A Operação Marosca –
nome de código da incursão militar de represália ou vingança
pelas emboscadas lançadas pelos independentistas, semanas antes, contra grupos de soldados portugueses, dando assim a
entender que a Frelimo (Frente de
Libertação de Moçambique) conseguira infiltrar-se entre a população
civil nativa, com o objectivo, entre
outros, de boicotar a construção da
barragem de Cabora Bassa (segundo
a PIDE, a Frelimo teria conseguido
instalar na região uma base com
cerca de 300 guerrilheiros) – envolveu vários grupos dos Comandos,
elementos da PIDE/DGS, o Batalhão
de Caçadores 17 e a Força Aérea
Portuguesa.
Por volta do meio-dia daquele sábado, 16 de Dezembro de 1972, quatro
caças-bombardeiros Fiat G-91 largaram várias bombas na região onde ficavam as povoações de Wiriamu, Juwau e Chawola, a cerca de 30 km da
cidade de Tete, próxima do rio Zambeze e a 120 quilómetros da barragem de Cabora Bassa. Enquanto isso,
cinco helicópteros desembarcavam
quatro grupos da 6ª Companhia de
Comandos, Grupos Especiais de
Pára-quedistas, mercenários (alguns
dos quais, provavelmente, rodesianos) e agentes da PIDE/DGS, os quais
cercaram as aldeias e desataram a
metralhar os aldeões, incluindo mulheres e crianças, que fugiam em direcção ao mato, para se protegerem
dos bombardeamentos.
Em todas elas o procedimento foi
idêntico: primeiro, os militares juntaram todas as pessoas no centro das
aldeias, incluindo as que se tinham
escondido dentro das palhotas. Depois, os agentes da PIDE/DGS, protegidos pelos comandos, realizaram os
interrogatórios, procurando identificar elementos da Frelimo ou quem,
entre o grupo de camponeses (constituído maioritariamente por mulheres, crianças e idosos, todos eles desarmados), os apoiasse. Apesar de não
terem conseguido obter absolutamente nada que confirmasse as suas
suspeitas em nenhuma daquelas povoações, os “PIDES” insistiram dizendo que estavam todos a proteger os
“turras” (guerrilheiros dos movimentos independentistas) e que, inclusivamente, lhes forneceriam comida.
Como os camponeses continuassem a negar qualquer relação com os
“turras”, ouviu-se finalmente, entre os
militares portugueses, o grito “Matem-nos a todos!”, seguido de “Não
deixem ninguém vivo. Estas são as
nossas ordens”.
No dia anterior, as ordens das chefias tinham sido de uma
clareza meridiana: “Derrubar tudo o
que estiver em pé” e “liquidar tudo o
que se mova”.
Acto contínuo, atiçaram fogo às palhotas, aos redis dos animais e a tudo
quanto se lhes deparasse. Violaram
mulheres, mataram à coronhada, fizeram tiro ao alvo, fuzilaram, assassinaram recém-nascidos segurando-os
pelas pernas, de cabeça para baixo, e,
como coelhos, arremessaram com a
cabeça deles contra o chão, contra
um muro ou contra os troncos das árvores, jogaram futebol com cabeças
decapitadas, um soldado colocou a
sua arma na boca de uma criança,
como se fosse uma chupeta, rebentando-lhe a boca e a nuca à queima-
-roupa. Como se pode ler no relatório
dos padres da missão de S. Pedro sobre os massacres de Tete, elaborado
nos dias 18 e 19 de Dezembro de 1972:
«Chinteya, uma rapariga de 4 anos, assustada, chora. Um soldado, simulando compaixão, aproxima-se e, acariciando a criança, pergunta-lhe se está com fome. Sem, porém, esperar a resposta, continua: “Toma o biberão.” E metendo à força o cano duma arma de fogo pela boca da criança, diz: “Chupa!” E dispara. A criança cai com um rombo na nuca. Não foi Chinteya a única vítima tratada assim; várias outras tiveram a mesma sorte. Num dos relatórios lia-se: “A uma mulher, chamada Zostina, um soldado perguntou qual era o sexo da criança que trazia nas entranhas.
«Chinteya, uma rapariga de 4 anos, assustada, chora. Um soldado, simulando compaixão, aproxima-se e, acariciando a criança, pergunta-lhe se está com fome. Sem, porém, esperar a resposta, continua: “Toma o biberão.” E metendo à força o cano duma arma de fogo pela boca da criança, diz: “Chupa!” E dispara. A criança cai com um rombo na nuca. Não foi Chinteya a única vítima tratada assim; várias outras tiveram a mesma sorte. Num dos relatórios lia-se: “A uma mulher, chamada Zostina, um soldado perguntou qual era o sexo da criança que trazia nas entranhas.
Como respondesse que não sabia,
abriram-lhe o ventre com um machete e, extraído violentamente o feto,
mostraram-lho para que o ‘soubesse’.
Logo a seguir foram ambos queimados.” Noutra passagem do mesmo
documento denuncia-se o soldado
que, vendo uma criança sentada no
chão, chorando a morte da mãe, acabada de ser fuzilada, lhe desferiu um
forte pontapé na cabeça, aos gritos de
“Cala-te, cão!”. O choro da criança
deixou imediatamente de se ouvir:
estava morta, prostrada no chão, com
o cérebro esfacelado.
No meio da confusão e da fumarada, alguns indivíduos, que estavam
apenas feridos, conseguiram escapar,
como António Ximone, um rapaz de
15 anos, e o seu irmão Domingo, de 4
anos, que conseguiram fugir de uma
dessas piras funerárias com corpos a
arder (António foi um dos sobreviventes que, meses mais tarde, relatou ao
London Times os factos deste hediondo crime de guerra)».
Exaustos da carnificina, os soldados
acamparam nas proximidades das
povoações que tinham acabado de
varrer do mapa de Moçambique, ali
ficando durante três dias, para dar caça aos sobreviventes que tivessem fugido e, os eliminar. Alguns desses sobreviventes, porém,
protegeram-se na missão de São Pedro, dirigida por dois padres espanhóis da Ordem de Burgos, que ouviram os primeiros relatos e produziram
dois relatórios sobre os massacres (a
esses, felizmente, os assassinos não
conseguiram deitar a mão).
Perante isso, os missionários procederam a averiguações, ouviram os sobreviventes (alguns dos quais abrigados no hospital de Tete) e recolheram
os testemunhos daqueles que tinham
presenciado os acontecimentos à distância. Com base nessas informações,
elaboraram dois relatórios, um dos
quais fizeram sair de Moçambique: a
20 de Fevereiro de 1973, aproveitando
o facto de as autoridades portuguesas
terem expulsado de Moçambique dois
padres de Burgos – Júlio Moure e Miguel Buendía, por terem denunciado
as atrocidades de vários militares –,
foi possível entregar a este último,
pouco antes de entrar no avião, uma
cópia do segundo relatório (elaborado
por Domingo Kansande, Domingo
Ferrão e José Sangalo), referente aos
massacres de Wiriamu e Juwau, que o
transportou para Madrid e o entregou
à Ordem de Burgos.
A acção de Adrian Hastings
Adrian Hastings foi o padre inglês católico, pertencente à congregação dos
Padres Brancos (além de historiador e
estudioso do cristianismo, membro da
Congregação dos Missionários de África com uma longa experiência de trabalho em África, ali tendo permanecido durante mais de 12 anos), que chamou a atenção da comunidade internacional para o Massacre de Wiriamu.
Em Abril de 1973, o padre Hastings
foi à Rodésia para participar num ciclo de conferências sobre temas religiosos. Nessa ocasião, ouviu da boca
de alguns missionários espanhóis do
Instituto de São Francisco Xavier de
Burgos (conhecidos apenas como Padres de Burgos) o relato das selvajarias cometidas por um grupo de militares portugueses no distrito de Tete.
Mostrando-se interessado em saber
mais, sugeriram-lhe que contactasse
a sede da ordem em Espanha.
Como daí a meses, na semana de 18
de Junho, iria realizar uma palestra
em Salamanca, sobre o novo pensamento da Igreja para as questões ecuménicas, Hastings aproveitou para se
deslocar a Madrid. Já em Espanha,
teve acesso a um desses relatórios sobre os massacres de civis perpetrados
pelo exército português na região
central de Moçambique (Tete).
Ajudado por tradutores espanhóis, consultou a documentação que o murciano
Miguel Buendía conseguira introduzir
em Espanha, juntamente com um pequeno filme que mostrava restos de
cubatas incineradas.
Depois de analisar cuidadosamente
os relatórios que documentavam, de
forma fidedigna, os massacres em
três aldeias moçambicanas do distrito de Tete (com destaque para Wiriamu, pois fora inteiramente arrasada e quase todos os habitantes assassinados, muitos deles de forma sádica e
cruel), e apercebendo-se da dimensão e da gravidade do que acabara de
ter conhecimento, decidiu que era
preciso denunciar aquela selvajaria,
cometida com requintes de sadismo,
pelo exército português, fazendo
chegar à imprensa internacional
aqueles papéis.
O PADRE
ADRIAN
HASTINGS
TELEFONOU
AO THE
LONDON
TIMES E
CONTOU A
HISTÓRIA
DOS
MASSACRES, DE
QUE
POSSUÍA
PROVASRepercussão internacional
Ao fim da tarde de 6 de Julho de 1973,
uma sexta-feira, Adrian Hastings telefonava ao jornal The London Times e
contava a história dos massacres, de
que possuía provas, pois trouxera de
Madrid uma cópia do documento dos
padres de Burgos, passado em stencil.
No dia seguinte, sábado, enviou tudo
para o jornal.
Na segunda-feira, já com os documentos de Hastings nas mãos, o responsável pelas decisões executivas no
The Times, Louis Heren, telefonou-lhe e disse: “Temos de publicar o artigo amanhã. Os tipógrafos estão a
ameaçar com greve e não sabemos
quando estaremos em condições de
voltar a imprimir.” Se tal acontecesse,
a divulgação da história ficaria adiada
e perderia impacto, pois Inglaterra
preparava-se, em breve, para receber
Marcello Caetano, o primeiro-ministro português, por ocasião das comemorações dos 600 anos da Aliança
Luso-Britânica.
A 10 de Julho de 1973, o jornal The
London Times, dando honras de primeira página à história – título com
grande destaque: “Massacre português denunciado por padres” –, publicou o artigo assinado por Hastings,
onde se denunciava o massacre de
quase toda a população de Wiriamu
(no total, segundo as informações de
Hastings, teriam sido chacinados, pelas tropas portuguesas, entre 300 e
500 negros das populações civis do
distrito de Tete), bem como um dos
dois relatórios elaborados pelos padres que trabalhavam na missão de
São Pedro. Hastings referia a existência de testemunhas do massacre,
nomeadamente um missionário português da ordem italiana dos padres
Combonianos, e mais dois outros
missionários que garantiam que os corpos das vítimas tinham sido enterrados no mato, porém,
tinham sido presos pelas
autoridades portuguesas e
estavam no cárcere de
Lourenço Marques, sob
a acusação de “atentado moral ao exército português”.
Face à gravidade das
acusações, mais a mais divulgadas num jornal com
o prestígio e a influência
do The Times, e estando
programada, para daí a
dias, a visita oficial (a convite do governo britânico)
de Marcello Caetano a
Londres (de 16 a 18 de Julho), as imprensas inglesa
e internacional desenvolveram as suas próprias investigações e escalpelizaram a história dos massacres, enquadrando-os na
guerra levada a cabo em
Moçambique, e promoveram um debate alargado
sobre os apoios estrangeiros de que Portugal beneficiava para a prossecução
das suas campanhas militares em África, pondo em
causa a reputação do regime português e a própria
presença portuguesa no
continente africano.
O “Insight Team” do
Sunday Times, por exemplo, realizou uma extensa
cobertura do contexto do
massacre e qualificou
como “indesejada” a visita de Marcelo: “O debate sobre a visita de Caetano fora
muito útil pois apresentara
à opinião pública inglesa o
carácter da guerra que
Portugal sustenta em África.”
O mesmo aconteceu
no Observer, jornal que
também veio corroborar
os relatórios apresentados
por Hastings; o The Guardian publicou na íntegra o
relatório secreto, elaborado por militares portugueses para consumo interno,
que confirmava os massacres de Wiriamu, defendeu
a expulsão de Portugal da
NATO (juntamente com a
Grécia do regime dos coronéis), e publicou um editorial intitulado “Portugal:
Amigo ou Inimigo?”, onde
dizia que “é errado conferirem-se honras ao Presidente do Conselho Português.
Ao povo português,
sim: 600 anos de cordialidade, menos inconsistente
da que gozámos por
exemplo com os franceses
ou com os alemães, merecem mais do que uma observação passageira. Porém, o Dr. Caetano não
pode ser apresentado
como representante do
povo português e chefia
um Governo que em muitos aspectos é mais hostil
do que afável para com os
interesses britânicos”.
Para se ter uma ideia da
repercussão internacional deste caso,
só o The Times publicou, ao longo de
seis meses, entre Julho e Dezembro de
1973, mais de 200 artigos atacando a
posição portuguesa, repudiando a
campanha de contra-informação desencadeada pelas autoridades lusas e
mantendo-se firme na defesa das fontes em que se tinha baseado, que consideravam consistentes e fidedignas, e
dos procedimentos de verificação dos
factos.
Em contrapartida, o jornal conservador Daily Telegraph defendeu
que os inquéritos efectuados não tinham provado nada e lançou “fortes
dúvidas sobre a história”.
Reacção portuguesa
Em Lisboa, imediatamente a seguir
ao artigo do The Times, o governo
português publicou uma nota oficiosa indignada em que desmentia e repudiava a notícia, considerando-a
uma “campanha insidiosa de difamação”, uma conspiração internacional inventada pelos inimigos de
Portugal, que segundo Marcelo Caetano visava “abalar o moral das tropas” e “pôr em causa a defesa do Ultramar português”.
O regime português desmentiu pois
os massacres, contestou a veracidade
dos factos e dos testemunhos, classificou-os de tendenciosos, e alegou
mesmo a inexistência de uma aldeia
com o nome de Wiriamu: tudo não
passava de uma “ficção” congeminada por meia dúzia de padres progressistas apostados em atacar as posições portuguesas.
Em desespero, as
autoridades portuguesas lançaram
ainda uma campanha para denegrir o
Padre Hastings, considerado um “inimigo declarado de Portugal”, e a idoneidade dos jornais que tinham divulgado a notícia dos massacres.
O diário
Época, por exemplo, referiu-se a Hastings como um “paranóico com a mania do escândalo”, um “espantalho
louco e um mentiroso agitador”, e segundo a revista Observador estava
em curso uma “campanha desenvolvida pela imprensa inglesa, francesa e
italiana”, o convento dos padres de
Burgos era uma “célula socialista da
igreja espanhola”, Hastings um “militante progressista”.
Na Câmara dos Comuns, Harold
Wilson, o líder do Partido Trabalhista,
e o ministro dos Negócios Estrangeiros Sir Alec Douglas-Home, discutiram acaloradamente a oportunidade
da visita de Marcello Caetano e o mal-estar que estava a causar em Inglaterra. Enquanto o governo de Londres
defendia o regime português (tal
como, de resto, o governo norte-
-americano), os trabalhistas e os liberais, em minoria no Parlamento britânico, exigiram que a visita fosse cancelada, pediram a realização de um
debate plenário sobre as alegações do
massacre e Harold Wilson declarou
mesmo que, caso ganhasse as próximas eleições, uma das suas primeiras
medidas seria propor a expulsão de
Portugal da NATO.
Um dos momentos mais importantes da campanha anticolonial do Partido Trabalhista deu-se a 15 de Julho
(um domingo, na véspera da chegada
a Londres do primeiro-ministro do
Estado Novo), quando se realizou, na
capital inglesa, uma manifestação
contra a visita oficial de Marcelo Caetano e contra o regime ditatorial português, que começou em Belgrave
Square (onde ficava a embaixada de
Portugal) e terminou em Hyde Park.
Além de Lord Gifford, o inspirador
da campanha “End the Alliance”,
participaram na manifestação – provavelmente a maior manifestação
antiportuguesa da moderna história
da Grã-Bretanha” —, vários exilados
e activistas portugueses residentes
em cidades como Paris, Bruxelas,
Amesterdão ou Estocolmo.
Apesar
da chuva, o protesto reuniu mais de
cinco mil pessoas frente à embaixada de Portugal: entre Belgrave Square e o Hyde Park, a multidão foi gritando palavras de ordem contra a ditadura portuguesa e empunhando cartazes com insultos- carniceiro, assassino, etc-contra Marcello
Caetano.
Entre os portugueses que marcaram
presença, destacava-se a figura de
Mário Soares, o primeiro secretário-
-geral do recém-criado (e ilegal) Partido Socialista (em Abril de 1973), que
vivendo então exilado em Paris se
deslocou a Londres para participar na
manifestação. Soares não só foi oficialmente recebido e acolhido por
Harold Wilson, o já referido dirigente
dos trabalhistas ingleses — entrevistado na sede do Partido Trabalhista,
Soares disse aos jornalistas que,
“como português, se sentia envergonhado com a notícia do massacre”,
mas atribuiu a responsabilidade pelo
mesmo, exclusivamente, ao Governo
português, e não aos portugueses –,
como se sentou ao lado de Adrian
Hastings na conferência de imprensa
de 11 de Julho de 1973, em Londres,
convocada pelo padre britânico para
defender, de viva voz, o relatório dos
massacres de Wiriamu.
Num ambiente destes, e prevendo a
ocorrência de desacatos, a chegada
do primeiro-ministro português foi
rodeada de um apertado dispositivo
policial da Scotland Yard e Marcello
Caetano foi abordado por uma multidão de jornalistas.
Os jornais britânicos, incluindo alguns tablóides, encheram-se de comentários negativos
a respeito de Portugal, que persistia
na ilusão de que podia manter o seu
império colonial, ofuscando e estragando, assim, todos os actos da visita
de Marcello Caetano.
(Revista SÁBADO)
SOARES
SENTOU-SE
AO LADO
DE ADRIAN
HASTINGS
PARA
DEFENDER
O RELATÓRIO DOS
MASSACRES DE
WIRIAMUO The London Times publicou
a notícia do massacre
a 10 de julho de 1973
(Revista SÁBADO)
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