou os seus gloriosos dias, em virtude de por um lado, o Continente também se afirmar como grande produtor de vinho, e por outro lado, apresentar-se profundamente deficitário em cereais, que consistia precisamente o produto de que a ilha mais necessitava.
Referir ainda, que entre 1775 a 1783, ou seja no período da adolescência de Francisco Alvares de Nóbrega, surgiram algumas dificuldades na economia do arquipélago devido à Guerra da Independência da América, e ao Bloqueio Inglês às colónias, acontecimentos externos que durante um curto prazo determinaram uma significativa quebra nas exportações insulares, mas que depressa foram ultrapassados, com o retorno da paz.
Acrescentamos igualmente, que em consequência do pleno emprego e dos altos preços que os vinhos chegaram a alcançar, esse grande desenvolvimento que se verificou no ciclo de existência do nosso poeta, determinou melhorias no nível de vida de certos madeirenses, designadamente dum punhado de comerciantes, dalguns grandes proprietários de terras, e de meia dúzia de colonos que ainda trabalhavam superfícies com razoáveis dimensões.
Porém, nas esteira do historiador Alberto Vieira, também somos da opinião que o vinho Madeira foi sobretudo um vinho para inglês degustar e amealhar fortunas, e para o Ilhéu foi apenas um limitado recurso económico, e ao mesmo tempo um vexame pouco compensatório; como certamente constatou a aguçada sensibilidade humanista de Francisco Álvares de Nóbrega.
Resta lembrar, que condicionada pela estrutura económica que acabamos de descrever, o subconsciente colectivo e a superstrutura mental madeirense foi sendo dominada pelos temas ligados à exploração vinícola, ao mesmo tempo que, paulatinamente, se foram apagando as referências açucareiras. O próprio brasão da cidade do Funchal que no período áureo da produção e exportação do açúcar, tinha como armas cinco formas de açúcar dispostas em cruz e nos quatro cantos o escudo com cinco quinas ladeado por uma cana verde com folhas; nesta era do apogeu do vinho, viu precisamente essas folhas de cana serem substituídas por cachos de uva.
Do mesmo modo, acompanhando o fulgor vinhateiro, exprimiram-se nas Artes e na Arquitectura novos estilos e influências. Assim, foram construídas as típicas residências madeirenses do séc. XVIII com os seus óculos de pedra nas paredes, as torres avista navios, cimalhas nos beirais, cantarias de pedra vermelha, varandas decoradas com ferro forjado, o lagar do coxo no rés-do-chão, e os mirantes, balcões e casas de prazer nos jardins, que ainda hoje abundam nas ruas do centro histórico do Funchal, e de certo modo em Machico; os quais certamente influenciaram o sentido estético e o gosto refinado de Francisco Álvares de Nóbrega .
Ao mesmo tempo, um pouco por toda a Ilha, assistiu-se à vitória do barroco e da talha dourada sobre o gosto flamengo e o mudejarismo, de que escolhemos como exemplo a bela igreja jesuíta do Colégio, no Funchal.
Acresce que a classe dominante da Madeira copiou a vida cortesã dos numerosos ingleses que pontificavam na economia da ilha; e as suas quintas rodeadas de sumptuosos vinhedos e jardins, rivalizavam, por vezes, com os melhores exemplares das mansões britânicas.
Mas, nos últimos decénios do séc. XVIII, precisamente no período de vida do nosso poeta, o Neoclassicismo também começou a influir na arquitectura insular, como podemos verificar na Igreja Inglesa da Sagrada Trindade, e no palacete do cônsul inglês Henry Veitch, hoje sede do Instituto do Vinho da Madeira.
No campo da Literatura e da Poesia, Francisco Álvares de Nóbrega viveu no período final do Neoclassicismo, que foi um movimento literário que derivou do espírito critico do Iluminismo e do Racionalismo, que tinha como principal finalidade a restauração das formas, das técnicas, e das expressões clássicas da Renascença, que haviam vingado em Portugal e na Madeira do séc. XVI. Tratava-se, assim, duma corrente literária de ruptura frontal contra o barroquismo e os exageros do cultismo, e do conceptismo, preocupada com a restituição da sobriedade, e da prática de grande disciplina estética; tudo factores que podemos verificar e apreciar ao cotejar a obra poética do talentoso vate de Machico.
E tal como os escritores neoclássicos, também o nosso poeta procurou descrever a natureza com muita fidelidade, como é bem visível nalguns sonetos que já relatamos, e na seguinte Gloza que como mero exemplo, transcrevemos:
Natureza! Mãe fecunda
De tudo quanto respira,
Que prodígios não admira
Quem teus segredos profunda!
Do centro da terra funda
Tenra planta brota e cresce,
E tanto o ser agradece
Á causa donde proveio,
Que mostra trazer no seio
Uma alma, que reconhece. (…)
Este tributo expressivo
De amor e de gratidão,
Nos mostra que as plantas são
Dos Numes exemplar vivo;
Seu suco vegetativo,
Alma que as agita, e move,
Extrai porções da de Jove:
É sua mútua firmeza
Um dever, que a Natureza
Não altera, antes promove.
Cingindo frente com frente,
Unindo braços com braços,
Sem depender de outros laços,
Elas se amam mutuamente;
Propagam sua semente
Em gostosa liberdade,
Terno amor, doce amizade.
Vós que fazeis seu transporte,
Outorgai da mesma sorte
Este bem à Humanidade.
Porém, no Elucidário Madeirense, o padre Fernando Augusto da Silva e Carlos A. Menezes comentam que, Inocêncio Silva, falando do nosso poeta no «Dicionário Bibliográphico», explana que o vate de Machico, não seguiu escola determinada, porque dos seus versos, uns recordam a maneira de Bocage e outros a de Francisco Manuel. Acrescenta ainda que houve muito poucos poetas que o igualassem nos sonetos, e que a sua linguagem, posto que não abundante em demasia, é pura e correcta, e os versos são em geral fluentes e harmoniosos.
Quanto a nós, sem negar a nítida influência neoclássica que recheia toda a obra poética de Nóbrega, aditamos que tal como aconteceu com o Tomás António Gonzaga da Marília de Dirceu; e sobretudo com o seu contemporâneo e amigo Manuel Maria Barbosa du Bocage; o nosso poeta descreveu com grande realismo e sensibilidade as frementes emoções da doença e das masmorras, bem como os seus desesperos, infortúnios, e dores da alma, pelo que o podemos colocar, sem hesitação, entre os mais eminentes cultores do Pré-Romantismo português, como podemos apreender neste soneto de amor escrito na prisão:
Sadias virações da madrugada,
Que as folhas embalais deste arvoredo,
Entrando neste sítio inda mais cedo
Que a dúbia luz da aurora marchetada.
Agora que repousa a doce Amada
Em bençãos de jasmins seu corpo ledo,
Um pouco respirai mais em segredo,
Sádias virações da madrugada.
Respeitai de Marília o sono brando
Nos ramos destes álamos copados.
As subtis asas plácidas feixando.
Tende em morno silêncio os verdes prados,
Durma a causa do mal que estou passando
Enquanto dorme – dormem meus cuidados.
Acrescentamos mesmo, que uma das admiráveis zonas de inovação em relação aos modelos da sua época, quer de Bocage, quer do nosso Nóbrega, situa-se precisamente na exploração que ambos fizeram dos ambientes hórridos e tenebrosos, dentro da melhor tradição shakespereana, e no mais puro gosto pré-romântico.
Efectivamente, ambos legaram-nos os melhores depoimentos da literatura portuguesa e as mais vibrantes e comovedoras experiências da vida nos cárceres, particularmente os horrorosos enredos vividos nesses sepulcros dos viventes
Apenas, alguns exemplos:
Preso à rija cadeia, onde inocente
Suporto da calúnia o férreo açoite,
Sem achar outro arrimo, a que me acoite,
Bradava pela morte em pranto ardente. (…)
Quem me diz que entre os ferros da violência,
A cujo peso o meu valor quebranto,
Pode a dor sufocar, conter o pranto,
O que conserva ilesa a consciência;
Ou dos trabalhos tem pouca experiência,
Ou finge esforço inexpugnável, santo;
O delinquente em ferros geme tanto,
Como o herói da cândida inocência. (…)
Como está este dia tão soturno!
Pavoroso negrume o ar enlucta,
Naquele galho a regougar se escuta,
Crendo que é noite, o carpidor nocturno.(…)
O encrespado mar, de negro tinto,
Ostenta em sua túmida voragem
Querer o Orbe aniquilar faminto.
Sucedeu Bóreas torvo à branda aragem;
Da viva inquietação, que n´alma sinto
Ó dia de pavor, tu és a imagem!
Por último, este belo soneto, que Nóbrega dedicou a Camões:
Se me recordo, meu Camões divino,
De que em pobre hospital, sórdido, agreste,
O derradeiro adeus ao Mundo deste,
Leio em tua desgraça o meu destino.
O drago da doença, atroz, maligno,
Cospe em meu corpo tragadora peste;
Que meu fatal instante em fim se apreste,
Espero, como tu, em leito indigno.
Com tudo melhor sorte em ti conheço:
Tu do desprezo sofres só o insulto,
Eu entre ferros ao sepulcro desço,
Tu sem nota, eu infame me sepulto;
Porém menos, também, menos mereço,
Porque tu eras sábio, eu sou estulto.
Chegados aqui, é altura de recordar uma contradição ao fulgor económico do período histórico em apreço, com consequências que, certamente, preocuparam e alvoroçaram Francisco Álvares de Nóbrega, que não compreenderia, totalmente, os motivos de muitas dramas, que vitimavam, especialmente, os mais frágeis e desvalidos.
Na verdade, as explorações agrícolas e económicas madeirenses de então, tinham características de quase monocultura e praticamente estavam viradas em exclusivo para a exportação. Daí resultava que, quando por circunstâncias externas, nomeadamente tempestades, guerras internacionais, ou acção dos corsários, o tráfego de navios para a Madeira era afectado, tais ocorrências determinavam que o arquipélago deixasse de ser devidamente abastecido de cereais e doutros géneros alimentícios; desencadeando-se as tradicionais Crises de Subsistência e até pavorosas fomes, com todo o seu caudal de mortes, misérias e tormentos.
Por exemplo, em 1761, ou seja poucos anos antes do nascimento de Francisco Alvares de Nóbrega, os efeitos da Guerra dos Sete Anos afastaram a navegação do Funchal, provocando situações de grandes carências alimentares; que acarretavam intensos surtos emigratórios, sobretudo para o Brasil. Em 1767, a situação piorou, exacerbada por uma epidemia de sarampo que grassou na cidade e nos campos; e em 1777, já na infância do nosso Camões Pequeno, assistia-se ao triste espectáculo de ver as ruas cheias de gente famélica a procurar, desesperadamente, o pão que não havia.
Esta trágica conjuntura agravou-se ainda mais com a eclosão da Revolução Americana e da Guerra da Independência da América, que tornava impossível a previsão, com um mínimo de rigor, de quando arribariam ao porto do Funchal os navios abastecedores vindos da América do Norte. Para fazermos uma pequena ideia da real dimensão dessas crises, basta lembrar que Baltimore fornecia-nos trigo, milho e arroz; de Bóston recebíamos farinhas, biscoito, feijão, arroz e carne; de Charleston provinha biscoitos, salmão, arroz, feijão e carne; e da Filadélfia e Virgínia também adquiriríamos carne, farinha, e milho.
Para atenuar as fomes, e evitar mais mortes, em 6 de Dezembro de 1777, a Câmara Municipal do Funchal pedia, encarecidamente, que pela Junta do Bem Comum fossem enviados navios com trigo para a Madeira; e em 1789, quando Francisco Alvares de Nóbrega já trabalhava na cidade, os vereadores e procuradores dos mesteres do Funchal, seguramente contando com a solidariedade e o apoio do jovem poeta de Machico, reivindicavam com veemência, em nome do povo, que fosse autorizado importarmos, directamente, trigo e milho dos Açores, cuja aquisição era privilégio exclusivo da Coroa.
Sobre os ditames da moral mais pura,
Não entornasses a letal doçura,
Que teus altos escritos envenena;
Se o Sol da Graça fúlgida, serena,
Iluminasse igual tua escritura:
Quem não te levaria à sepultura
Amplos tributos de saudade e pena!
Que vezes pela noite extensa e fria,
Curvado sobre ti, absorto exclamo:
Oh alma grande! Assim não fora ímpia!
Com teu estro sublime ali m’ inflamo;
E abrasado na luz que o acendia,
Sem teus erros amar, seus vôos amo.
Glorificou, também as grandes conquistas que iam acontecendo nas investigações científicas, e, claramente, rendeu homenagem a Newton:
Ave real, que a esfera demandando,
Sobre o clima bretano o voo erguias,
E de perto a tratar co´os astros ias,
Leis infalíveis a seu giro dando…
Porém, nos últimos meses de 1802, piorou, significativamente, a insidiosa elefantíase que afligia o infeliz poeta de Machico, que além de suportar dores cada vez maiores, e ver o seu rosto cada vez mais estigmatizado, sofria com desgosto, o receio de contágio patenteado por alguns dos seus amigos, que chegaram a abandoná-lo. Amargamente, Álvares de Nóbrega lamentava:
(…)
Entre desgosto e desgosto
Caminho ao meu triste fim,
Como se já para mim
Da vida o Sol fora posto;
As manchas que tem meu rosto,
Da morte são já matizes,
Meu mal tem fundas raízes.
E quer a acerba desgraça
Que eu brilhante época faça
No livro dos infelizes.
Quem deste fatal volume
Quizer combinar os factos,
Em mim os tem mais exactos,
Mais fieis do que presume;
A minha vida resume
Todo o rigor d’impios fados:
Enfim se forem lembrados
Nos tempos mais horrorosos
Se julgarão fabulosos
Os meus dias desgraçados.
E para cúmulo da tragédia, Daniel Pires refere, que a tudo isto, juntou-se um outro facto igualmente lancinante: a própria amada evitava-o:
Nos olhos o pranto ferve,
No coração cresce a dor,
E com males da fortuna
Se mistura o mal de amor...
Assim, mesmo com as dúvidas de mero pormenor apontadas por Ivone Correia Alves, é absolutamente certo que o nosso poeta esteve preso, pelo menos uma vez, no Aljube do Funchal e pouco depois em Lisboa.
Após voltar à liberdade, devastado pela doença, e até dos mesmo seus abandonado, Francisco Álvares de Nóbrega encontrou protecção e abrigo na casa do seu amigo e livreiro Manuel José Moreira Pinto Baptista, onde mais tarde, na madrugada de 16 de Janeiro de 1803, tornaria a ser detido, numa altura em que se encontrava cada vez mais doente, e já acamado há quatro meses. Deste modo, em 1803, - segundo aquela investigadora concluiu num importante estudo sobre o julgamento de Álvares de Nóbrega pelo Tribunal do Santo Ofício, a que chamou Inquisição de Lisboa – Processo nº 15764 – o infeliz poeta de Machico voltou à prisão na Cadeia do Limoeiro, durante cinco longos meses e seis dias, sem julgamento, apesar de se encontrar doente, como ele próprio descreve e afirma:
Um mortal sem valia, um desgraçado,
Que em pobre leito há meses geme aflito,
Que traz na própria face o mal escrito,
Até dos mesmos seus abandonados,
De agudíssimas dores volteado.
Aos céus mandando inconsável grito,
Que desordem, que crime, que delito
Cometer poderia, ou que atentado?
Juízo dos mortais, quanto te iludes!
A menor sombra tuas vozes borra,
Tu confundes os vícios c’o virtudes!
E sentirei em fúnebre masmorra
De parca desumana os golpes rudes,
Sem ter piedosa mão que me socorra?
Depois do período de prisão preventiva, Ivone Correia Alves refere que Francisco Álvares de Nóbrega, sempre enclausurado e no Segredo, teve um primeiro processo, com as datas extremas de 16 de Janeiro e 21 de Junho de 1803, que teria corrido apenas pela Cadeia do Limoeiro; e que a seu próprio pedido, foi julgado num segundo processo, pela Inquisição, a partir de 22 de Junho e até 13 de Agosto.
De notar, que nesse longo tempo de tormentos, mesmo apesar de estar «às portas da morte», o nosso infeliz poeta de Machico, além de ter sofrido horripilantes torturas físicas, jazeu no «Segredo», dormindo no chão, supliciado com algemas e grilhões. Por outro lado, nos interrogatórios praticados pela Inquisição, o réu foi ainda submetido a uma permanente e tenaz tortura psíquica, para que confessasse as suas culpas.
Mas, antes de nos debruçar, um pouco mais, sobre o Processo da Inquisição, com o número 15764, lembramos que Francisco Álvares de Nóbrega esteve preso no cárceres do Limoeiro, tal como aconteceu com Bocage, seu companheiro de clausura, de quem, na altura em que foi detido, possuía o poema manuscrito intitulado Pavorosa Ilusão da Eternidade, conforme confessou ao horrendo Tribunal do Santo Ofício, e ao qual dedicou três belos sonetos, de que extraímos algumas passagens:
Versos, que produzi, Cantor do Sado,
Ao tinir do grilhão áspero e duro,
Em cadafalso infame, hórrido, escuro,
A diversas paixões abandonado;
Vão, como os teus, em tempo desgraçado.
Ministrar novo pasto ao Zoilo impuro. (…)
E num outro poema também dedicado ao poeta de Setúbal, o nosso Camões Pequeno clamava:
Ao ler os Versos teus, prezado Elmano,
Teus versos, meu tesouro e meu feitiço,
Quanto um Augusto para ti cobiço
Que à Glória excelsa os elevasse ufano! (…)
Ainda noutro luzente soneto, Francisco Álvares de Nóbrega, voltou a demonstrar, a sua profunda admiração por Bocage:
Sem par Elmano, a quem do Pindo a chave
Franqueara o Pastor do loiro Amfriso,
Quanto mal te apontava ao rosto liso
A sombra, que afugenta o branco ignave;
Mana dos lábios teus néctar suave,
Se copias de Armia o doce riso;
Fala por tua boca um Deus diviso,
Se tratas da Moral sisuda e grave.
Sobre as asas reais, cria inda implume
Águia possante pouco a pouco exalta,
Té que a faça do Phebo o lume:
Assim teu metro, que meu estro esmalta,
Me convida a subir da Glória ao cume,
E o ensino me dá, que inda me falta.
Retomando a análise ao Processo nº 15764 da Inquisição, recentemente estudado por Ivone Correia Alves, esta começa por informar que se trata dum volume incompleto e restaurado, com vinte e oito fólios, com data de abertura a 22 de Junho e encerramento a 13 de Agosto de 1803; e que como refere Borges Coelho, deveria dividir-se, em duas partes: a primeira reunia a documentação anterior à prisão do réu; e a segunda agrupava as folhas que testemunhavam indirectamente a via-sacra dos cárceres até a marcha do auto-da-fé. Todavia, o processo de Francisco Álvares de Nóbrega, não tem a primeira parte, e a segunda não está completa, talvez porque atendendo à terrível doença e ampla «confissão»; o Príncipe se tivesse apiedado e ordenado a soltura do réu.
Logo na «abertura» dos autos, o representante do Inquisidor refere, que foi o próprio poeta, já preso e inquirido há mais de cinco meses no Limoeiro, quem tomou a iniciativa, de através do seu confessor, enviar à Mesa do Santo Ofício, o pedido para ser julgado pela Inquisição. E, na verdade, grato a esse confessor, Nóbrega dedicou-lhe um comovente soneto:
Palinuro Sagrado, oh, como absorto
Ao ver-vos fica o meu batel por certo!
Meu náufrago batel, que sábio e esperto
Vindes guiar da salvação ao porto.
De mim se apossa um divinal conforto
Á proporção que vos chegais mais perto;
Vós dourais da existência o fio incerto,
Vós arrancais da fria campa um morto.
Imagem do meu Deus, ministro augusto,
Tanto ímpio quebranta a vossa vinda,
Quanto conforta e fortalece o justo.
Minha interna aflição convosco finda,
Já o transe final me não dá susto;
Graças, graças aos céus! Não morro ainda.
Nos fólios seguintes, o poeta começou por mencionar toda a sua genealogia, com a curiosidade de apenas lembrar-se do nome dos pais e do avô materno; em interrogatórios, bem longos, se atendermos ao estado de saúde do réu; e sempre torturado física e psiquicamente; segundo refere Ivone Correia Alves.
No decurso das inquirições, Francisco Álvares de Nóbrega, exortado para confessar as seus erros, respondeu que tinha escrito nas três folhas que lhe deram, a totalidade do que se lembrava, mas instado e atormentado, sibilinamente, pelas constantes advertências do Comissário da Inquisição, que ameaçava que só seria melhor tratado, se abrisse os olhos da alma e explicasse a totalidade das suas ofensas, e tudo o que sabia da Sociedade dos Pedreiros Livres, Nóbrega foi pedindo mais folhas, e outras mais ainda, afim de registar todas as suas culpas; ao mesmo tempo que implorava que tivessem piedade e fossem misericordiosos com ele.
E o certo, é que o poeta preencheu doze folhas e meia com a confissão e denúncia, dos mais pequenos pormenores da sua vida, nomeadamente onde e o que estudou, que livros possuía, os conhecimentos religiosos, os seus escritos, leituras, amigos, pensamentos, viagens, e, obviamente, tudo o que sabia e pensava sobre os pedreiros livres, e da sua actividade em Portugal e no estrangeiro.
Muito em resumo, ficamos a saber da leitura dos autos, que Francisco Álvares de Nóbrega foi baptizado pelo Vigário de Machico; que Nossa Senhora da Conceição era sua madrinha; que foi crismado em Machico pelo bispo D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, tendo sido padrinho da crisma o Padre Matias do Nascimento, que se supõe ser seu parente por via materna; que frequentava as Igrejas, ouvia Missas e Pregações, se confessava, Comungava e fazia todos os mais actos e obras de Católico; que sabia todas as orações; que saio da sua pátria por três vezes para esta Corte, e desta foi por oito dias a Coina e ao Estoril em razão de tomar aí os banhos, e por passeio algumas vezes a Cascais; que esteve preso no Aljube, mas alcançou-lhe perdão, e o foi soltar o Bispo D. Luís Rodrigues Villares; que nenhum dos seus ascendentes foi julgado pela Inquisição; e que além do citado manuscrito de Bocage, leu o «Pope», emprestado pelo Secretário da Ilha da Madeira, João Marques Caldeira; Rousseau; o «Sistema da Natureza», emprestado por um moço de Setúbal primo dum boticário chamado José António Uxorio morador na Rua dos Cordoeiros para diante da Calçada de S. João Nepomuceno; e «Épocas da Natureza», emprestados por Manuel Ferreira, oficial de Arquitectura, morador na Rua dos Fanqueiros.
Perguntado nesse Processo 15764, porque se afirmou mação, e outros pormenores sobre as mais pessoas que declara; Francisco Álvares de Nóbrega disse que por ser constante entre os Maçãos que Melchior Manuel Curvo Semedo era venerável da Loge União, como declarou no adicionamento à sua Confissão, e achando-se em necessidade e precisado de todo Socorro, se lembrou de procurar o dito Semedo, esperando que dando-se lhe a conhecer por Sócio da Maçonaria, lhe prestasse algum donativo. (…) E voltando pela resposta, lhe dissera o tal Semedo que fosse falar com Francisco Xavier Torrezão a quem tinham dado ordem, como Secretário da Loge. (…) Que este era também o objecto, porque fora procurar José Sebastião por mandato do mesmo Semedo. (…) Que idêntico motivo o obrigou a declarar-se Mação com o Desembargador Maldonado; porém que de nenhum recebera o mais pequeno auxilio. Declarou ainda que conhece o sobredito Prior dos Anjos, por ser tido, e reputado Sócio da Corporação Maçónica pelos membros dela, mas nunca falou com ele, nem sabe quem falasse.
Seguidamente, Nóbrega afirmou que nunca se filiou noutra loja maçónica, além da tal que o dito Maurício estabeleceu, e para que o convidou, como já fez patente na sua Confissão. Todavia, dissertou sobre as lojas do Grande Oriente de Londres, Berlim, Roma e que circunstâncias sabe a esse respeito, nomeadamente, as ligações que um tal Hipólito tem tido com elas; declarando que na Corte há seis ou sete mações, mas quais sejam e no que consistem os seus Mistérios e Segredos, ele o ignora, por ser coisa absolutamente vedada nessa Sociedade; embora fosse voz corrente, entre eles, que em Lisboa haviam doze mil mações. E quanto ao conceito que forma dos Segredos e Mistérios reservados só aos Cavalheiros do Ultimo Segredo, (…) presentemente está persuadido não ser esta Sociedade tão lícita e conforme as Leis do Estado e da Religião, como seus sócios forsejam inculcar aos que pretendem atrair à mesma…
De novo, pede piedade e misericórdia, não só em atenção ao seu verdadeiro arrependimento mas à dilatada, penosa, e cruel prisão por que tem passado, e está sofrendo, e ao deplorável estado de sua saúde.
Contudo, sempre admoestado, por diversas vezes, para continuar no exame da sua consciência; ainda prestou algumas declarações sobre as organizações maçónicas, e torna a dizer que nada mais sabe. Termina afirmando que durante alguns anos, devido aos sofrimentos porque passou, alimentou a ideia de que não podia haver um Deus de bondade e justiça, pois permitia o vexassem e punissem tão cruelmente sem fulminar o raio contra os opressores da sua inocência; mas que nunca dera escândalo de maior. Todavia, reconhece na sua última infelicidade um evidente castigo do mesmo Deus a quem tinha ofendido tão sacrilegamente, prometendo não voltar a ter tais pensamentos, convencido de que só de Deus dimanam bens, e males, morte e vida, conforme o sentimento Sábio…
Resta lembrar que mesmo durante o julgamento no Tribunal do Santo Ofício, após os ignóbeis interrogatórios, o nosso desditoso poeta era arremessado com inaudita crueldade para o «segredo» do Limoeiro - terrível enxovia onde supliciado nem cama tinha para se acostar; e na qual suportou situações deveras apocalípticas:
(…)
A um lado um triste arremessava a custo
Algema pertinaz de sangue cheia,
Outro mostrava em comprimida veia
Roxeado vergão no pé robusto.
Desta cena esgotando o trago azedo,
Por esconso alçapão me arrojo abaixo
Onde foi dar a hórrido segredo. (…)
Segundo refere Alberto F. Gomes, o nosso poeta de Machico, durante o longo período de prisão, dirigiu-se em verso a vários protectores, entre eles um britânico e enaltece os que o atendem ou a seu favor se pronunciam. Ao Regente D. João VI, Príncipe do Brasil, também dedicou da cadeia do Limoeiro, 15 sonetos impetrando o perdão.
Começa por solicitar clemência e proclamar que não tem outro Deus, além do cristão:
Ah, Príncipe! E será, será possível,
Que não vos causem o menor abalo
Os ais que solta o íntegro vassalo
Neste hediondo cárcere terrível?
Mostrar-vos-eis acaso ainda insensível,
Quando a verdade, vos atesto e falo?
Olhai, Senhor, que de aflição estalo
Olhai que toco a meta impreterível. (…)
Não conheço outro Deus de Jove abaixo;
De vós só é que pende eu ser ditoso,
Seja, qual meu delito, o meu despacho.
Depois, protesta que não havia cometido qualquer crime ou delito, e fez questão de demonstrar que respeitava a Monarquia:
(…)
Sei que o Rei é porção da Divindade;
Rendo-lhe a adoração, que lhe é devida;(…)
Detesto a ingratidão, choro a violência,
Amo o nobre, o plebeu, o alto, o baixo
No estado em que os pôs a Providência.
E se me espreito da Razão co´facho
Se meto a mão na própria cosciência
Em minha vida um crime só não acho.
Com sentido desespero, Francisco Álvares de Nóbrega, protesta a sua inocência:
Príncepe Excelso, em lúgubre masmorra
A que jamais dá luz do Sol o facho,
Geme ao som do grilhão infame e baixo,
Sem ter piedosa mão, que me socorra.
Por mais que pense e que discorra,
Em minha vida um crime só não acho,
Seja qual meu delicto, o meu despacho
Que me soltem, mandai, ou que enfim morra.
Quem culpa cometeu, é bem que pague,
Em cadeia fatal, que o pé lhe oprime
Com lágrimas de dor embora alague.
Porém não consintais que se lastime
Na mesma estância, e em confusão se esmague
A singela inocência a par do crime.
E acaba pedindo a sua libertação; pois a quem tanto pode, é pedir pouco:
Príncipe suspirado, áurea vergonta
De um ramo, cuja sombra o Mundo abraça.
De quem a Lusa História, inda que escassa,
Mil glórias narra, mil prodígios conta. (…)
De vós não quero mais que alguns espaços,
Em que às Musas me dê, por quem sou louco,
Quebrada a algema, que me estreita os braços.
Consenti que eu melhore o canto rouco,
Fazei-me estes grilhões em mil pedaços,
A quem tanto pode, é pedir pouco.
Sabemos ainda que o seu grande amigo, Manuel José Moreira Pinto Baptista, em cuja casa o poeta estava acolhido, no malfadado dia em que foi preso pela última vez, também moveu vastas diligências para que libertassem o inditoso vate de Machico, que vivia aterrado; numa situação muito idêntica à tão bem resumida, dois séculos antes, pelo genial António Ferreira.
A medo vivo, escrevo e falo,
Hei medo do que falo só comigo,
Mas inda a medo cuido, a medo calo…
Com grande dignidade, mas comovido, o nosso Camões Pequeno anunciava a esse dedicado amigo do coração:
Não lastimes, Baptista, a minha sorte,
Nenhum abalo o dano meu te faça;
Batem em mim os golpes da desgraça,
Bem como as ondas num rochedo forte.
Ver-me-às tranquilo sujeitar ao corte.
Que da vida a cadeia desenlaça. (…)
Os homens, com tormento agudo e grave,
Podem fazer que desta estância abjecta
Meu sangue, espadanando, os tetos lave;
Podem no coração cravar-me a seta,
Porém não extorquir-me a paz suave,
Com que o Justo transpõe da vida a meta.
Até que, não sabemos a data precisa em que Francisco Álvares de Nóbrega foi posto em liberdade, mas podemos afirmar que, em fins de 1803, o nosso poeta publicou a tradução duma novela da autoria de Florian, intitulada Sélico ou Heroísmo Filial, o que nos dá a certeza que nessa era já estaria solto, sendo também certo que, em 13 de Agosto de 1803, o processo da Inquisição foi encerrado, abruptamente.
Nos cerca de três anos de vida que lhe restaram, o nosso poeta de Machico, aumentou, retocou, e editou as suas primorosas Rimas, que ofereceu ao livreiro que o acolhera na sua casa, Manuel José Moreira Pinto Baptista. Ainda teve tempo para traduzir, além da indicada novela de Florian, o livro de Fulchiron, Algar e Ainorex- Os Efeitos da Funesta Ambição de Um Pai; e uma novela de Mr. Gardy intitulada O Poder da Primeira Inclinação.
Até que, em dia incerto de 1806, sempre infeliz, minado e desfigurado pela lepra que grassava cada vez mais, Francisco Álvares de Nóbrega, cansou-se de lutar contra as adversidades, o infortúnio e os males do amor; e com apenas 33 anos de idade, na casa do amigo dilecto Baptista, à Calçada de São João Nepomuceno em Lisboa, depois de se fechar no quarto e enrolar-se num lençol que coseu até aos ombros, preparou-se para dormir o último sono, e sem mais alentos, quiçá em Paz, suicidou-se, ingerindo grandes porções de láudano, que antes havia comprado na botica.
Esventrando essa trágica morte, o jornalista Januário Justiniano de Nóbrega, sobrinho do nosso infeliz poeta e avô do poeta João Marinho de Nóbrega, refere que o seu tio levantou a própria eça no silêncio da noite, rodeou-se dos livros a que consagrava as longas horas de insónia, pôs à cabeceira os seus escritos, e libando, como Sócrates, a bebida fatal, adormeceu no seio do Criador.
Feita esta breve abordagem à trágica existência de Francisco Álvares de Nóbrega, resta-nos precisar que o poeta viveu entre finais do séc. XVIII e princípios do XIX, numa altura em que o cultivo da vinha em regime de quase monocultura, e a abundante produção e exportação do vinho, de novo, tornaram a Madeira famosa em todo o Mundo.
Na realidade, a economia do arquipélago conheceu um surto de grande expansão e até de certo fulgor nessa época; voltando o ancoradouro do Funchal a ser frequentado por muitas embarcações vindas de todos os quadrantes do planeta. Deste modo, entre 1787 a 1806, ou seja durante os últimos vinte anos da vida do poeta, o número médio de navios que entravam no porto do Funchal era de 350 por ano, ou seja, mais do que aqueles que no mesmo período demandavam a cidade do Porto.
Destacamos também as imensas plantações de vinhas malvasia, boal, sercial, verdelho, e negra mole, que com grande pujança, se estendiam desde os 600 metros de altitude na costa sul da ilha, onde os madeirenses fabricavam um vinho generoso de superior qualidade, empregado em abundantes e lucrativas exportações; mas que, diga-se de passagem, os nossos camponeses quase nunca o consumiam.
Salientamos ainda, que nesse tempo do esplendor vinhateiro, chegaram-se a atingir, anualmente, montantes produtivos superiores a 50.000 pipas de vinho; sendo também o período em que a Madeira exportava mais de 40.000 pipas anuais, sobretudo, como consequência dos principais mercados estarem encerrados por efeito das guerras europeias; o que determinava o recurso quase exclusivo ao «Madeira», nomeadamente por parte da Inglaterra e das colónias inglesas da América.
E como não podia deixar de ser, esse progresso da gentil Madeira - Ilha dos Amores para Luís de Camões - inspirou a Francisco Álvares de Nóbrega um bonito soneto, galhardamente, dedicado à sua flor do Oceano:
Do vasto Oceano flor, gentil Madeira,
Que murta viçosa o cimo enlaças,
Sóbria a teu seio amamentando as Graças,
Com o vítrio suco da imortal Parreira
Daquele, que em ti viu a luz primeira,
Se acaso é crível que inda apreço faças,
Entre o prazer das brincadeiras taças
Recolhe a minha produção rasteira.
É donativo escasso, eu bem conheço;
Mas o desejo que acompanha a oferenda,
Lhe avulta a estima, lhe engrandece o preço.
Deixa que a roda o meu Destino prenda;
Em cessando estes males, que padeço
Talvez então mais altos dons te renda.
Lembramos também, que naquela época, a Madeira não tinha, praticamente, relações comerciais com o Reino, onde o nosso poeta acabou os seus gloriosos dias, em virtude de por um lado, o Continente também se afirmar como grande produtor de vinho, e por outro lado, apresentar-se profundamente deficitário em cereais, que consistia precisamente o produto de que a ilha mais necessitava.
Referir ainda, que entre 1775 a 1783, ou seja no período da adolescência de Francisco Alvares de Nóbrega, surgiram algumas dificuldades na economia do arquipélago devido à Guerra da Independência da América, e ao Bloqueio Inglês às colónias, acontecimentos externos que durante um curto prazo determinaram uma significativa quebra nas exportações insulares, mas que depressa foram ultrapassados, com o retorno da paz.
Acrescentamos igualmente, que em consequência do pleno emprego e dos altos preços que os vinhos chegaram a alcançar, esse grande desenvolvimento que se verificou no ciclo de existência do nosso poeta, determinou melhorias no nível de vida de certos madeirenses, designadamente dum punhado de comerciantes, dalguns grandes proprietários de terras, e de meia dúzia de colonos que ainda trabalhavam superfícies com razoáveis dimensões.
Porém, nas esteira do historiador Alberto Vieira, também somos da opinião que o vinho Madeira foi sobretudo um vinho para inglês degustar e amealhar fortunas, e para o Ilhéu foi apenas um limitado recurso económico, e ao mesmo tempo um vexame pouco compensatório; como certamente constatou a aguçada sensibilidade humanista de Francisco Álvares de Nóbrega.
Resta lembrar, que condicionada pela estrutura económica que acabamos de descrever, o subconsciente colectivo e a superstrutura mental madeirense foi sendo dominada pelos temas ligados à exploração vinícola, ao mesmo tempo que, paulatinamente, se foram apagando as referências açucareiras. O próprio brasão da cidade do Funchal que no período áureo da produção e exportação do açúcar, tinha como armas cinco formas de açúcar dispostas em cruz e nos quatro cantos o escudo com cinco quinas ladeado por uma cana verde com folhas; nesta era do apogeu do vinho, viu precisamente essas folhas de cana serem substituídas por cachos de uva.
Do mesmo modo, acompanhando o fulgor vinhateiro, exprimiram-se nas Artes e na Arquitectura novos estilos e influências. Assim, foram construídas as típicas residências madeirenses do séc. XVIII com os seus óculos de pedra nas paredes, as torres avista navios, cimalhas nos beirais, cantarias de pedra vermelha, varandas decoradas com ferro forjado, o lagar do coxo no rés-do-chão, e os mirantes, balcões e casas de prazer nos jardins, que ainda hoje abundam nas ruas do centro histórico do Funchal, e de certo modo em Machico; os quais certamente influenciaram o sentido estético e o gosto refinado de Francisco Álvares de Nóbrega .
Ao mesmo tempo, um pouco por toda a Ilha, assistiu-se à vitória do barroco e da talha dourada sobre o gosto flamengo e o mudejarismo, de que escolhemos como exemplo a bela igreja jesuíta do Colégio, no Funchal.
Acresce que a classe dominante da Madeira copiou a vida cortesã dos numerosos ingleses que pontificavam na economia da ilha; e as suas quintas rodeadas de sumptuosos vinhedos e jardins, rivalizavam, por vezes, com os melhores exemplares das mansões britânicas.
Mas, nos últimos decénios do séc. XVIII, precisamente no período de vida do nosso poeta, o Neoclassicismo também começou a influir na arquitectura insular, como podemos verificar na Igreja Inglesa da Sagrada Trindade, e no palacete do cônsul inglês Henry Veitch, hoje sede do Instituto do Vinho da Madeira.
No campo da Literatura e da Poesia, Francisco Álvares de Nóbrega viveu no período final do Neoclassicismo, que foi um movimento literário que derivou do espírito critico do Iluminismo e do Racionalismo, que tinha como principal finalidade a restauração das formas, das técnicas, e das expressões clássicas da Renascença, que haviam vingado em Portugal e na Madeira do séc. XVI. Tratava-se, assim, duma corrente literária de ruptura frontal contra o barroquismo e os exageros do cultismo, e do conceptismo, preocupada com a restituição da sobriedade, e da prática de grande disciplina estética; tudo factores que podemos verificar e apreciar ao cotejar a obra poética do talentoso vate de Machico.
E tal como os escritores neoclássicos, também o nosso poeta procurou descrever a natureza com muita fidelidade, como é bem visível nalguns sonetos que já relatamos, e na seguinte Gloza que como mero exemplo, transcrevemos:
Natureza! Mãe fecunda
De tudo quanto respira,
Que prodígios não admira
Quem teus segredos profunda!
Do centro da terra funda
Tenra planta brota e cresce,
E tanto o ser agradece
Á causa donde proveio,
Que mostra trazer no seio
Uma alma, que reconhece. (…)
Este tributo expressivo
De amor e de gratidão,
Nos mostra que as plantas são
Dos Numes exemplar vivo;
Seu suco vegetativo,
Alma que as agita, e move,
Extrai porções da de Jove:
É sua mútua firmeza
Um dever, que a Natureza
Não altera, antes promove.
Cingindo frente com frente,
Unindo braços com braços,
Sem depender de outros laços,
Elas se amam mutuamente;
Propagam sua semente
Em gostosa liberdade,
Terno amor, doce amizade.
Vós que fazeis seu transporte,
Outorgai da mesma sorte
Este bem à Humanidade.
Porém, no Elucidário Madeirense, o padre Fernando Augusto da Silva e Carlos A. Menezes comentam que, Inocêncio Silva, falando do nosso poeta no «Dicionário Bibliográphico», explana que o vate de Machico, não seguiu escola determinada, porque dos seus versos, uns recordam a maneira de Bocage e outros a de Francisco Manuel. Acrescenta ainda que houve muito poucos poetas que o igualassem nos sonetos, e que a sua linguagem, posto que não abundante em demasia, é pura e correcta, e os versos são em geral fluentes e harmoniosos.
Quanto a nós, sem negar a nítida influência neoclássica que recheia toda a obra poética de Nóbrega, aditamos que tal como aconteceu com o Tomás António Gonzaga da Marília de Dirceu; e sobretudo com o seu contemporâneo e amigo Manuel Maria Barbosa du Bocage; o nosso poeta descreveu com grande realismo e sensibilidade as frementes emoções da doença e das masmorras, bem como os seus desesperos, infortúnios, e dores da alma, pelo que o podemos colocar, sem hesitação, entre os mais eminentes cultores do Pré-Romantismo português, como podemos apreender neste soneto de amor escrito na prisão:
Sadias virações da madrugada,
Que as folhas embalais deste arvoredo,
Entrando neste sítio inda mais cedo
Que a dúbia luz da aurora marchetada.
Agora que repousa a doce Amada
Em bençãos de jasmins seu corpo ledo,
Um pouco respirai mais em segredo,
Sádias virações da madrugada.
Respeitai de Marília o sono brando
Nos ramos destes álamos copados.
As subtis asas plácidas feixando.
Tende em morno silêncio os verdes prados,
Durma a causa do mal que estou passando
Enquanto dorme – dormem meus cuidados.
Acrescentamos mesmo, que uma das admiráveis zonas de inovação em relação aos modelos da sua época, quer de Bocage, quer do nosso Nóbrega, situa-se precisamente na exploração que ambos fizeram dos ambientes hórridos e tenebrosos, dentro da melhor tradição shakespereana, e no mais puro gosto pré-romântico.
Efectivamente, ambos legaram-nos os melhores depoimentos da literatura portuguesa e as mais vibrantes e comovedoras experiências da vida nos cárceres, particularmente os horrorosos enredos vividos nesses sepulcros dos viventes
Apenas, alguns exemplos:
Preso à rija cadeia, onde inocente
Suporto da calúnia o férreo açoite,
Sem achar outro arrimo, a que me acoite,
Bradava pela morte em pranto ardente. (…)
Quem me diz que entre os ferros da violência,
A cujo peso o meu valor quebranto,
Pode a dor sufocar, conter o pranto,
O que conserva ilesa a consciência;
Ou dos trabalhos tem pouca experiência,
Ou finge esforço inexpugnável, santo;
O delinquente em ferros geme tanto,
Como o herói da cândida inocência. (…)
Como está este dia tão soturno!
Pavoroso negrume o ar enlucta,
Naquele galho a regougar se escuta,
Crendo que é noite, o carpidor nocturno.(…)
O encrespado mar, de negro tinto,
Ostenta em sua túmida voragem
Querer o Orbe aniquilar faminto.
Sucedeu Bóreas torvo à branda aragem;
Da viva inquietação, que n´alma sinto
Ó dia de pavor, tu és a imagem!
Por último, este belo soneto, que Nóbrega dedicou a Camões:
Se me recordo, meu Camões divino,
De que em pobre hospital, sórdido, agreste,
O derradeiro adeus ao Mundo deste,
Leio em tua desgraça o meu destino.
O drago da doença, atroz, maligno,
Cospe em meu corpo tragadora peste;
Que meu fatal instante em fim se apreste,
Espero, como tu, em leito indigno.
Com tudo melhor sorte em ti conheço:
Tu do desprezo sofres só o insulto,
Eu entre ferros ao sepulcro desço,
Tu sem nota, eu infame me sepulto;
Porém menos, também, menos mereço,
Porque tu eras sábio, eu sou estulto.
Chegados aqui, é altura de recordar uma contradição ao fulgor económico do período histórico em apreço, com consequências que, certamente, preocuparam e alvoroçaram Francisco Álvares de Nóbrega, que não compreenderia, totalmente, os motivos de muitas dramas, que vitimavam, especialmente, os mais frágeis e desvalidos.
Na verdade, as explorações agrícolas e económicas madeirenses de então, tinham características de quase monocultura e praticamente estavam viradas em exclusivo para a exportação. Daí resultava que, quando por circunstâncias externas, nomeadamente tempestades, guerras internacionais, ou acção dos corsários, o tráfego de navios para a Madeira era afectado, tais ocorrências determinavam que o arquipélago deixasse de ser devidamente abastecido de cereais e doutros géneros alimentícios; desencadeando-se as tradicionais Crises de Subsistência e até pavorosas fomes, com todo o seu caudal de mortes, misérias e tormentos.
Por exemplo, em 1761, ou seja poucos anos antes do nascimento de Francisco Alvares de Nóbrega, os efeitos da Guerra dos Sete Anos afastaram a navegação do Funchal, provocando situações de grandes carências alimentares; que acarretavam intensos surtos emigratórios, sobretudo para o Brasil. Em 1767, a situação piorou, exacerbada por uma epidemia de sarampo que grassou na cidade e nos campos; e em 1777, já na infância do nosso Camões Pequeno, assistia-se ao triste espectáculo de ver as ruas cheias de gente famélica a procurar, desesperadamente, o pão que não havia.
Esta trágica conjuntura agravou-se ainda mais com a eclosão da Revolução Americana e da Guerra da Independência da América, que tornava impossível a previsão, com um mínimo de rigor, de quando arribariam ao porto do Funchal os navios abastecedores vindos da América do Norte. Para fazermos uma pequena ideia da real dimensão dessas crises, basta lembrar que Baltimore fornecia-nos trigo, milho e arroz; de Bóston recebíamos farinhas, biscoito, feijão, arroz e carne; de Charleston provinha biscoitos, salmão, arroz, feijão e carne; e da Filadélfia e Virgínia também adquiriríamos carne, farinha, e milho.
Para atenuar as fomes, e evitar mais mortes, em 6 de Dezembro de 1777, a Câmara Municipal do Funchal pedia, encarecidamente, que pela Junta do Bem Comum fossem enviados navios com trigo para a Madeira; e em 1789, quando Francisco Alvares de Nóbrega já trabalhava na cidade, os vereadores e procuradores dos mesteres do Funchal, seguramente contando com a solidariedade e o apoio do jovem poeta de Machico, reivindicavam com veemência, em nome do povo, que fosse autorizado importarmos, directamente, trigo e milho dos Açores, cuja aquisição era privilégio exclusivo da Coroa.
É de realçar que em todas estas reivindicações e manifestações, os procuradores dos mesteres sempre foram os mais activos, pois eram precisamente as classes populares que suportavam quase todo o peso das crises de subsistência, situação que, certamente, feriu a aguçada sensibilidade humanista de Francisco Álvares de
Nóbrega.
No século XX nada mudou. Em 1805, já no fim da vida de Francisco Alvares de Nóbrega, novo surto de fomes provocou lutas, arruaças e manifestações, reivindicando que o trigo dos Açores fosse importado sem entraves pelo nosso arquipélago; tendo sido tão intensa a reacção popular contra o autismo do Poder Central, que determinou a ordenação régia de 17 de Janeiro de 1806, onde, finalmente, constava que dada a esterilidade que se achava a Ilha pela falta de grão e farinhas, ordena-se que doravante nas Ilhas dos Açores não se compre grão de qualidade alguma, para ser remetido à Corte de Sua Real Fazenda, a fim de que o existente se transporte para a Madeira.
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Porque já nos alongamos, resta-nos debruçar, embora de forma muito sucinta, á volta da superstrutura relativa à História das ideias e das correntes de pensamento que se esgrimiam durante o curto tempo da vida do nosso poeta.
Assim, por um lado pontificavam os defensores do servilismo, dos Morgadios e Capelas, da obediência cega, do dogmatismo e de todas as instituições da Velha Ordem, robustecidos com a política conservadora de Dª Maria 1ª e do seu governo, que após o afastamento do Marquez de Pombal recorreu às ameaças, à prisão, e à tortura, com a finalidade de impedir o progresso do pensamento liberal, que um pouco por toda a Europa gerou as condições para a eclosão da Revolução Francesa.
Do outro lado, vítimas da opressão e relegados para a clandestinidade, pulsavam os paladinos da mudança, da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, que foram ganhando cada vez mais adeptos, sobretudo nas camadas intelectuais; sendo até certo que a Madeira foi das primeiras terras portuguesas onde se organizaram as célebres lojas maçónicas, condenadas em 1737, por bula papal; apesar de apenas difundirem os ideais filantrópicos, a fraternidade universal, e o auto-aperfeiçoamento moral e intelectual.
De facto, logo em 1770, ainda o nosso escritor não era nascido, o Governador do arquipélago mandou prender Aires Ornelas Frasão, Francisco Alincourt, e Bartolomeu Andrieux, acusados de serem perigosos pedreiros–livres, que ponham em perigo a ordem, a religião, as instituições, e a moral tradicional.
E em 1792, pouco antes de Francisco Álvares de Nóbrega entrar no Seminário, foi desencadeada pelo déspota Bispo D. José da Costa Torres, uma cruel perseguição contra os maçons e outros cidadãos que não se conformavam com o dogmatismo e a opressão. Para tanto o Prelado mandou publicar um raivoso edital convocando os cidadãos a denunciar à Inquisição todos aqueles que soubessem pertencer ao que ele chamava a maldita seita, que tinha pacto com Satanás e era excomungada.
Num importante estudo sobre estes factos, publicado em 1989, nas Actas do I Colóquio Internacional da História da Madeira com o título, A Madeira nos Arquivos da Inquirição, a investigadora Maria do Carmo Jardim Dias Farinha refere que se verificou um conjunto de denúncias para o Tribunal do Santo Ofício, tal como aconteceu em 1591 contra os cristãos-novos. Desta vez o alvo foi a Sociedade dos Pedreiros Livres; que organizava muitos membros da nobreza, grandes proprietários, intelectuais, e até padres católicos, chegando alguns a ser presos e outros foram exilados.
Comentando estes factos, a historiadora Anita Novinsky, com quem estamos inteiramente de acordo, referia que a violência punitiva e castradora da Inquisição era mais uma prova que esse Tribunal tinha por fim averiguar o grau de ortodoxia dos moradores, e testar a resistência que estes apresentarem em aceitar a doutrina, a moral e a explicação do Mundo dadas pelo Poder, representado por um lado pela Igreja e do outro pelo Estado.
E foi precisamente porque não se conformou com um Estado absolutista e tirano; e porque também afrontou a doutrina retrógrada duma Igreja caduca e prepotente, que o grande poeta Francisco Álvares de Nóbrega sofreu os tormentos do cárcere, e acabou tragicamente com os seus dias, muito infeliz e deprimido.
Podemos assim classificar Francisco Alvares de Nóbrega como um dos heróis que foram sacrificados na luta pela Liberdade, pela Justiça e pela profunda transformação da Humanidade, em favor de mais igualdade e fraternidade para todos os povos.
A finalizar, lembramos que tem sido voz corrente, que os tenebrosos esbirros da Inquisição, quando depararam com o cadáver do escritor, vandalizaram e destruíram os seus escritos, e até uma nova colecção de poesias que estava pronta para ser publicada; facto que torna imperativo que continuem a ser promovidas cuidadosas investigações e buscas para tentar descobrir os trabalhos do nosso poeta que, porventura, ainda estejam dispersos e desconhecidos.
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Por outro lado, continuam a faltar investigações, estudos, e ensaios sobre a vida e a obra deste grande poeta madeirense, pelo que terminamos este artigo com um apelo aos nossos eruditos, sobretudo aos organismos regionais de cultura, e à Universidade da Madeira, propondo que sejam motivados e incentivados mais estudos especializados para a procura, investigação crítica, e a reconstituição judiciosa dos escritos de Francisco Álvares de Nóbrega, e ainda para que prossigam investigações tendentes a colmatar as lacunas que ainda persistem em volta da biografia e das influências históricas, literárias e culturais na obra deste grande e nobre poeta; que muito honra Machico e a Madeira.
Ensaio histórico sobre a curta vida do poeta de Machico, Camões Pequeno (ver aqui)
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