quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

O artigo 180 do Código Penal dá para perseguir toda a gente.Vejam este caso:

Há uns anos apareceu-me no escritório uma cidadã inglesa que vivia um pesadelo no nosso país. Tinha tido um conflito de propriedades com uma vizinha em que chegara a um acordo com a mesma, mas o advogado daquela prosseguira com o processo em tribunal, de uma forma que a cidadã em causa considerava só se justificar pelo desejo de “dolosamente poder continuar a facturar”.Decidiu-se, assim, por apresentar uma queixa contra o referido advogado,dirigida ao “ilustre bastonário Ordem dosAdvogados”, solicitando que se dignasse “actuar sobre esta queixa de uma forma decidida e exemplar”. Confiava a cidadã britânica que a sua queixa serviria para“restaurar a confiança nos verdadeiros profi ssionais que honrosamente desempenham a sua profissão e demonstrar inequivocamente que a regulação se aplica atodos os profissionais”. Enganara-se...Segundo me contou, ia ser julgada pela prática do crime de difamação contra o advogado em causa, já que apresentara a queixa em Outubro de 2004 e cerca de seis meses depois o advogado, na posse de uma certidão da queixa que lhe fora fornecida pela Ordem dos Advogados, apresentara uma queixa-crime contra si. Nunca tinha sido ouvida no processo disciplinar e só em finais de 2007 viera a saber que a sua queixa fora arquivada em meados de 2006! Isto é, o advogado tinha uma certidão da sua queixa e iniciara um processo contra si em virtude de uma queixa que ainda não tinha sido sequer apreciada pela Ordem dos Advogados, organismo que ela julgava ser um regulador da profissão, mas que se revelara, afinal, ser uma associação cúmplice do advogado em causa. Para aquela cidadã era incompreensível que a sua queixa não estivesse protegida pelo seu direito de apresentar queixas ao órgão competente para apreciar a actuação de um profissional do direito e fosse utilizada para a criminalizar! Deixo de lado a má vontade e as dificuldades com que se deparava nos seus contactos no tribunal de província onde o advogado em causa era, merecidamente ou não, um eminência, enquanto ela mais não era do que uma estrangeira complicativa e que era preciso punir. Dar-lhe uma lição, como muita gente gosta de dizer...Poupo também aos leitores as peripécias deste processo, que passei a acompanhar como advogado, porque não são muito relevantes, bastando dizer, para satisfazer a natural curiosidade, que o processo prescreveu antes de a simpática cidadã ter de responder em tribunal.  Mas o que era relevante nesta história era a forma como a Ordem dos Advogados tratara do assunto, desprezando o cidadão e dando o braço ao advogado. Para a cidadã inglesa, o que se passara no nosso país era impensável na sua terra, já que as queixas estavam protegidas, não sendo possível a sua criminalização e, muito menos, quando ainda nada fora decidido sobre a mesma. Lembrei-me desta cidadã inglesa ao ler o artigo do professor e médico José Ponte, publicado aqui no PÚBLICO no passado domingo, sob o título “Eleições na Ordem dos Médicos— que futuro?”; aí, este cidadão“exilado” em Londres, entre outras opiniões e sugestões, defende que as áreas das “inscrições” dos médicos, da manutenção de padrões profissionais (incluindo os colégios) e os poderes disciplinares deveriam ficar sob a alçada de um novo organismo, independente da OM, talvez à imagem do General Medical Council do Reino Unido, com participação de médicos eleitos pela profissão, mas também com elementos leigos, talvez eleitos entre representantes das muitas associações que zelam pelos interesses de doentes dos diferentes foros da patologia (diabéticos, parkinsónicos,etc.). E justificava esta proposta:Esperar que a mesma instituição que defende os interesses dos médicos ao mesmo tempo defenda os interesses dos doentes leva a flagrantes conflitos de interesse, sobretudo quando ocorre um comportamento repreensível de um médico. Se o Conselho Superior de Magistratura e o Conselho Superior do Ministério Público têm membros que não são juízes nem magistrados judiciais, porque é que nos órgãos disciplinares e de regulação da profissão da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Advogados não se encontram também cidadãos independentes? Ficavam seguramente a ganhar, não só a medicina e a advocacia, como todos os cidadãos em geral. (público)

Sem comentários:

Enviar um comentário