domingo, 3 de janeiro de 2021

MANUEL AGOSTINHO DOS SANTOS/Memorias da guerra Colonial : Guiné Bissau

MANUEL AGOSTINHO DOS SANTOS narra a sua história:


Embarquei no dia 23 de setembro de 1970 em direção a Bissau. Fui no ‘Uíge’ e a viagem foi terrível porque enjoei o caminho todo. Cheguei lá no dia 28. Como o barco era muito grande, não atracava no cais de Bissau. Passámos para lanchas LDM da Marinha e fizemos mais sete ou oito horas para Bolama, onde estivemos 30 dias a tirar o curso de Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO). O primeiro batalhão a tirar o IAO na Guiné foi o meu. Um mês depois embarcámos outra vez nas LDM e fomos para Nova Sintra. Desta vez, a viagem foi mais curta, quatro ou cinco horas. Estive em Nova Sintra quase dois anos. 

 Eu era atirador dilagrama - lançava granadas a uma distância de cerca de 800 metros, através de um dispositivo adaptado à G3, com recurso a uma munição especial no carregador - e transportava 40 granadas às costas. Era perigoso. Se fosse atingido por um ‘rocket’ as minhas 40 granadas desfaziam-me todo. Acho que naquela altura nem percebia muito bem o perigo que corria. Ganhava mais 100 escudos do que os outros, o incentivo criado para terem atiradores desta especialidade. Como só havia um atirador dilagrama em cada pelotão - tal como só havia um atirador de morteiro ou um lança-granadas-foguete - eu tinha de ir sempre para o mato. Não sei quantas pessoas atingi. Eu tinha era de me defender.

  O meu pelotão ia duas vezes por ano fazer segurança ao aquartelamento de Tite, onde estava o comando do batalhão. Ficava a 30 ou 40 quilómetros do nosso acampamento. Quando estávamos em Nova Sintra saíamos duas ou três vezes por semana para fazer emboscadas. O nosso acampamento também foi atacado muitas vezes, sempre de noite.

 Emboscadas fatais

  Passaram-se coisas que nunca mais vou esquecer. No dia 29 de junho de 1971, eu fazia 22 anos, andávamos no mato e caímos numa emboscada. Um camarada, que era de Louriçal, Pombal, tombou ali, mesmo ao meu lado. Já o fui visitar à campa. 

 No mês anterior caímos numa emboscada e eles lançaram abelhas contra nós. Um colega de Marinha das Ondas, Figueira da Foz, foi picado e a cara inchou tanto, tanto, que até a pele lhe tapou os olhos. Teve de ser evacuado de helicóptero para Bissau. E outro camarada, de Sever do Vouga, tinha acabado de usar a arma e não a tinha em segurança. Ao sacudir as abelhas, mandou uma rajada pela perna abaixo. Por acaso só apanhou pele, mas também teve de ser levado para o hospital. Nesse dia fizemos um morto ao inimigo, mas era algo que eu não gostava, era um ser humano e alguém que também estava ali obrigado, como eu. 

 Quando ficávamos no acampamento, o nosso alferes, para nos manter entretidos e para não pensarmos na família, obrigava-nos a pegar na enxada e mandava limpar tudo. Outras vezes íamos à pesca, mandávamos uma granada para o rio e vinha uma saca de peixe para comermos. Uma vez, numa pescaria destas, morreu um furriel. Ele levava uma das granadas que eu usava na G3, ia a andar pela água, tirou a cavilha à granada, escorregou, ficou sem força na mão e a granada rebentou. Era tudo muito chocante. O mais importante foi a grande camaradagem. Confiávamos muito uns nos outros, partilhávamos as latas de chouriças ou queijos que a família enviava. Fiz amigos para a vida. Hoje, quando algum morre, é como se fosse um irmão. 

 Eu era carteiro antes de ir para a tropa - fui para os correios aos 16 anos. Quando fui mobilizado, decidi levar uma farda do trabalho para surpreender os colegas. O que aconteceu num Natal, quando estavam todos muito caladinhos. Vesti a farda, meti cartas antigas numa das malas onde transportava as granadas e fui batendo nas casernas a anunciar “Correio da Metrópole”. A partir daí, passaram a chamar-me ‘carteiro’.








1 comentário:

  1. Ainda bem que o Pravda publica as notícias na íntegra. Assim rebentamos com as contas do Correio da Manhã e aquilo fecha. Depois ficamos com a verdadeira liberdade de informação. És um génio, Coelho, um génio.

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