À meia-noite do dia 21 de janeiro de
1961, um grupo de 24 homens armados
reúne-se no terceiro convés do navio
português de passageiros Santa Maria. O paquete leva, a bordo, cerca de
900 pessoas, de várias nacionalidades,
300 das quais são tripulantes. Joia da
Companhia Nacional de Navegação,
o navio, construído, nos estaleiros
John Cockerill SA, na Bélgica, entre
1951 e 1953, pode transportar até 1
182 passageiros. Na sua velocidade de
cruzeiro, faz, no mar das Caraíbas, a
rota Lisboa – La Guaira – Miami. O
grupo de guerrilheiros, formado por
dissidentes políticos portugueses e
espanhóis, obedece a um comando
tripartido. Os galegos Velo Mosquera
(aliás Pepe Velo, comandante-geral
da operação) e Jorge Sotomayor (comandante militar) delegam o comando político no ex-oficial do Exército
português, capitão Henrique Galvão.
O luso só exerce estas funções porque o navio prestes a ser sequestrado
ostenta pavilhão português. O facto
de não existir pena de morte, em Portugal, ao contrário do que sucedia em
Espanha, fora o fator decisivo, na hora
da seleção da nacionalidade da “presa”.
Os rebeldes representam a cúpula do
DRIL (Diretório Revolucionário Ibérico
de Libertação), organização formada
como resposta ao Pacto Ibérico celebrado entre os ditadores Francisco
Franco, o “generalíssimo” caudilho
espanhol, e António de Oliveira Salazar, chefe incontestado do regime
autoritário português. Dava-se, assim,
início ao momento-chave da Operação
Dulcineia. Faz agora 60 anos.
UMA HISTÓRIA DO TINTIM
No momento em que chegam ao terceiro convés, os rebeldes espanhóis e
portugueses encontram, como principal obstáculo, o seu próprio desacordo
sobre a forma de tomar o controlo do
navio. Arrastada durante hora e meia,
a discussão faz com que se perca a
oportunidade de aproveitar o melhor local para a mudança atempada de rota,
prevista no plano inicial, e que teria sido
essencial para retardar a localização da
embarcação, quando as buscas se iniciassem. Galvão defende que a ponte
do navio deve ser atacada só por um
lado, para evitar o fogo cruzado, mas
Sotomayor decide que o ataque se fará
pelos dois lados. Desde o início que o
amadorismo imperara: Jorge Sotomayor
tivera até de vender uma propriedade
para conseguir financiar a compra de
armamento – bastante escasso, por
sinal – e bilhetes para que todos pudessem embarcar. Do lado espanhol,
entre Sotomayor e Mosquera, havia divergências ideológicas de base. Só Galvão, que viajara no Santa Maria, algum
tempo antes, numa curta distância entre
escalas, para fazer o reconhecimento,
parecia saber o que queria. O exilado
político Miguel Urbano Rodrigues, que
viria a estar, em serviço jornalístico,
para o Estado de São Paulo, no Santa
Liberdade (nome com que o Santa
Maria seria rebatizado pelos rebeldes)
dá conta de uma certa ambiguidade no
comando, num posterior relato: “No
transatlântico, o comandante nominalera Henrique Galvão, mas apercebi-me
logo de que os comandantes reais eram
dois galegos: Sotomayor e Velo, que usava o nome de guerra de Xunqueira de
Ambia [nome da sua terra, na Galiza].”
O anticomunismo de Galvão, um típico dissidente de dentro do regime, foi,
desde o início, um anticorpo, até para
o jovem repórter comunista...
Do lado português, além de Henrique Galvão – e de Humberto Delgado,
apoiante na retaguarda e preparado
para desembarcar em Portugal, na
perspetiva do sucesso do plano –, estavam Filipe Viegas Aleixo, Joaquim
Paiva, Frias de Oliveira e o jovem de 26
anos Camilo Mortágua, braço-direito
do capitão e um dos operacionais de
maior confiança (pai das gémeas do
Bloco de Esquerda Joana e Mariana
Mortágua). Os 24 guerrilheiros embarcaram, como vulgares passageiros, uns
em La Guaira (Venezuela), outros em
Curaçau. O cimento “ideológico” que
unia os lusos era o foco do seu líder,
Henrique Galvão, no ódio à pessoa de
Salazar e no seu derrube.
Mas nada disto estava em causa,
naquele dia, no terceiro convés doSanta Maria. Do que se tratava, agora,
era de agir. E de dar seguimento ao
plano: depois de tomar o controlo de
uma parcela nacional de um dos países
ibéricos – e, juridicamente, um navio
era, em alto-mar, considerado parcela
nacional do país do seu pavilhão... –
rumar, sigilosamente, para a ilha espanhola de Fernando Pó, arregimentar
forças e armas locais, desviar duas
embarcações de guerra, abandonar
o Santa Maria ao largo e, nos navios
tomados, zarpar para Luanda, onde
Galvão se responsabilizaria por encabeçar um movimento popular e militar
contra as autoridades salazaristas (e
franquistas). Angola seria a base para
uma posterior ocupação da Península
Ibérica. Para se legitimar, Galvão era
portador de uma credencial assinada por Humberto Delgado, como
Presidente da República de direito,
espoliado do resultado eleitoral de
1958, que o capitão reconhecia como
líder da oposição e do País. Desde o
princípio que o fantasioso plano era
digno de um álbum do Tintim, como,
provavelmente, estes operacionais
sabiam. Mas o importante era avançar com uma ação que atraísse as atenções
internacionais – e as dos opositores de
ambas as ditaduras.
O MESTRE DO “AGITPROP”
No ataque à ponte de comando, e perante a resistência, o terceiro piloto,
Nascimento da Costa, foi precipitadamente alvejado por um dos espanhóis, e
morto, tendo havido mais dois feridos.
O derramamento de sangue, que não
estava previsto, era mais um contratempo, mas o resto da tripulação, sob a
direção do comandante do navio, Mário
Simões da Maia, manteve-se em funções, depois de ter prometido, sob palavra de honra, obedecer aos ocupantes.
O primeiro sinal de vida do navio
sequestrado deu-se quando se procedeu ao desembarque dos feridos na
ilha inglesa de Santa Lúcia. Tentando retocar uma imagem que ficaria
sempre manchada pela morte de um
inocente, os guerrilheiros acederam ao
desembarque – mas tal decisão tornava
praticamente impossível o plano de se
dirigirem ao continente africano, mais
ou menos incógnitos. Henrique Galvão
parece ser o único a perceber isso e, a
partir daqui, a sua estratégia passa a ser
unicamente política e mediática. (Mais tarde, antes da rendição negociada, os
passageiros serão todos libertados.) Se
antes, como descreveu Miguel Urbano
Rodrigues, ele era um líder nominal,
a partir deste momento passa a ser o
rosto da operação. Está por sua conta.
E executa magistralmente o seu plano
de agitprop. Com o foco dos grandes
média internacionais, que não resistem
ao exótico apelo do sequestro de um
navio de passageiros por uns obscuros
rebeldes das ainda mais esquecidas
ditaduras ibéricas – uma excrescência
fora de tempo dos antigos fascismos
europeus – é a hora de flagelar Salazar
e a sua ditadura. Henrique Galvão, que
tem no seu navio a responsabilidade
por muitas vidas norte-americanas – e
conhece o desagrado de Kennedy face ao
regime de Salazar –, sabe que captará a
atenção dos Estados Unidos da América
e, portanto, a do mundo. E está determinado em usar o palco o melhor que
sabe. As suas experiências, ainda como
figura eminente da ditadura, na área da
comunicação e das relações públicas,
que tão boas provas dera na organização da Exposição Colonial do Porto, em
1934, ou a sua passagem como diretor
da Emissora Nacional, deram-lhe o traquejo e os contactos. É a hora da política.
O primeiro comunicado, enviado
à revelia dos espanhóis, é dirigido à
cadeia de notícias norte-americana
NBC. De repente, uma tal “Junta Nacional Independente de Libertação”,
presidida pelo general Humberto
Delgado, teria um comando a ocupar o navio Santa Maria, a “primeira
parte libertada do território nacional”.
A ação tem “objetivos democráticos”.
Promete libertar os passageiros e
apela à sublevação nacional. A seguir,
Galvão envia um segundo telegrama
a Humberto Delgado, solicitando ao
general que use o seu prestígio internacional para que qualquer acusação
de pirataria fosse refutada, sendo reconhecido aos assaltantes o estatuto
de beligerantes.
Nos dias seguintes, apesar dos esforços da diplomacia portuguesa para
que a Marinha dos EUA usasse a força e
resgatasse o navio, e para que os assaltantes fossem considerados criminosos
de delito comum, os média internacionais percebem o que está em causa. E
as opiniões públicas democráticas, em
todo o mundo, interessam-se pelo caso
e, pior, informam-se sobre a natureza
do regime português. A administração
Kennedy, prudente, localiza e nha o navio, usando a força aérea e a
esquadra, mas não intervém.
No dia 25, Galvão dirige telegramas
ao secretário-geral das Nações Unidas,
ao secretário de Estado norte-americano, Dean Rusk, e ao Presidente eleito
do Brasil, Jânio Quadros, que há de
conceder asilo político aos homens do
DRIL. A todos pede que lhe reconheçam o estatuto de beligerante.
O “DISCURSO” MAIS CURTO
DE SALAZAR
A novela prossegue e o mundo desperta para o fascismo português, através
dos principais órgãos de comunicação
internacionais. Em Lisboa, o gabinete
de crise, constituído por Salazar, sob a
coordenação do ministro da presidência,
Pedro Teotónio Pereira, integra os principais ministros e chefes militares. Nada
é conseguido: depois das conversações,
a 31 de janeiro, em pé de igualdade, entre
Henrique Galvão e o contra-almirante
norte-americano Allen E. Smith, em representação do comandante da esquadra
americana do Atlântico, antes da entrega do paquete, no porto brasileiro do
Recife, Salazar sabe que a recuperação
do agora Santa Liberdade já será feita
depois de o mal estar feito. Nos dias antecedentes à chegada
do Santa Maria a Lisboa, é anunciada
uma tolerância de ponto, para que os
lisboetas possam receber o navio, em
manifestação e clima de festa... forçada. Salazar, taciturno, não preparou
nenhum discurso. Não lhe apetece
falar. Está perante um dilema: é contra
os seus princípios falar de improviso.
Prefere burilar os seus discursos e
receia passos em falso. Chega-se ao
microfone, hesitante, e profere: “Temos
o Santa Maria connosco. Obrigado,
portugueses.” Para os dóceis jornais
do dia seguinte, o único “discurso” de
improviso do senhor Presidente do
Conselho foi o mais breve mas um dos
mais emblemáticos e sentidos da sua
carreira política.
Nesse início de 1961, António de
Oliveira Salazar ainda medrava no seu
torpor e no discreto semianonimato
internacional da ditadura portuguesa.
Portugal vivera, assim, “habitualmente” agarrado, com mais vaidade do que
proveito, ao último império colonial
europeu. Mas os ventos internacionais
não anunciavam nada de bom para as
teses imperiais do regime, que apenas
justificavam a manutenção das colónias
por razões históricas e, nalguns casos, legalistas: na Índia, o Presidente, Nehru, pressionava Salazar para a entrega
dos últimos resquícios territoriais do
colonialismo, no subcontinente – o
Estado português da Índia, composto
pelos enclaves de Goa, Damão e Diu –
e, no ano anterior, a eleição do jovem
Presidente democrata John F. Kennedy,
nos EUA, trazia consigo uma agenda
anticolonialista que tornaria obsoleta
a tese dos que, como Salazar e Franco
Nogueira, identificavam descolonização
com avanços do comunismo soviético.
Nenhum dos objetivos operacionais do desvio do Santa Maria seria
atingido, mas o extraordinário talento político de Henrique Galvão não
só permitiu uma viragem histórica,
na forma como o regime de Salazar
passaria a ser encarado, como abriu
caminho para o que veio a seguir: os
levantamentos dos movimentos de
libertação em Angola.
O CHEIRINHO A NAPALM...
Quem aterrar em Luanda poderá ler,
no edifício principal da aerogare, os
seguintes dizeres: “Aeroporto 4 de
Fevereiro.” A data marca, simbolicamente, o início da luta armada pela
independência. Nesse dia, em 1961,escassas horas volvidas sobre o desfecho do assalto ao Santa Maria, cerca
de 200 insurgentes angolanos ensaiam
um assalto à Casa Militar de Reclusão
de S. Paulo, em Luanda, a fim de libertarem os presos políticos e impedir a
sua transferência para o Tarrafal e para
o Aljube. Na revolta, a 7ª esquadra da
PSP, situada na estrada de Catete, é
outro dos seis objetivos, que incluem
ainda a Cadeia da Administração de
S. Paulo, a Companhia Indígena, as
instalações dos CTT e o aeroporto. Os
chefes da revolta, inspirados por um
sacerdote católico, Manuel das Neves,
vão desde pintores da construção civil
a carpinteiros e alfaiates. Envolvidos,
também, dois cabos indígenas do
Exército. E pelo menos dois “feiticeiros”, que garantiriam que as munições
da forças portuguesas não perfurariam
a pele e não teriam outro efeito a não
ser o provocado por esguichos de água
quente...
O rocambolesco da revolta, de origem claramente popular e quase inorgânica, contribui para o mito do 4 de
Fevereiro. Mas não foi apenas o episódio do Santa Maria a definir o timing:
é verdade que a iminente suposta chegada do trasantlântico a Luanda pitou a data dos acontecimentos. É que
a capital angolana fervilhava de jornalistas internacionais à espera do navio
– e da grande história. No entanto, já
a 4 de janeiro, exatamente um mês
antes, na Baixa do Cassange, se dera o
primeiro incidente entre indígenas e
colonos. O episódio ficou conhecido
como Massacre da Baixa do Cassange.
Algumas aldeias dessa área no Norte
de Angola, com a extensão de Portugal e com 150 mil habitantes, foram
palco de uma sublevação camponesa
que, durante muito tempo, nenhuma
força política reivindicou. A investigadora Aida Freudenthal, especialista
na História africana, considera-o “o
episódio mais relevante de contestação
das condições de trabalho impostas
sob o domínio colonial”.
A operação punitiva Cassange – desenvolvida pela 3ª Companhia de Caçadores, comandada por Teles Grilo, e,
posteriormente, pela 4ª Companhia de
Caçadores, comandada por Teixeira de
Morais – originou a morte de centenas
de angolanos e, nos bombardeamentos
de localidades indígenas, foi utilizado
o napalm.
Mas foram os acontecimentos de 15
de março que convenceram Salazar a enviar os primeiros contingentes de
tropas para Angola. Nesse dia, guerrilheiros conotados com a UPA avançam
sobre os colonos portugueses numa
vasta área do Noroeste de Angola, sobretudo, no distrito do Congo, e massacram a população. Santo António do
Zaire, S. Salvador do Congo, Maquela
do Zombo, Ambrizete, Negaje, Mucaba, Sanza-Pombo, os arredores de
Carmona são algumas das localidades
referidas pelo ministro Franco Nogueira: segundo os relatos, são assassinados, com particular violência, homens,
mulheres, crianças, autoridades administrativas, agentes da ordem, brancos,
negros, mestiços. Fuziladas, queimadas
vivas, esventradas, esquartejadas, degoladas, serradas ao meio, as vítimas
ascendem aos milhares. As imagens
do massacre mobilizam a criação de
milícias brancas que retaliam indiscriminadamente: cada negro é um
suspeito. O território angolano corre o
risco de se tornar um imenso campo de
extermínio. Jorge Jardim, uma espécie
de agente de Salazar em África, profere
que “Angola está à beira de se perder e,
perdendo-se Angola, perde-se tudo”. A
13 de abril, em Lisboa, o ditador traça
o destino dos próximos 13 anos: “Para
Angola, rapidamente, e em força.”
O GOLPE PALACIANO
Nesse dia, 13 de abril, Salazar recuperara a energia e a iniciativa, depois
de sofrer o 3º revés, no curto espaço
de quatro meses. Está a ser um ano
difícil: depois das revoltas em Angola
e do assalto ao Santa Maria, acaba de
enfrentar, e de desmantelar, um golpe
palaciano liderado pelo seu próprio
ministro da Defesa, o general Júlio
Botelho Moniz. Desagradado com a
política colonial do Presidente do Conselho, e concertado com o embaixador
dos EUA em Lisboa, Burke Elbrick,
Botelho Moniz preparava um pronunciamento para tirar Salazar do poder,
chegando a colocar de prevenção um
avião que levasse o futuro ex-Presidente do Conselho para um exílio, na
Suíça. Logo após a tomada de posse de
John F. Kennedy, dois meses antes, o
diplomata norte-americano solicitara
uma audiência ao ministro da Defesa,
para o sensibilizar no sentido de uma
mudança da política ultramarina. Ou,
com o apoio da tropa, afastar Salazar
do poder. E é a isso que, no golpe que
ficou também conhecido como “a abrilada”, Botelho Moniz se dedica.
A 25 de março, envia uma tão dura quanto ingénua missiva – se tivermos
em conta a natureza obstinada e implacável do destinatário – a Salazar,
na qual se opõe à utilização das Forças Armadas numa aventura em que
“poderão ficar à mercê de um ataque
frontal com forças dispersas em quatro
continentes”. Salazar recebê-lo-á, em
São Bento, não uma, mas duas vezes,
em dias consecutivos, 28 e 29, com
falinhas mansas, para tirar mais nabos
da púcara. Confiante, Botelho Moniz
abre-se. Salazar fica de pensar. O tempo
passa e Botelho Moniz sente que é chegada a hora: a 9 de abril, informa Elbrick
que exigirá ao Presidente da República,
Américo Tomás, a substituição do chefe
do Governo. Com ele, na conjura, estão,
entre outros, o ministro do Exército, Almeida Fernandes, e o ex-Presidente da
República, Craveiro Lopes. Na sombra,
Marcelo Caetano, informado, aguarda
com expectativa: num novo quadro, ele
será o chefe civil do regime.
Em Belém, Tomás mantém-se atento aos zunzuns sobre a iminência de
um pronunciamento militar contra
Salazar. Agradecido ao ditador, porque lhe deve o lugar, partilha com
ele os receios da perda do Império. O
Império, mais do que um projeto territorial ou económico, é um desígnio
histórico que garante a independência
portuguesa, por contrabalançar o poderio do vizinho espanhol. Do ponto
de vista existencial, Portugal, sem as
suas possessões ultramarinas, perde
sentido, razão de existência e mesmo
capacidade de se autonomizar, no mosaico ibérico. E a sua identidade perder-se-á na subsequente dependência
económica e até mesmo política dos
dictats das potências europeias.
A 12 de abril, Botelho Moniz irrompe, noite dentro, em casa do PR, no
Restelo. Vai acompanhado pelo ministro do Exército e leva um ultimato:
é preciso afastar Salazar e anunciar a
decisão nas próximas 24 horas. Tomás,
que o anedotário nacional vê, injustamente, como um tanto ou quanto
destituído, reage manhosamente: “Mas
que grande estucha que você me arranjou, ó Botelho!”
Sem revelar o que tenciona fazer,
acompanha os ministros à porta. Dizque vai pensar. Só ele e Salazar sabem
que o assunto acabara de ser discutido,
entre os dois, a sós, nesse mesmo dia.
E que concertaram posições: Tomás
mantém a confiança em Salazar – e
os lugares destes ministros estão por
horas.
Botelho Moniz, por seu turno, continua a perder tempo e só na tarde do
dia seguinte, a 13, convocará uma reunião conspirativa para o seu gabinete,
na Cova da Moura, para deliberar se
Salazar deve ser apeado pela força.
Durante a reunião, todavia, os participantes recebem a notícia de que a
Emissora Nacional acaba de anunciar
uma remodelação e que os ministros
da Defesa e do Exército estão demitidos. As chefias militares envolvidas
no golpe desmobilizam. Aos conspiradores, resta irem para casa. Mas, à
saída da reunião, as viaturas oficiais, e
os respetivos motoristas tinham desaparecido... O recado era claro.
Com requintes de malvadez, Salazar
já redigira as cartas de despedimento
(ver caixa). Para a posteridade, e como
prémio de consolação, o nome do malogrado conspirador fica associado a
mais um dos momentos difíceis de
1961: o “Golpe Botelho Moniz”.
Com a chegada, a Angola, do general Venâncio Deslandes, o primeiro
oficial a acumular as funções de chefe
militar e de governador da colónia,
as operações militares seguem o seu
curso, na primeira das três frentes e
no primeiro dos 13 anos de guerra
colonial. No final do ano, estarão,
em Angola, mais de 33 mil efetivos. E
os soldados são brindados com uma
marcha que reza: “(…) Angola é nossa,
gritarei / É carne, é sangue da nossa
grei / sem hesitar, para defender / e
pelejar até vencer.” Mas o ano de 1961
ainda não tinha acabado.
“VITORIOSOS OU MORTOS”
O primeiro-ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, mobilizara, desde o final dos
anos 50, a sua diplomacia para forçar
Portugal a entregar os seus enclaves,
“uma borbulha no rosto da Índia” que
devia ser espremida. Portugal alega que
a União Indiana é muito mais recente
do que o Estado Português da Índia; e
que, aquando da fundação portuguesa
do seu Estado no subcontinente (que
começara por ser um vice-reinado), a Índia não possuía uma entidade política
e administrativa: o território era povoado
por diversos estados autónomos, sendo
Goa um deles, com igual direito, e não
podia ser absorvida, contra sua vontade,
por um estado estrangeiro. Juridicamente, e à luz do direito internacional,
a posição portuguesa era bastante sólida.
Mais, a diplomacia de Salazar invocava o apregoado pacifismo de Nehru,
denunciando quaisquer veleidades de
intervenção armada, por parte da União
Indiana, como uma contradição que descredibilizaria a imagem do líder indiano.
Numa reunião de 5 de dezembro, entre o MNE português, Franco Nogueira, e
o seu homólogo britânico, Sir Archibald
Ross, o chefe da diplomacia portuguesa
pediu que a Grã-Bretanha apaziguasse
Nehru. Tomando medidas preventivas,
a 11 de dezembro, o Governo português,
depois de reunir o gabinete de crise
– Salazar, Franco Nogueira e Adriano
Moreira – decide acionar a aliança luso-britânica. Numa nota entregue pelo
embaixador português ao Foreign Office,
Lisboa pergunta, “nos termos da Declaração Anglo-Portuguesa de 1899, com
que meios a Grã-Bretanha se propunha
contribuir para a defesa de Goa”. Mas
Londres escuda-se no facto de a Índia pertencer à Commonwealth e invoca
“extremas limitações”. Nehru diz ao PM
inglês, Harold McMillian, que Portugal
parece viver num outro século.
A Opração Vijay teve inicio às primeiras horas do dia 18 de dezembro. Às
duas horas do dia 19, o comandante local
das tropas portuguesas, Vassalo e Silva,
desobedecendo às ordens de Salazar,
prefere evitar o banho de sangue e o sacrifício dos 3 500 soldados e marinheiros que defendem a Índia portuguesa,
com um navio obsoleto, duas canhoeiras
de museu e sem qualquer apoio aéreo.
Quatro dias antes da invasão, a 14 de
dezembro, Salazar escrevera a Vassalo e
Silva uma carta que, mais do que dirigida ao comandante militar português,
se destina à posteridade. Sem oferecer
“conforto, nem pretender oferecê-lo”,
Salazar determina: “É horrível pensar
que isso pode significar o sacrifício total,
mas recomendo e espero esse sacrifício
como única forma de nos mantermos à
altura das nossas tradições e prestarmos
o maior serviço ao futuro da Nação. Não
prevejo possibilidade de tréguas nem
prisioneiros portugueses, como não
haverá navios rendidos, pois sinto que
apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos.
A perda da “Roma do Oriente”, como
era conhecida Goa, símbolo da época
áurea da Expansão, foi um rude golpe
na psicologia imperial do ditador. “Com
as emoções das últimas semanas”, disse
Salazar, em plena Assembleia Nacional,
“sobreveio-me um acidente que metirou a voz ou, pelo menos, não me
deixou a voz suficiente para uma leitura
de certa expansão”. Em seguida, pediu
ao presidente da Assembleia, Mário de
Figueiredo, que lhe lesse o discurso,
em que reconheceu o “golpe muito
fundo na vida moral da Nação”. Sem
reconhecer a situação de facto, o regime manteve a representação do Estado
da Índia na Assembleia Nacional. E até
ao 25 de Abril, os livros escolares continuaram a incluir Goa, Damão e Diu,
que eram estudadas como possessões
portuguesas. Como diria Salazar, num
célebre discurso posterior de apologia
da defesa da África portuguesa, “estava,
assim, tudo bem, e não podia ser de
outra forma”.
Mas já não tínhamos “Goa connosco” – nem ninguém a quem dizer
“obrigado” --VISÃO
Muito bem camarada. Boa reportagem.
ResponderEliminarMelhor só eu que também copio
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