quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Para a história do anticomunismo em Portugal

 BRAGA

Há 45 anos a sede do PCP era atacada porque o Arcebispo de Braga baixou as calças
É um dos episódios mais importantes do Verão Quente de 1975: o assalto à sede do PCP em Braga. Era domingo, 10 de agosto. A manifestação de apoio ao episcopado, à qual acorreram milhares de católicos de todo o Minho, após discurso inflamado do Arcebispo Francisco Maria da Silva, desembocou na Praça do Conde de Agrolongo (Campo da Vinha) com a sede comunista a ser incendiada.Na origem da manifestação está a humilhação que D. Francisco Maria da Silva sofreu quando, em 11 de junho de 1975, estava de partida para Manaus (Brasil) em viagem pastoral.

Com base numa denúncia anónima ao COPCON de que o prelado ia sair do país levando uma quantia ilegal de dinheiro, foi levado para uma sala e revistado dos pés à cabeça.

“Foi preciso o arcebispo primaz de Braga e das Espanhas baixar as calças para que a reconquista cristã de Portugal ao ‘comunismo’ saltasse das folhas paroquiais, da ação psicológica e dos púlpitos das igrejas para montar o cavalo da contrarrevolução”, analisa o jornalista Miguel Carvalho no seu livro “Quando Portugal Ardeu” (2017, Oficina do Livro).

O autor narra, com detalhe, o embaraço sofrido pelo Arcebispo: Quando chegou à sala de embarque do aeroporto da Portela, em Lisboa, e após longa espera, foi “convidado”, via altifalante, a deslocar-se à alfândega. “Senhor arcebispo, é acusado de ser portador de divisas”, anunciaram-lhe. Pediram passaporte e bilhete. Incrédulo, forçando um sorriso, o prelado obedece. É conduzido ao subsolo, onde é recebido por dois agentes. “Tire o casaco”, ordenam, enquanto mexem e remexem a bagagem. “Tire os sapatos.” “Não querem que tire também as meias?”, pergunta D. Francisco, sentindo a revolta em crescendo. “As calças!”, exclamam. Ouvira ele bem? Ouvira. O prelado ergue-se. Faz o gesto de quem obedece, cerra os olhos. Levanta o pensamento a Deus, deixa inspecionar. Em fundo, ouve-se: “Basta!” Pede-se desculpa pelo incómodo. O arcebispo indigna-se, protesta. Delicada, “mas duramente”. Sai como havia entrado, de fivela apertada. Com quase meio dia de atraso, atravessa, enfim, o Atlântico, a matutar no vexame e nos excessos da vigilância revolucionária.

Plano Maria da Fonte

O enxovalho foi atribuído às forças de esquerda, e usado para criticar os desvarios do PREC e a sanha revolucionária contra a Igreja Católica. Era mesmo essa a intenção de quem fez a denúncia anónima, a qual, na verdade, não partiu das forças revolucionárias, mas de quem queria precisamente impedir a revolução.

Quem urdiu o plano foi Jorge Jardim, um dos mentores do Movimento Maria da Fonte, que consistia em usar a força da Igreja para travar o comunismo.

O Movimento Maria da Fonte, com ligações ao MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal) e ao ELP (Exército de Libertação Português), de extrema-direita, teve como mentores, além de Jorge Jardim, Paradela de Abreu e Sanches Osório.

Este último confessaria ao jornalista João Paulo Guerra: “A denúncia falsa foi nossa para lhe provocar a reação que ele veio a ter, que foi convocar a manifestação de Braga [a 10 de agosto de 1975]. Depois explicámos-lhe o assunto e pedimos-lhe desculpa. E o arcebispo de Braga absolveu-nos”.
O que realmente importava era ter a Igreja contra o comunismo, aproveitar a força que esta tinha no Norte para impedir os avanços revolucionários. Braga, extremamente conservadora, rural, era essencial nessa estratégia. Afinal, não era por acaso que foi dali que partiu Gomes da Costa para implementar a ditadura em 28 de maio de 1926.

“Cada sino um ‘rádio transmissor’”

“A primeira República morreu porque atacou violentamente a Igreja Católica. De um trabalho de sabotagem constante, que durou dezasseis anos, e do aproveitamento implacável das crises nacionais que se sucediam umas às outras, a primeira República morre às mãos de Braga. Pretendia-se a ditadura. Não foi por acaso que, em 1975, tudo começa também em Braga. Só que, desta vez, pretendia-se evitar a ditadura comunista”, escreve Paradela de Abreu em “Do 25 de Abril ao 25 de Novembro” (1983, Intervenção).

“Com efeito, para fazer frente às estruturas do Partido Comunista só havia, em Portugal, uma única instituição: a Igreja Católica”, defende aquele que foi o editor do livro “Portugal e o Futuro” de António Spínola.

Profundamente enraizada no Norte, a Igreja é um aliado poderosíssimo na luta contra o comunismo. “Cada diocese tem muitas paróquias, logo muitas igrejas, logo muitos sinos. Milhares de sinos ao norte o rio Douro. Centenas de milhares de católicos. Ao pensar nesta estrutura em termos de eventual guerra interna, constatei que o país já estava ‘quadriculado’ militarmente. Cada paróquia seria uma ‘base’. Cada igreja de granito ancestral, um reduto. Cada sino um ‘rádio transmissor’. Cada quinta perdida nas serras, um ‘apoio logístico’”, refere Paradela de Abreu, cujo percurso político passou por tentar arranjar uma sede para a LUAR, “três dias no PS”, “15 dias no PPD” e, por fim, na radicalização anticomunista.

“Seria apenas necessário dinamizar toda esta estrutura e organizar grupos de guerrilheiros”, conclui Paradela de Abreu, puxando a si e aos companheiros Jorge Jardim e Sanches Osório os ‘louros’ do feroz combate que no Verão Quente conduziu à destruição de sedes de partidos de esquerda no Norte e Centro.

“Foram de facto os ‘anjos de D. Francisco’ que em três meses (Julho, Agosto e Setembro de 1975) organizaram em todo o Norte uma imensa estrutura destinada basicamente à profilaxia da guerra”, realça, esclarecendo que o objetivo da organização era, através de pequenos grupos locais, ao nível das paróquias, “poder desencadear à distância, com um simples panfleto, uma movimentação popular”.

“Foram assim os chamados ‘assaltos’ às sedes comunistas, feitos pelo povo sem armas, mas sobre quem os comunistas disparavam tiros de caçadeira e G3”, acrescenta na referida obra o ‘anjo de D. Francisco’ que haveria de transportar o caixão do Arcebispo.

E nessa luta cabiam CDS, PPM, PPD e até mesmo PS. “Talvez seja novidade saber-se que um dos principais organizadores da manifestação de 10 de Agosto, em Braga, de apoio a D. Francisco, foi exatamente um membro da Comissão Distrital do Partido Socialista, Romeu Maia”, revela Paradela de Abreu.

“Deus está com o povo!”

Em “Quando Portugal Ardeu”, livro que se debruça sobre a rede bombista de extrema-direita que operou em Portugal depois do 25 de Abril e que matou, entre outros, o Padre Max, Miguel Carvalho narra assim o ambiente quente daquele domingo de há 45 anos: Eram as cinco em ponto da tarde de 10 de agosto de 1975. Debaixo de um sol escaldante, camponeses e trabalhadores rurais pobres, em fatos de domingo, engrossam o caudal de milhares de manifestantes. Pelas principais ruas e avenidas de Braga, caminham ao lado de mulheres e crianças levadas por tratores. Cristãos de variadas paisagens nortenhas compõem a mole humana. A convocatória para a ação de solidariedade com o Episcopado tivera a bênção do arcebispo primaz de Braga, D. Francisco Maria da Silva, na sequência de idênticas concentrações religiosas nas dioceses de Aveiro, Viseu, Bragança e Coimbra. Após décadas de ditadura, o “povo de Deus” saía à rua e protestava. Em termos formais, estava em causa a luta pela restituição da Rádio Renascença à propriedade do Patriarcado de Lisboa e da Igreja. Não se sabe qual foi o momento da tarde em que as palavras do arcebispo se tornaram acendalhas da voz coletiva. Mas o discurso levava lume. “Deus está com o povo!”, ouvira-se até ali. “Abaixo o comunismo!”, escutou-se depois. D. Francisco pregara contra “a progressiva infiltração nos programas escolares das ideologias materialistas e ateias”. Rejeitara “o desaforo da imoralidade pública”, a “corrupção dos costumes” e a “corrosão dos valores morais”. Naquele momento histórico, prometera ser claro, para não trair o povo. “O problema português é este e só este: dum lado, uma minoria, contra a vontade do Povo, está a impor à Nação o comunismo, onde não tem lugar a Pátria independente nem a religião”, afirmou o arcebispo. O comunismo, esse “inimigo figadal”, cujos chefes, “mesmo quando declaram querer respeitar a religião”, se mostram “hostis a Deus, à verdadeira Religião e à Igreja de Cristo”, era, pois, o alvo a abater. D. Francisco incitou então o povo cristão a despertar do sono nas aldeias e nas cidades e a contestar a autoridade civil revolucionária, “certo de que há valores maiores do que a própria vida: Deus, a sua Igreja, a Pátria”.

O Arcebispo “fez um discurso muito violento na Sé de Braga”, recordava há cinco anos António Vale, histórico dirigente do PSD em Barcelos, numa reportagem do Jornal de Barcelos, recordando que a manifestação juntara milhares de pessoas “de todas as aldeias do Minho”.

Recorremos novamente à obra de Miguel Carvalho para recordar o que aconteceu a seguir ao discurso de D. Francisco Maria da Silva: Os setores da Igreja condimentaram o estrugido, com o cónego Melo atrás da cortina. Nas paróquias, durante a semana, os padres do concelho substituem homilias por comícios e incensam o santo domingo para “acabar com o comunismo” e os “lacaios de Moscovo”. O protesto cívico termina ordeiro, sem turbulências. Mas acabaria em fogo e cinzas. No dispersar da concentração, uns poucos milhares dirigem-se à Praça Conde de Agrolongo, onde fica a sede do PCP. A pólvora do arcebispo atiça os mais revoltados e agiganta uma troca de palavras entre manifestantes na rua e militantes comunistas debruçados sobre a varanda do edifício. Jacques Bekaert, então chefe de redação da revista belga La Relève, vê revoltosos, com capacetes, a atirar pedras contra a sede. Perto dele, um jovem é atingido de forma brusca por um grupo de homens: “É comunista, mata-o!”, gritam, tomados pela raiva. No quartel da GNR, situado nas imediações, guardas encostam a cara às janelas e assistem, sem mexer palha, ao fervilhar do ambiente. Um oficial justifica o alheamento da refrega por aguardar ordens militares e não haver mais de quatro homens disponíveis. Os outros estavam de folga. A PSP abeira-se dos focos da peleja, mas cruza também os braços. Os ataques ao centro de trabalho do PCP continuam. À chuva de pedras sucedem-se mais provocações. Há crianças atiradas para a frente da rebelião. Militantes comunistas socorrem-se do megafone para pedir às pessoas para dispersarem. Caso contrário, avisam, responderão com tiros de caçadeira. Ninguém recua. Bandos avançam para a porta, tentando arrombá-la. Ouvem-se os primeiros disparos sobre a multidão, caem os primeiros feridos, lágrimas doridas. Há armas de fogo entre os mais assanhados, repelem-se os ataques. O cerco aperta-se para os 21 comunistas sitiados. Vários indivíduos trepam à varanda da sede. Rasgam e queimam a bandeira comunista, destroem a placa vermelha da sede, urram como caçadores primitivos. São lançadas garrafas com gasolina. No interior, os membros do PCP tentam proteger-se numa minúscula dependência com acesso para o pequeno jardim das traseiras. As chamas começam a tomar conta do prédio, há labaredas na fachada. Chegam os primeiros soldados do Regimento de Infantaria de Braga, mas insuficientes para pôr a turba em ordem. Durante horas, os bombeiros são impedidos de atuar. Jacques Bekaert vê desaprovação nos rostos de pessoas não afetas ao PCP e até de anticomunistas. Mas há quem concorde e se delicie com o espetáculo. Para o jornalista belga tudo parecera premeditado. “O assalto não foi um movimento espontâneo da multidão”, descreverá mais tarde, condenando “a passividade das forças da ordem”. 73 Feridos são transportados ao hospital, passa da meia-noite quando chegam as tropas do COPCON, mas, apesar do gás lacrimogéneo e das balas de borracha, os ânimos só serenam às duas da manhã. A fúria, essa, transferir-se-á, nas horas seguintes, para as sedes do MDP/CDE, da Intersindical e do INATEL. E nem as barracas do Mercado do Povo escapam ao vandalismo.

“Mandaram um grupo de crianças com gasolina”

Jovem, mas já enfarinhado na política, António Vale “fazia parte da multidão, era um dos curiosos” e, na referida reportagem, recordava o assalto à sede do PCP de Braga como o episódio que mais o marcou no Verão Quente.

“As pessoas queriam ir buscar a bandeira do PCP para a deitar na fogueira, mas não conseguiram porque ao subir eram constantemente feridos. E um senhor ao meu lado subiu a parede, trouxe a bandeira, deitou-a no fogo e voltou para o mesmo sítio ao pé de mim. Perguntei-lhe porque se tinha proposta fazer uma coisa daquelas. Ele disse: ‘Como toda a gente ia e não conseguia, eu disse que ia e consegui’”, recordava o social-democrata. “Esse momento ficou na minha memória”, reforça.

Quem estava do outro lado, também não esquece. É o caso de Arlindo Fagundes que, em entrevista à RUM, recorda que a sede “era uma casa solarenga” no primeiro andar e com um “quintal grande nas traseiras”, sendo que no rés-do-chão funcionava a bilheteira de uma empresa de camionagem.
“Quando o edifício ficou sem as portadas debaixo da entrada principal instalámos uma barricada e não deixámos entrar ninguém. Até que chegou certa altura, em que mandaram um grupo de crianças com gasolina. Avançaram com essa frente e claro que não se podia disparar contra os miúdos. (…) Depois a casa começou a arder. (…) Havia muitos cartazes que foram o combustível do fogo”, recorda Arlindo Fagundes àquela rádio. “É um acontecimento inesquecível”.


4 comentários:

  1. A melhor forma de lhe passar essa mania do comunismo, é ir viver uns tempos num país comunista. Vá lá!

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    1. o Sr. "Anónimo" pensa que o capitalismo é o fim da história. I fim da linha para toda a humanidade. Da utopia virão novas sociedades com maior justiça social.

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    2. Ia ficar negro depois de pintar a Praça Vermelha

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  2. Boas fogueiras eles fizeram para abrandar os comunas que queriam instituir uma ditadura em Portugal.

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