MPLA não é dono da verdade
A4 de Fevereiro de 1961, cidadãos ligados ao MPLA, desencadearam um ataque contra a Cadeia de São Paulo e a Casa de Reclusão, em Luanda, dando início à luta armada que culminou com a proclamação da independência de Angola, em 11 de Novembro de 1975.
Várias fontes sustentam que deveriam participar no ataque cerca 2100 pessoas, mas as detenções efectuadas pela polícia política portuguesa (PIDE) nos dias anteriores à acção, na sequência de denúncias, fizeram reduzir o número para pouco mais de 200 intervenientes.
Consta que Paiva Domingos da Silva, Imperial Santana, Virgílio Sotto Mayor e Neves Bendinha (já falecidos) terão sido alguns dos responsáveis pela coordenação do assalto, cujos preparativos começaram em Outubro de 1960.
A arrojada acção tinha como objectivo primário libertar os presos políticos angolanos que se encontravam encarcerados nas cadeias visadas, acusados pelas autoridades coloniais de actividades subversivas. Os participantes no ataque foram treinados sobre questões mais práticas, por exemplo como manejar os instrumentos que seriam utilizados, principalmente catanas, ou desarmar um sentinela.
As informações disponíveis revelam que os treinos decorriam à noite, na zona de Cacuaco, arredores de Luanda, e quando se começou a recear infiltrações de indivíduos ligados à polícia política portuguesa a preparação mudou‐se para o Cazenga.
Neste último local foi erguido um monumento denominado “Marco Histórico do 4 de Fevereiro”, inaugurado em 19 de Setembro de 2005, em homenagem aos heróis tombados pela causa da independência.
O efeito “Santa Maria”
Aescolha da data do ataque (4 de Fevereiro) teve em atenção o facto de se encontrarem em Luanda, na altura, jornalistas estrangeiros que aguardavam a chegada do paquete “Santa Maria”, assaltado alguns dias antes no alto mar por um grupo liderado por Henrique Galvão, um oposicionista do regime de Salazar.
Quando ficou claro que o navio não viria para Luanda e os jornalistas começaram a preparar‐se para abandonar a capital angolana, os nacionalistas decidiram lançar o ataque antes que fossem todos embora para chamar a atenção da comunidade internacional sobre a repressão que se vivia no país.
A presença dos jornalistas garantiu a projecção mediática internacional do assalto dos nacionalistas angolanos que, vestidos de negro e armados com paus e catanas, atacaram os guardas da Cadeia de São Paulo e da Casa de Reclusão de Luanda.
“A acção revolucionária protagonizada pelos bravos patriotas foi determinante para o derrube do colonialismo em Angola e em outras colónias portuguesas em África”, afirmou Américo José Gaspar, coronel das Forças Armadas Angolanas na reserva e ex‐guerrilheiro do MPLA.
Este responsável conta que, devido à brutalidade do regime fascista, em 1966, muitos jovens como ele, na altura com 16 anos de idade, não hesitaram em juntar‐se voluntariamente aos combatentes da liberdade para “travar” a fúria dos colonialistas que se espalhava pelo interior do país.
Esta acção levou as autoridades fiéis ao regime de Salazar a enviar para Angola os primeiros contingentes militares destinados a reforçar os reduzidos efectivos até então destacados na província ultramarina, como era considerado o território angolano.
Na sequência do ataque, a pressão da polícia política portuguesa aumentou e cresceram também as detenções entre os nacionalistas, originando a fuga de milhares de angolanos para as matas e países limítrofes, como a Zâmbia e o então Congo Leopoldoville, onde prosseguiram a luta pela independência do país.
Pouco tempo depois do assalto às cadeias em Luanda, o conflito alastrou‐se às restantes colónias portuguesa em África.
… E os carnavais
Conta o escritor Emídio Fernando que “nas conversas clandestinas, nas esplanadas e nos serões quentes de Luanda, nas matinés e noitadas de merengues e rebitas dos musseques, nos almoços de funge, regados com cervejas Cuca, corria um mistério, transportado por uma frase dita em surdina: ‘Este ano vai haver dois Carnavais!’”.
A frase sobressaltou a advogada Maria do Carmo Medina, já conhecedora e defensora das actividades clandestinas, quando a ouviu da boca de João Cardoso, um activista pela independência de Angola e que viria a morrer uns anos depois na prisão de São Pedro da Barra.
A expressão – “dois Carnavais” – funcionava quase como uma senha de cumplicidade entre quem estava a preparar, há largos meses, um assalto às cadeias de Luanda.
Na primeira linha dos preparativos aparecia Manuel das Neves, um cónego mestiço, dos raros não‐brancos de origem portuguesa a integrar a Igreja Católica. Era ele que servia de elo de ligação entre os presos, os seus familiares e dirigentes políticos. E, sobretudo, um instigador, a partir do seu pequeno quarto numa paróquia de Luanda, da revolta armada, “com sangue”, “contra o colonialismo”.
Como director do jornal “O Apostolado”, Manuel das Neves conseguia fazer passar algumas mensagens subtis para o exterior, ao mesmo tempo que ia dando notícias sobre as movimentações de alguns nacionalistas que viviam no estrangeiro. Servia‐se ainda do jornal e de contactos com os paroquianos para manter ligações com activistas em Luanda, mas também com gente que viajava frequentemente entre os bairros periféricos de Luanda e o Congo, via Matadi. E era através desses viajantes, a maior parte de origem congolesa ou nascidos no Norte de Angola, que Manuel das Neves ia tendo conhecimento das movimentações de nacionalistas e do nascimento, primeiro, da UPNA e, depois, da UPA.
Há muito que o cónego, vigário‐geral da diocese de Luanda, vinha defendendo a necessidade de Angola se tornar independente. Desde a década de 50, sobretudo nos derradeiros anos, que Manuel das Neves recebia, em sua casa, perto da Sé de Luanda, o também padre Joaquim Pinto de Andrade que, tal como o irmão, Mário, começava a participar nos movimentos que lutavam pela independência. As conversas, de acordo com a memória de Pinto de Andrade, não variavam muito e eram em tudo idênticas a tantas outras em que Manuel das Neves mantinha com outros activistas e que serviam para espalhar ideias nacionalistas:
“Ele dizia que era preciso quebrar este mito [que os angolanos não queriam a independência e gostavam de ser portugueses] e isto só fazendo um acto de força, um acto que tivesse repercussão internacional para que todo o mundo visse que os angolanos queriam ser independentes. E planeava em conversas em que dizia: ‘Não é preciso muita coisa, para se fazer uma guerra e vencer. Não. É só para fazer um acto que dê brado lá fora e quebre o mito’. Então, eu disse‐lhe: ‘Como, com que armas, senhor cónego?’ E ele respondeu‐me: ‘Armas brancas, portanto, catanas, punhais… assaltar cadeias onde haja presos políticos para os libertar e, no mesmo dia, assaltar a rádio e as principais esquadras da Polícia e ir pela Rua do Balão até à Fortaleza e hastear a bandeira nacional. Bom, temos de fazer uma bandeira nacional, temos de inventar uma’”.
Na procura de um acto espectacular, Manuel das Neves defendia que era necessário espreitar uma oportunidade. Por exemplo, quando houvesse jornalistas estrangeiros em Angola. O ensejo, tantas vezes desejado, surgia proporcionado por Henrique Gal‐ vão, quando decidiu desviar o navio “Santa Maria”. Demitido do exército, onde tinha o posto de capitão, Henrique Galvão resolveu assaltar o paquete, com 970 turistas a bordo, que se propunha atravessar o Atlântico com destino ao Brasil.
A “Operação Dulcineia” começara no início de Janeiro. Henrique Galvão encontrava‐se na Venezuela à espera do navio que deveria fazer escala em Caracas a caminho do Rio de Janeiro.
Galvão e mais 20 elementos – entre portugueses e espanhóis que combatiam as duas ditaduras ibéricas – do autoproclamado DRIL (Directório Revolucionário Ibérico de Libertação) tomavam de assalto o navio anunciando que pretendiam atracar em Angola. Mal foi dada a notícia do sequestro do navio, jornalistas de quase todo o Mundo aterravam em Luanda. No entanto, a aventura de Henrique Galvão terminava no Brasil, precisamente na noite de 3 de Fevereiro, poucas horas antes dos assaltos às cadeias.
Luanda estava “apinhada de jornalistas, cineastas e locutores de rádios”, de acordo com um relatório da PIDE, elaborado dias depois.
Manuel das Neves recebia a colaboração empenhada de Mariana Ana Paz, que tinha a incumbência de levar comida para os presos da Casa de Reclusão Militar, na Cadeia de São Paulo, quase todos eles, detidos por participarem em actividades subversivas contra o regime. Mas não só. Cada visita era acompanhada por mensagens, não apenas do cónego, mas de outros activistas. E, no interior dos bairros, pontificava o “mais‐velho” Cardoso Sebastião Gamboa, considerado, pela população, como tendo poderes “mágicos”. (leia tudo na folha 8)
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