sábado, 4 de fevereiro de 2023

O massacre de Batepá perpetrado pelo colonialismo português em S. Tomé e Principe foi silenciado

 «Assim começa o poema “Onde Estão os Homens Caçados Neste Vento de Loucura” (1958) com que Alda Graça do Espírito Santo (1926-2010), proeminente poetisa e política são-tomense, eternizou o massacre de fevereiro de 1953 em São Tomé. As atrocidades cometidas por ordem do tenente-coronel Carlos de Sousa Gorgulho (1898-1972), governador de São Tomé e Príncipe, de 1945-53, são também conhecidas por guerra de Batepá, nome do local onde o episódio fatídico começou. De facto, não houve guerra nenhuma, mas uma onda de violência brutal e arbitrária contra uma população são-tomense indefesa e inocente. Gorgulho alegou ao Governo de Salazar reprimir em São Tomé “o primeiro movimento comunista esboçado na nossa África”, enquanto o seu verdadeiro motivo foi “castigar exemplarmente os chefes responsáveis” pela, no seu entender, “abominável ingratidão” perante “um governo que durante sete anos incansavelmente os amparou”. 

 Quando chegou a São Tomé, em abril de 1945, Gorgulho tinha dois principais objetivos, modernizar as infraestruturas do arquipélago e resolver o problema da carência de mão de obra nas plantações de café e cacau, conhecidas por roças. Gorgulho achou baixo o nível de instrução média dos colonos portugueses em São Tomé e Príncipe. Uma modernização das infraestruturas devia atrair portugueses mais bem formados para o arquipélago. Para manter os custos das construções reduzidos, as obras públicas empregaram brigadas de trabalho forçado cujos capatazes eram presos criminosos de delito comum, libertados para tal função. O chefe de uma das brigadas era o mal-afamado Zé Mulato, a cumprir pena por homicídio. Os trabalhadores destas brigadas eram principalmente pessoas sem documentação de identificação apanhadas pela polícia em rusgas. Acorrentados por cadeias de ferro, sujeitos a castigos corporais e outros tratamentos humilhantes, os trabalhadores não foram pagos ou recebiam muito pouco. 

 Em poucos anos, as brigadas mudaram completamente o rosto da cidade de São Tomé. Transformaram uma área pantanosa numa zona residencial chamada Bairro Salazar, construíram ruas e estradas, moradias para funcionários públicos, um mercado, um estádio, um cinema, postos sanitários, dois hotéis, uma nova prisão e aeroportos nas duas ilhas. 

 Naquela altura, São Tomé e Príncipe tinha uma população de cerca de 61.200, dos quais 1150 brancos portugueses e 23.600 contratados de Angola, Moçambique e Cabo Verde, também chamados serviçais. Desde a abolição da escravatura no arquipélago, em 1875, os serviçais constituíram a mão de obra nas roças dos portugueses. Regra geral, os são-tomenses não aceitaram esta labuta, considerada “trabalho escravo”, abaixo do seu estatuto de homens livres. Contrariamente aos angolanos, moçambicanos e guineenses, assim como aos cabo-verdianos, também os são-tomenses não foram submetidos ao discriminatório Estatuto dos Indígenas (1926-61), visto que eram considerados mais “civilizados”. Gozavam de facto de uma cidadania, incluindo o direito de voto. Nos anos de 1940, as condições de trabalho nas roças já não eram as mesmas do início do século XX, quando os métodos sem escrúpulos do recrutamento dos serviçais, naquela altura quase exclusivamente angolanos, e o brutal regime de trabalho nas roças provocaram uma campanha de antiesclavagistas britânicos contra o “cacau escravo”, que culminou num boicote de cacau são-tomense por fábricas de chocolate britânicas e uma alemã, em 1909. Contudo, as condições de trabalho e de vida dos contratados ainda eram muito duras. Além disso, para os são-tomenses o contrato nas roças não era apenas uma simples questão de condição laboral, mas mais uma questão identitária. Devido ao seu desprezo pelo trabalho braçal nas roças, os são-tomenses frequentemente eram considerados insolentes e preguiçosos pelos portugueses. Por sua vez, os são-tomenses costumavam manter uma atitude de superioridade para com os serviçais. No entanto, para levar os são-tomenses a aceitarem trabalhar nas roças Gorgulho tomou medidas de forma a melhorar as condições laborais nas roças, mas também para dificultar a economia de subsistência dos são-tomenses. Além disso, de 1947 a 1952, aumentou sucessivamente o imposto individual de 30$00 para 75$00 a fim de incentivar os são-tomenses a procurar trabalho assalariado.

 Todavia, inicialmente a relação entre o governador Gorgulho e a população local era boa. Por ocasião do seu aniversário, em 12 de dezembro de 1948, ofereceram-lhe uma espada de honra em reconhecimento dos seus méritos e no fim do seu primeiro mandato, em 1949, enviaram uma petição com mais de 2 mil assinaturas para Lisboa pedindo para reconduzi-lo no cargo. Esta relação começou a mudar devido à intensificação das rusgas constantes. Quando, nas eleições presidenciais de 1949, os eleitores na vila da Trindade não votaram no candidato de Salazar, o Presidente Óscar Carmona (1926-51), mas se abstiveram, em retaliação, Gorgulho mandou deter três centenas de eleitores, obrigando-os a prestar serviço nas brigadas de trabalho forçado. Em setembro de 1950, são-tomenses enviaram uma petição ao ministro das Colónias, Manuel Sarmento Rodrigues (1950-55), solicitando um inquérito às ações opressivas de Gorgulho. 

 No início de 1953, o chefe da Curadoria dos Serviçais propôs distribuir parcelas de subsistência a todos os negros do arquipélago, independentemente do seu estatuto legal, e obrigá-los a trabalhar nas roças seis a nove meses por ano. Perante a ameaça da perda do seu estatuto livre e da sujeição ao regime de contrato nas roças, a população são-tomense ficou cada vez mais preocupada. 

 Em 2 de fevereiro, apareceram fixados na cidade panfletos anónimos escritos à mão ameaçando de morte aqueles que permitissem que os são-tomenses fossem contratados para as roças. Em resposta, Gorgulho mandou fixar nos locais públicos um edital afirmando que o governo não tinha nenhuma intenção de obrigar os são-tomenses a contratar-se. Muitos destes editais foram rasgados por transeuntes. No dia 3, à noite, Gorgulho mandou Zé Mulato e três polícias angolanos do Corpo de Polícia Indígena (CPI) para Trindade à procura dos culpados. Quando encontraram um grupo de homens com machins, um deles, conhecido por Pontes, recusou-se a entregar o seu machim atacando Zé Mulato, que o matou a tiro. No dia seguinte, logo de manhã, furiosas com o assassínio de Pontes, cerca de 200 pessoas armadas com azagaias e machins vindas da localidade de Batepá rodearam o posto do CPI de Trindade, ocupado apenas por oito polícias que chamaram reforços da cidade, enquanto dispararam rajadas de metralhadora para o ar para afastar os manifestantes. 

 Na cidade, Gorgulho declarou que havia uma conspiração comunista para instalar Salustino Graça, agrónomo e são-tomense proeminente, como chefe de um governo rebelde. Afirmou que os conspiradores pretendiam matar todos os brancos, apoderando-se das suas mulheres. Convocou todos os brancos que tinham prestado serviço militar a tomarem armas para se defenderem. Cerca das 8 horas de manhã os homens armados organizados pelo governador chegaram a Trindade para perseguir os manifestantes fugidos para o mato. Um pelotão, liderado pelo alferes Jorge Luís Amaral Marques Lopes, um funcionário da Alfândega, deu ordem para disparar contra um grupo de fugitivos. Um rapaz de 14 anos foi morto e um outro ficou gravemente ferido. Quando Amaral esgotou as suas munições, um são-tomense conhecido por Zé Cangolo matou-o com o seu machim. Nesta confrontação, um polícia angolano chamado Sauíma também perdeu a vida. Ainda nesse dia, Gorgulho mandou deportar para Príncipe 24 supostos principais conspiradores, entre os quais Salustino Graça e dois roceiros brancos considerados oponentes de Salazar. 

 A 5 de fevereiro, o Comando Militar, chefiado por Gorgulho, mobilizou 200 contratados angolanos e moçambicanos para reforçar o CPI, então com 190 homens, entre os quais 80 angolanos e dez superiores portugueses. Ao mesmo tempo, Gorgulho desarmou os 100 integrantes são-tomenses do CPI visto que “não mereciam qualquer confiança”. O governador incitou os serviçais africanos dizendo que trabalhavam sob más condições porque os são-tomenses não queriam sujar as mãos. Durante dias, o CPI, reforçado de serviçais, e os voluntários brancos lançaram uma onda de perseguições, atrocidades, violações, fogo posto e pilhagens, em particular na zona de Trindade.

  No dia 5 de fevereiro, 46 são-tomenses alegadamente envolvidos na morte de Amaral, foram amontoados juntos numa pequena cela no quartel do CPI, construída para dez pessoas. Quando a cela foi aberta no dia seguinte, 28 pessoas tinham morrido asfixiadas. Funcionários públicos são-tomenses, acusados por Gorgulho como “os líderes responsáveis pelos graves acontecimentos”, foram encerrados em massa na prisão. O próprio Gorgulho relatou a detenção de mais de mil pessoas. Na prisão sobrelotada os prisioneiros foram maltratados pelos soldados e milicianos com golpes, pancadas e coronhadas. Muitos foram torturados numa cadeira elétrica por António Luís Coelho, um assistente de radiografia, ajudado pelo cabo Carlos da Silva Fernandes e outros carrascos de Gorgulho. Os torturados eram obrigados a confessar que faziam parte duma revolta com o objetivo matar o governador, decapitar os colonos brancos distribuindo as suas mulheres entre si. Os prisioneiros foram regularmente levados para o campo de trabalho forçado na praia de Fernão Dias, onde decorriam as obras de um cais acostável. Mal chegados a Fernão Dias, os presos descalços eram acorrentados com grilhetas à volta do pescoço e submetidos a trabalhos forçados. Numa sala de tortura em Fernão Dias, Zé Mulato e outros presidiários maltrataram os presos com varapaus, tiras de pneus e chicotes. Muitos não sobreviveram ao trabalho forçado e às atrocidades neste campo. Pelo menos 20 presos foram mortos em Fernão Dias. Quando os cadáveres eram atirados ao mar Gorgulho chamou: “Deita essa merda ao mar para evitar chatice.” No dia 8, o governador anunciou ter acabado com a suposta revolta, porém, as crueldades continuaram por mais tempo. Em 22 de fevereiro, Gorgulho realizou uma manifestação no estádio onde elogiou e condecorou soldados e voluntários pelo contributo para “o restabelecimento da ordem pública”. 

 Quase toda a população branca apoiou o governador. Houve, porém, além dos acima referidos roceiros, alguns portugueses que se opuseram às ações de Gorgulho, nomeadamente o ex-comandante do CPI, capitão Salgueiro Rego. Este foi demitido por Gorgulho pouco antes do massacre por ter criticado as suas medidas. Em 7 de fevereiro, Gorgulho relatou ao ministro do Ultramar: “O comportamento de todos os mobilizados brancos foi excecional e atuaram com uma dedicação que não desmente o valor da nossa raça.” A 4 de março, uma delegação de nove elementos da PIDE chegou a São Tomé para investigar a alegada revolta comunista. É uma ironia da história que tenha sido a PIDE a descobrir que não tinha havido qualquer conspiração comunista. No dia 14, António Luís Coelho foi detido por ter ajudado Gorgulho a inventar o suposto complô comunista. Zé Mulato, Silva Fernandes e outros carrascos também foram presos pela PIDE. À ordem do ministro Sarmento Rodrigues, em 20 de abril, Gorgulho regressou de avião a Lisboa. Em 5 de junho, o ministro do Exército, general Abranches Pinto (1950-54), louvou-lhe as “notáveis qualidades de iniciativa na organização de forças para combater os sediciosos…” Mesmo assim, no mesmo dia, Gorgulho foi exonerado do cargo de governador. 


Entre 24 de março e 17 de maio, os acontecimentos foram investigados pelo advogado Manuel João de Palma Carlos (1915-2001), conhecido oposicionista à ditadura salazarista, que fora para São Tomé a pedido da família Graça Espírito Santo. O advogado realizou os seus inquéritos assistidos por Alda Graça do Espírito Santo, sobrinha de Salustino Graça, na altura uma jovem estudante. Inicialmente, Palma Carlos podia falar com os prisioneiros apenas durante uma hora às quartas-feiras. Em 7 de abril, Gorgulho mandou deportar 120 presos para Príncipe impedindo o seu interrogatório por Palma Carlos. Finalmente, em maio, todos os são-tomenses aprisionados em fevereiro foram postos em liberdade. 

 Em junho, um tribunal militar em São Tomé, julgou sete são-tomenses acusados de terem sido envolvidos na morte de Amaral e Sauíma. Zé Cangolo e um outro réu foram condenados por homicídio a 28 anos de degredo cada. Dois réus receberam uma pena de prisão de dois anos cada por não terem denunciado os culpados. Os outros três réus foram absolvidos. No mesmo mês, como sinal de reconciliação, Portugal atribuiu formalmente a plena cidadania aos são-tomenses, estatuto legal concedido aos cabo-verdianos já em 1947. Em 1955, Zé Mulato e António Luís Coelho foram julgados e condenados a 22 e 16 anos de prisão, respetivamente. Silva Fernandes foi condenado a dois anos de prisão maior, mas pouco depois posto em liberdade mediante uma caução de 30.000$00, por ter interposto recurso. 

 Contudo, apesar de ter sido investigado, Gorgulho nunca chegou a ser julgado. Em 7 de dezembro de 1956, o ministro de Defesa, Santos Costa (1944- 58), ordenou arquivar o procedimento contra antigo governador. No respetivo despacho diz: “Por minha parte quero aqui deixar expressamente designado que todos os atos cometidos pelo governador na qualidade de comandante militar, durante o acontecimento que, no mês de fevereiro de 1953, eclodiu na ilha de São Tomé têm a minha concordância e mereceram o meu inteiro aplauso.” Em setembro de 1952, Gorgulho escrevera a Salazar “Espero em Deus, que nunca desmerecerei a confiança com que V. Exª me tem distinguido.” Gorgulho foi promovido a coronel em 1954 e a brigadeiro, em 1957. Em 1970, todos os prisioneiros condenados na sequência do massacre foram amnistiados pelo presidente Américo Thomaz (1958-74). Depois da independência de São Tomé e Príncipe, o dia 3 de fevereiro tornou-se o dia dos Heróis da Liberdade, que é anualmente comemorado oficialmente na presença do bispo católico e do pequeno corpo diplomático na praia Fernão Dias, onde fica o memorial em homenagem às vítimas. 

 O número das vítimas mortais do massacre não é conhecido. Existem estimativas de 50 a 100, até mais de 1000 mortos. Desde que um artigo anónimo publicado em Cuba, em 1969, afirmou o número exato de 1032 mortos, foi frequentemente citado este número. Contudo, é obviamente mais um número simbólico, pois os últimos dois dígitos se referem ao dia e o mês quando as atrocidades começaram. Em 2018, o próprio Governo são-tomense desmentiu implicitamente este número quando inaugurou no memorial em Fernão Dias sete placas com os nomes de 474 vítimas do massacre, não apenas mortais, mas também pessoas que sobreviveram as torturas e tormentos. Batepá não foi “uma réplica equatorial de Auschwitz”, como afirma a jornalista Felícia Cabrita no seu livro “Massacres em África” (2008). O extermínio dos são-tomenses não foi objetivo de Gorgulho. Contudo, o massacre é considerado a maior violência do colonialismo moderno português em tempos de paz. Apesar disso, Batepá não teve uma notoriedade minimamente comparável com o massacre de Sharpeville, perpetrado pelo regime do apartheid da África do Sul, em 1960, embora ultrapassasse este em termos do número de mortos e de duração.

 Esta discrepância não se deve apenas ao contexto político diferente, mas também ao então isolamento de São Tomé e ao silenciamento imposto pelo regime salazarista. Na altura, apenas uns nacionalistas africanos denunciaram o massacre, como o angolano Mário Pinto de Andrade (1928-90) que, em 1955, publicou sob pseudónimo o artigo ‘Massacres à São Tomé’ na “Présence Africaine”. Por outro lado, o geógrafo Francisco Tenreiro (1921-63), natural de São Tomé e antigo companheiro de Andrade na Casa dos Estudantes de Império (1944-64), mencionou “o caso de Batepá” apenas muito brevemente na sua célebre monografia “A Ilha de São Tomé” (1961). É óbvio que, naquela altura, a (auto)censura não lhe permitiu escrever mais. Desde 1958, Tenreiro fora deputado pelo círculo de São Tomé na Assembleia Nacional salazarista. Muito menos compreensível é que, em 1993, quase 20 anos após o 25 de Abril, a Cooperação Portuguesa publicou o livro “A Economia de São Tomé e Príncipe”, do economista Jorge Eduardo da Costa Oliveira (1933-2016), que, apesar de abordar a questão da mão de obra nas roças, não menciona Batepá com uma única palavra só. 


  O primeiro artigo de pesquisa em português sobre o massacre em São Tomé apareceu apenas em 1996, da minha autoria, na revista “História”. Quando, pouco depois da publicação, pedi mais uns exemplares da revista para os enviar para São Tomé recebi a resposta que a edição estava “esgotada”. Mais provável é que alguém fez desaparecer de propósito este número da revista. 

 Conheci os primeiros pormenores sobre Batepá em 1993 quando estive em São Tomé para realizar uma pesquisa sobre a transição democrática naquele país. Em Portugal, em 1995, Palma Carlos deu-me generosamente acesso a muitos documentos do seu arquivo privado sobre os acontecimentos de 1953. Além disso, tentei consultar em Lisboa dois relatórios sobre Batepá, um da PIDE, de 1955, na Torre do Tombo, e outro resultante de um inquérito realizado pelo jurista Vítor Pereira de Castro, em 1974-75, a pedido do então ministro do Coordenação Territorial, António de Almeida Santos (1926-2016).

  A consulta do primeiro, em 1994, era impossível, pois descobri que tinha desaparecido do arquivo da PIDE sem deixar vestígios. Era óbvio que há muito tempo alguém o fez desaparecer intencionalmente. 

 Quanto ao segundo, que desde a sua conclusão, se encontrava fechado no arquivo do Instituto Histórico-Diplomático, escrevi diretamente a Almeida Santos, na altura presidente da Assembleia da República. Em maio de 1995, Almeida Santos respondeu- -me que tantos anos passados não via inconveniente em que se me revelasse o relatório. Imediatamente depois, dirigi um pedido formal de autorização para consulta do relatório de 1975 ao então secretário de Estado de Cooperação, José Briosa e Gala (1992-95). Finalmente, depois de várias reclamações e muita insistência, em julho de 1998, o então presidente do Instituto Diplomático, Luís Navega, respondeu que “a Comissão de Seleção e Desclassificação... decidiu que o documento em questão não pode ser aberto à consulta pública por não ter ainda decorrido o prazo de 30 anos sobre a data de elaboração do relatório, estabelecido pela legislação em vigor”. Inesperadamente, nem sequer passada uma semana, recebi uma segunda resposta, da chefe do Gabinete do Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, Clarinda Mendes de Sousa. Ela deu um outro motivo da recusa, informando “que entendeu a Comissão de Seleção e Desclassificação que, dada a especial delicadeza política do relatório, a defesa do interesse público justificava a conservação do documento como matéria classificada”.

  Achei incompreensível como a ocultação de atrocidades cometidas pelo colonialismo português durante a ditadura podia ser “do interesse público” em plena democracia. Esta vontade de ocultação é mais explicável com “a mentalidade de silenciar os crimes do colonialismo” para parafrasear Álvaro Vasconcelos, autor do livro “Memórias em Tempo de Amnésia. Uma Campa Em África” (2022), em entrevista ao “Público”, a 16 de dezembro de 2022. Em julho de 2006, passados 31 anos sobre o referido prazo, fiz novo pedido de consulta ao Arquivo Histórico-Diplomático. Mesmo assim, em março de 2007, a então diretora, Maria Isabel Fevereiro, respondeu “que a Comissão de Seleção e Desclassificação entendeu manterem-se os fundamentos que estiveram na base da ‘classificação’ do documento em apreço”. Insistindo, em fevereiro de 2010, dirigi um pedido de autorização especial para consulta do relatório ao embaixador Vasco Valente, então secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, conforme o regulamento a única entidade competente para tal. Um mês depois, o embaixador José Manuel Duarte de Jesus da Comissão de Seleção e Desclassificação informou-me que estava a “reavaliar a possibilidade de desclassificar o documento em questão”. Finalmente, em fevereiro de 2011, passados quase 16 anos desde o meu primeiro pedido, recebi um telefonema do Arquivo Histórico-Diplomático informando-me que podia consultar o relatório de 1975. Para meu espanto, o relatório de Pereira de Castro contém poucas informações relevantes que não tinha encontrado antes em outras fontes. 

 Nas suas conclusões, Pereira de Castro defende que “… já tem utilidade e faz sentido que o Estado português assuma a responsabilidade moral pelo que de ilícito e cruel se passou à sombra da bandeira portuguesa na ilha de São Tomé nos princípios de 1953, preste às vítimas um tributo de respeito e procura na medida do possível dar-lhes uma reparação, quanto mais não seja simbólica”. Todavia, apenas 43 anos mais tarde, em 2018, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi o primeiro governante português a assumir a responsabilidade de Portugal pelo massacre de Batepá quando visitou o memorial em Fernão Dias. Ali ele disse: “Nem o facto de ter sido noutros tempos, com outras visões, nos isenta de reconhecermos todo o peso intolerável e condenável de sacrifício de pessoas e comunidades.” Sem dúvida, os vários trabalhos de autores portugueses e são-tomenses sobre a história do massacre que têm aparecido desde 1996, entre os quais livros de não-ficção e romances históricos, assim como documentários de televisão, contribuíram para quebrar o silenciamento oficial em torno dos acontecimentos trágicos de 1953 em São Tomé. »







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