quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Recordando o massacre de Wiriamu em 16 de Dezembro de 1972 em Moçambique

 

 A Operação Marosca – nome de código da incursão militar de represália ou vingança pelas emboscadas lançadas pelos independentistas, semanas antes, contra grupos de soldados portugueses, dando assim a entender que a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) conseguira infiltrar-se entre a população civil nativa, com o objectivo, entre outros, de boicotar a construção da barragem de Cabora Bassa (segundo a PIDE, a Frelimo teria conseguido instalar na região uma base com cerca de 300 guerrilheiros) – envolveu vários grupos dos Comandos, elementos da PIDE/DGS, o Batalhão de Caçadores 17 e a Força Aérea Portuguesa. 
 Por volta do meio-dia daquele sábado, 16 de Dezembro de 1972, quatro caças-bombardeiros Fiat G-91 largaram várias bombas na região onde ficavam as povoações de Wiriamu, Juwau e Chawola, a cerca de 30 km da cidade de Tete, próxima do rio Zambeze e a 120 quilómetros da barragem de Cabora Bassa. Enquanto isso, cinco helicópteros desembarcavam quatro grupos da 6ª Companhia de Comandos, Grupos Especiais de Pára-quedistas, mercenários (alguns dos quais, provavelmente, rodesianos) e agentes da PIDE/DGS, os quais
cercaram as aldeias e desataram a metralhar os aldeões, incluindo mulheres e crianças, que fugiam em direcção ao mato, para se protegerem dos bombardeamentos. Em todas elas o procedimento foi idêntico: primeiro, os militares juntaram todas as pessoas no centro das aldeias, incluindo as que se tinham escondido dentro das palhotas. Depois, os agentes da PIDE/DGS, protegidos pelos comandos, realizaram os interrogatórios, procurando identificar elementos da Frelimo ou quem, entre o grupo de camponeses (constituído maioritariamente por mulheres, crianças e idosos, todos eles desarmados), os apoiasse. Apesar de não terem conseguido obter absolutamente nada que confirmasse as suas suspeitas em nenhuma daquelas povoações, os “PIDES” insistiram dizendo que estavam todos a proteger os “turras” (guerrilheiros dos movimentos independentistas) e que, inclusivamente, lhes forneceriam comida. Como os camponeses continuassem a negar qualquer relação com os “turras”, ouviu-se finalmente, entre os militares portugueses, o grito “Matem-nos a todos!”, seguido de “Não deixem ninguém vivo. Estas são as nossas ordens”. 
 No dia anterior, as ordens das chefias tinham sido de uma clareza meridiana: “Derrubar tudo o que estiver em pé” e “liquidar tudo o que se mova”. Acto contínuo, atiçaram fogo às palhotas, aos redis dos animais e a tudo quanto se lhes deparasse. Violaram mulheres, mataram à coronhada, fizeram tiro ao alvo, fuzilaram, assassinaram recém-nascidos segurando-os pelas pernas, de cabeça para baixo, e, como coelhos, arremessaram com a cabeça deles contra o chão, contra um muro ou contra os troncos das árvores, jogaram futebol com cabeças decapitadas, um soldado colocou a sua arma na boca de uma criança, como se fosse uma chupeta, rebentando-lhe a boca e a nuca à queima- -roupa. Como se pode ler no relatório dos padres da missão de S. Pedro sobre os massacres de Tete, elaborado nos dias 18 e 19 de Dezembro de 1972:
ANTÓNIO XIMONE E O SEU IRMÃO DOMINGO CONSEGUIRAM FUGIR DE UMA PIRA FUNERÁRIA COM CORPOS A ARDER


«Chinteya, uma rapariga de 4 anos, assustada, chora. Um soldado, simulando compaixão, aproxima-se e, acariciando a criança, pergunta-lhe se está com fome. Sem, porém, esperar a resposta, continua: “Toma o biberão.” E metendo à força o cano duma arma de fogo pela boca da criança, diz: “Chupa!” E dispara. A criança cai com um rombo na nuca. Não foi Chinteya a única vítima tratada assim; várias outras tiveram a mesma sorte. Num dos relatórios lia-se: “A uma mulher, chamada Zostina, um soldado perguntou qual era o sexo da criança
que trazia nas entranhas.
Como respondesse que não sabia, abriram-lhe o ventre com um machete e, extraído violentamente o feto, mostraram-lho para que o ‘soubesse’. Logo a seguir foram ambos queimados.” Noutra passagem do mesmo documento denuncia-se o soldado que, vendo uma criança sentada no chão, chorando a morte da mãe, acabada de ser fuzilada, lhe desferiu um forte pontapé na cabeça, aos gritos de “Cala-te, cão!”. O choro da criança deixou imediatamente de se ouvir: estava morta, prostrada no chão, com o cérebro esfacelado. No meio da confusão e da fumarada, alguns indivíduos, que estavam apenas feridos, conseguiram escapar, como António Ximone, um rapaz de 15 anos, e o seu irmão Domingo, de 4 anos, que conseguiram fugir de uma dessas piras funerárias com corpos a arder (António foi um dos sobreviventes que, meses mais tarde, relatou ao London Times os factos deste hediondo crime de guerra)».

 Exaustos da carnificina, os soldados acamparam nas proximidades das povoações que tinham acabado de varrer do mapa de Moçambique, ali ficando durante três dias, para dar caça aos sobreviventes que tivessem fugido e, os eliminar. Alguns desses sobreviventes, porém, protegeram-se na missão de São Pedro, dirigida por dois padres espanhóis da Ordem de Burgos, que ouviram os primeiros relatos e produziram dois relatórios sobre os massacres (a esses, felizmente, os assassinos não conseguiram deitar a mão). 
 Perante isso, os missionários procederam a averiguações, ouviram os sobreviventes (alguns dos quais abrigados no hospital de Tete) e recolheram os testemunhos daqueles que tinham presenciado os acontecimentos à distância. Com base nessas informações, elaboraram dois relatórios, um dos quais fizeram sair de Moçambique: a 20 de Fevereiro de 1973, aproveitando o facto de as autoridades portuguesas terem expulsado de Moçambique dois padres de Burgos – Júlio Moure e Miguel Buendía, por terem denunciado as atrocidades de vários militares –, foi possível entregar a este último, pouco antes de entrar no avião, uma cópia do segundo relatório (elaborado por Domingo Kansande, Domingo Ferrão e José Sangalo), referente aos massacres de Wiriamu e Juwau, que o transportou para Madrid e o entregou à Ordem de Burgos.

 A acção de Adrian Hastings

 Adrian Hastings foi o padre inglês católico, pertencente à congregação dos Padres Brancos (além de historiador e estudioso do cristianismo, membro da Congregação dos Missionários de África com uma longa experiência de trabalho em África, ali tendo permanecido durante mais de 12 anos), que chamou a atenção da comunidade internacional para o Massacre de Wiriamu. 
 Em Abril de 1973, o padre Hastings foi à Rodésia para participar num ciclo de conferências sobre temas religiosos. Nessa ocasião, ouviu da boca de alguns missionários espanhóis do Instituto de São Francisco Xavier de Burgos (conhecidos apenas como Padres de Burgos) o relato das selvajarias cometidas por um grupo de militares portugueses no distrito de Tete. Mostrando-se interessado em saber mais, sugeriram-lhe que contactasse a sede da ordem em Espanha. Como daí a meses, na semana de 18 de Junho, iria realizar uma palestra em Salamanca, sobre o novo pensamento da Igreja para as questões ecuménicas, Hastings aproveitou para se deslocar a Madrid. Já em Espanha, teve acesso a um desses relatórios sobre os massacres de civis perpetrados pelo exército português na região central de Moçambique (Tete). 
 Ajudado por tradutores espanhóis, consultou a documentação que o murciano Miguel Buendía conseguira introduzir em Espanha, juntamente com um pequeno filme que mostrava restos de cubatas incineradas. Depois de analisar cuidadosamente os relatórios que documentavam, de forma fidedigna, os massacres em três aldeias moçambicanas do distrito de Tete (com destaque para Wiriamu, pois fora inteiramente arrasada e quase todos os habitantes assassinados, muitos deles de forma sádica e cruel), e apercebendo-se da dimensão e da gravidade do que acabara de ter conhecimento, decidiu que era preciso denunciar aquela selvajaria, cometida com requintes de sadismo, pelo exército português, fazendo chegar à imprensa internacional aqueles papéis.
O PADRE ADRIAN HASTINGS TELEFONOU AO THE LONDON TIMES E CONTOU A HISTÓRIA DOS MASSACRES, DE QUE POSSUÍA PROVAS

Repercussão internacional 

Ao fim da tarde de 6 de Julho de 1973, uma sexta-feira, Adrian Hastings telefonava ao jornal The London Times e contava a história dos massacres, de que possuía provas, pois trouxera de Madrid uma cópia do documento dos padres de Burgos, passado em stencil. No dia seguinte, sábado, enviou tudo para o jornal. Na segunda-feira, já com os documentos de Hastings nas mãos, o responsável pelas decisões executivas no The Times, Louis Heren, telefonou-lhe e disse: “Temos de publicar o artigo amanhã. Os tipógrafos estão a ameaçar com greve e não sabemos quando estaremos em condições de voltar a imprimir.” Se tal acontecesse, a divulgação da história ficaria adiada e perderia impacto, pois Inglaterra preparava-se, em breve, para receber Marcello Caetano, o primeiro-ministro português, por ocasião das comemorações dos 600 anos da Aliança Luso-Britânica. 
 A 10 de Julho de 1973, o jornal The London Times, dando honras de primeira página à história – título com grande destaque: “Massacre português denunciado por padres” –, publicou o artigo assinado por Hastings, onde se denunciava o massacre de quase toda a população de Wiriamu (no total, segundo as informações de Hastings, teriam sido chacinados, pelas tropas portuguesas, entre 300 e 500 negros das populações civis do distrito de Tete), bem como um dos dois relatórios elaborados pelos padres que trabalhavam na missão de São Pedro. Hastings referia a existência de testemunhas do massacre, nomeadamente um missionário português da ordem italiana dos padres Combonianos, e mais dois outros missionários que garantiam que os corpos das vítimas tinham sido enterrados no mato, porém, tinham sido presos pelas autoridades portuguesas e estavam no cárcere de Lourenço Marques, sob a acusação de “atentado moral ao exército português”. Face à gravidade das acusações, mais a mais divulgadas num jornal com o prestígio e a influência do The Times, e estando programada, para daí a dias, a visita oficial (a convite do governo britânico) de Marcello Caetano a Londres (de 16 a 18 de Julho), as imprensas inglesa e internacional desenvolveram as suas próprias investigações e escalpelizaram a história dos massacres, enquadrando-os na guerra levada a cabo em Moçambique, e promoveram um debate alargado sobre os apoios estrangeiros de que Portugal beneficiava para a prossecução das suas campanhas militares em África, pondo em causa a reputação do regime português e a própria presença portuguesa no continente africano. O “Insight Team” do Sunday Times, por exemplo, realizou uma extensa cobertura do contexto do massacre e qualificou como “indesejada” a visita de Marcelo: “O debate sobre a visita de Caetano fora muito útil pois apresentara à opinião pública inglesa o carácter da guerra que Portugal sustenta em África.” 
 O mesmo aconteceu no Observer, jornal que também veio corroborar os relatórios apresentados por Hastings; o The Guardian publicou na íntegra o relatório secreto, elaborado por militares portugueses para consumo interno, que confirmava os massacres de Wiriamu, defendeu a expulsão de Portugal da NATO (juntamente com a Grécia do regime dos coronéis), e publicou um editorial intitulado “Portugal: Amigo ou Inimigo?”, onde dizia que “é errado conferirem-se honras ao Presidente do Conselho Português. 
 Ao povo português, sim: 600 anos de cordialidade, menos inconsistente da que gozámos por exemplo com os franceses ou com os alemães, merecem mais do que uma observação passageira. Porém, o Dr. Caetano não pode ser apresentado como representante do povo português e chefia um Governo que em muitos aspectos é mais hostil do que afável para com os interesses britânicos”. Para se ter uma ideia da repercussão internacional deste caso, só o The Times publicou, ao longo de seis meses, entre Julho e Dezembro de 1973, mais de 200 artigos atacando a posição portuguesa, repudiando a campanha de contra-informação desencadeada pelas autoridades lusas e mantendo-se firme na defesa das fontes em que se tinha baseado, que consideravam consistentes e fidedignas, e dos procedimentos de verificação dos factos.
  Em contrapartida, o jornal conservador Daily Telegraph defendeu que os inquéritos efectuados não tinham provado nada e lançou “fortes dúvidas sobre a história”.


Reacção portuguesa 

 Em Lisboa, imediatamente a seguir ao artigo do The Times, o governo português publicou uma nota oficiosa indignada em que desmentia e repudiava a notícia, considerando-a uma “campanha insidiosa de difamação”, uma conspiração internacional inventada pelos inimigos de Portugal, que segundo Marcelo Caetano visava “abalar o moral das tropas” e “pôr em causa a defesa do Ultramar português”.  
 O regime português desmentiu pois os massacres, contestou a veracidade dos factos e dos testemunhos, classificou-os de tendenciosos, e alegou mesmo a inexistência de uma aldeia com o nome de Wiriamu: tudo não passava de uma “ficção” congeminada por meia dúzia de padres progressistas apostados em atacar as posições portuguesas. 
 Em desespero, as autoridades portuguesas lançaram ainda uma campanha para denegrir o Padre Hastings, considerado um “inimigo declarado de Portugal”, e a idoneidade dos jornais que tinham divulgado a notícia dos massacres. 
 O diário Época, por exemplo, referiu-se a Hastings como um “paranóico com a mania do escândalo”, um “espantalho louco e um mentiroso agitador”, e segundo a revista Observador estava em curso uma “campanha desenvolvida pela imprensa inglesa, francesa e italiana”, o convento dos padres de Burgos era uma “célula socialista da igreja espanhola”, Hastings um “militante progressista”. 
 Na Câmara dos Comuns, Harold Wilson, o líder do Partido Trabalhista, e o ministro dos Negócios Estrangeiros Sir Alec Douglas-Home, discutiram acaloradamente a oportunidade da visita de Marcello Caetano e o mal-estar que estava a causar em Inglaterra. Enquanto o governo de Londres defendia o regime português (tal como, de resto, o governo norte- -americano), os trabalhistas e os liberais, em minoria no Parlamento britânico, exigiram que a visita fosse cancelada, pediram a realização de um debate plenário sobre as alegações do massacre e Harold Wilson declarou mesmo que, caso ganhasse as próximas eleições, uma das suas primeiras medidas seria propor a expulsão de Portugal da NATO. 
 Um dos momentos mais importantes da campanha anticolonial do Partido Trabalhista deu-se a 15 de Julho (um domingo, na véspera da chegada a Londres do primeiro-ministro do Estado Novo), quando se realizou, na capital inglesa, uma manifestação contra a visita oficial de Marcelo Caetano e contra o regime ditatorial português, que começou em Belgrave Square (onde ficava a embaixada de Portugal) e terminou em Hyde Park. Além de Lord Gifford, o inspirador da campanha “End the Alliance”, participaram na manifestação – provavelmente a maior manifestação antiportuguesa da moderna história da Grã-Bretanha” —, vários exilados e activistas portugueses residentes em cidades como Paris, Bruxelas, Amesterdão ou Estocolmo. 
 Apesar da chuva, o protesto reuniu mais de cinco mil pessoas frente à embaixada de Portugal: entre Belgrave Square e o Hyde Park, a multidão foi gritando palavras de ordem contra a ditadura portuguesa e empunhando cartazes com insultos- carniceiro, assassino, etc-contra Marcello Caetano. 
 Entre os portugueses que marcaram presença, destacava-se a figura de Mário Soares, o primeiro secretário- -geral do recém-criado (e ilegal) Partido Socialista (em Abril de 1973), que vivendo então exilado em Paris se deslocou a Londres para participar na manifestação.   Soares não só foi oficialmente recebido e acolhido por Harold Wilson, o já referido dirigente dos trabalhistas ingleses — entrevistado na sede do Partido Trabalhista, Soares disse aos jornalistas que, “como português, se sentia envergonhado com a notícia do massacre”, mas atribuiu a responsabilidade pelo mesmo, exclusivamente, ao Governo português, e não aos portugueses –, como se sentou ao lado de Adrian Hastings na conferência de imprensa de 11 de Julho de 1973, em Londres, convocada pelo padre britânico para defender, de viva voz, o relatório dos massacres de Wiriamu. 
 Num ambiente destes, e prevendo a ocorrência de desacatos, a chegada do primeiro-ministro português foi rodeada de um apertado dispositivo policial da Scotland Yard e Marcello Caetano foi abordado por uma multidão de jornalistas. 
 Os jornais britânicos, incluindo alguns tablóides, encheram-se de comentários negativos a respeito de Portugal, que persistia na ilusão de que podia manter o seu império colonial, ofuscando e estragando, assim, todos os actos da visita de Marcello Caetano.
SOARES SENTOU-SE AO LADO DE ADRIAN HASTINGS PARA DEFENDER O RELATÓRIO DOS MASSACRES DE WIRIAMU
O The London Times publicou a notícia do massacre a 10 de julho de 1973

(Revista SÁBADO)

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