sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Recordando o assalto ao Santa Maria em 1961

 



 À meia-noite do dia 21 de janeiro de 1961, um grupo de 24 homens armados reúne-se no terceiro convés do navio português de passageiros Santa Maria. O paquete leva, a bordo, cerca de 900 pessoas, de várias nacionalidades, 300 das quais são tripulantes. Joia da Companhia Nacional de Navegação, o navio, construído, nos estaleiros John Cockerill SA, na Bélgica, entre 1951 e 1953, pode transportar até 1 182 passageiros. Na sua velocidade de cruzeiro, faz, no mar das Caraíbas, a rota Lisboa – La Guaira – Miami. O grupo de guerrilheiros, formado por dissidentes políticos portugueses e espanhóis, obedece a um comando tripartido. Os galegos Velo Mosquera (aliás Pepe Velo, comandante-geral da operação) e Jorge Sotomayor (comandante militar) delegam o comando político no ex-oficial do Exército português, capitão Henrique Galvão. O luso só exerce estas funções porque o navio prestes a ser sequestrado ostenta pavilhão português. O facto de não existir pena de morte, em Portugal, ao contrário do que sucedia em Espanha, fora o fator decisivo, na hora da seleção da nacionalidade da “presa”. Os rebeldes representam a cúpula do DRIL (Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação), organização formada como resposta ao Pacto Ibérico celebrado entre os ditadores Francisco Franco, o “generalíssimo” caudilho espanhol, e António de Oliveira Salazar, chefe incontestado do regime autoritário português. Dava-se, assim, início ao momento-chave da Operação Dulcineia. Faz agora 60 anos. UMA HISTÓRIA DO TINTIM No momento em que chegam ao terceiro convés, os rebeldes espanhóis e portugueses encontram, como principal obstáculo, o seu próprio desacordo sobre a forma de tomar o controlo do navio. Arrastada durante hora e meia, a discussão faz com que se perca a oportunidade de aproveitar o melhor local para a mudança atempada de rota, prevista no plano inicial, e que teria sido essencial para retardar a localização da embarcação, quando as buscas se iniciassem. Galvão defende que a ponte do navio deve ser atacada só por um lado, para evitar o fogo cruzado, mas Sotomayor decide que o ataque se fará pelos dois lados. Desde o início que o amadorismo imperara: Jorge Sotomayor tivera até de vender uma propriedade para conseguir financiar a compra de armamento – bastante escasso, por sinal – e bilhetes para que todos pudessem embarcar. Do lado espanhol, entre Sotomayor e Mosquera, havia divergências ideológicas de base. Só Galvão, que viajara no Santa Maria, algum tempo antes, numa curta distância entre escalas, para fazer o reconhecimento, parecia saber o que queria. O exilado político Miguel Urbano Rodrigues, que viria a estar, em serviço jornalístico, para o Estado de São Paulo, no Santa Liberdade (nome com que o Santa Maria seria rebatizado pelos rebeldes) dá conta de uma certa ambiguidade no comando, num posterior relato: “No transatlântico, o comandante nominalera Henrique Galvão, mas apercebi-me logo de que os comandantes reais eram dois galegos: Sotomayor e Velo, que usava o nome de guerra de Xunqueira de Ambia [nome da sua terra, na Galiza].” O anticomunismo de Galvão, um típico dissidente de dentro do regime, foi, desde o início, um anticorpo, até para o jovem repórter comunista... Do lado português, além de Henrique Galvão – e de Humberto Delgado, apoiante na retaguarda e preparado para desembarcar em Portugal, na perspetiva do sucesso do plano –, estavam Filipe Viegas Aleixo, Joaquim Paiva, Frias de Oliveira e o jovem de 26 anos Camilo Mortágua, braço-direito do capitão e um dos operacionais de maior confiança (pai das gémeas do Bloco de Esquerda Joana e Mariana Mortágua). Os 24 guerrilheiros embarcaram, como vulgares passageiros, uns em La Guaira (Venezuela), outros em Curaçau. O cimento “ideológico” que unia os lusos era o foco do seu líder, Henrique Galvão, no ódio à pessoa de Salazar e no seu derrube. Mas nada disto estava em causa, naquele dia, no terceiro convés doSanta Maria. Do que se tratava, agora, era de agir. E de dar seguimento ao plano: depois de tomar o controlo de uma parcela nacional de um dos países ibéricos – e, juridicamente, um navio era, em alto-mar, considerado parcela nacional do país do seu pavilhão... – rumar, sigilosamente, para a ilha espanhola de Fernando Pó, arregimentar forças e armas locais, desviar duas embarcações de guerra, abandonar o Santa Maria ao largo e, nos navios tomados, zarpar para Luanda, onde Galvão se responsabilizaria por encabeçar um movimento popular e militar contra as autoridades salazaristas (e franquistas). Angola seria a base para uma posterior ocupação da Península Ibérica. Para se legitimar, Galvão era portador de uma credencial assinada por Humberto Delgado, como Presidente da República de direito, espoliado do resultado eleitoral de 1958, que o capitão reconhecia como líder da oposição e do País. Desde o princípio que o fantasioso plano era digno de um álbum do Tintim, como, provavelmente, estes operacionais sabiam. Mas o importante era avançar com uma ação que atraísse as atenções internacionais – e as dos opositores de ambas as ditaduras. O MESTRE DO “AGITPROP” No ataque à ponte de comando, e perante a resistência, o terceiro piloto, Nascimento da Costa, foi precipitadamente alvejado por um dos espanhóis, e morto, tendo havido mais dois feridos. O derramamento de sangue, que não estava previsto, era mais um contratempo, mas o resto da tripulação, sob a direção do comandante do navio, Mário Simões da Maia, manteve-se em funções, depois de ter prometido, sob palavra de honra, obedecer aos ocupantes. O primeiro sinal de vida do navio sequestrado deu-se quando se procedeu ao desembarque dos feridos na ilha inglesa de Santa Lúcia. Tentando retocar uma imagem que ficaria sempre manchada pela morte de um inocente, os guerrilheiros acederam ao desembarque – mas tal decisão tornava praticamente impossível o plano de se dirigirem ao continente africano, mais ou menos incógnitos. Henrique Galvão parece ser o único a perceber isso e, a partir daqui, a sua estratégia passa a ser unicamente política e mediática. (Mais tarde, antes da rendição negociada, os passageiros serão todos libertados.) Se antes, como descreveu Miguel Urbano Rodrigues, ele era um líder nominal, a partir deste momento passa a ser o rosto da operação. Está por sua conta. E executa magistralmente o seu plano de agitprop. Com o foco dos grandes média internacionais, que não resistem ao exótico apelo do sequestro de um navio de passageiros por uns obscuros rebeldes das ainda mais esquecidas ditaduras ibéricas – uma excrescência fora de tempo dos antigos fascismos europeus – é a hora de flagelar Salazar e a sua ditadura. Henrique Galvão, que tem no seu navio a responsabilidade por muitas vidas norte-americanas – e conhece o desagrado de Kennedy face ao regime de Salazar –, sabe que captará a atenção dos Estados Unidos da América e, portanto, a do mundo. E está determinado em usar o palco o melhor que sabe. As suas experiências, ainda como figura eminente da ditadura, na área da comunicação e das relações públicas, que tão boas provas dera na organização da Exposição Colonial do Porto, em 1934, ou a sua passagem como diretor da Emissora Nacional, deram-lhe o traquejo e os contactos. É a hora da política.
 O primeiro comunicado, enviado à revelia dos espanhóis, é dirigido à cadeia de notícias norte-americana NBC. De repente, uma tal “Junta Nacional Independente de Libertação”, presidida pelo general Humberto Delgado, teria um comando a ocupar o navio Santa Maria, a “primeira parte libertada do território nacional”. A ação tem “objetivos democráticos”. Promete libertar os passageiros e apela à sublevação nacional. A seguir, Galvão envia um segundo telegrama a Humberto Delgado, solicitando ao general que use o seu prestígio internacional para que qualquer acusação de pirataria fosse refutada, sendo reconhecido aos assaltantes o estatuto de beligerantes. Nos dias seguintes, apesar dos esforços da diplomacia portuguesa para que a Marinha dos EUA usasse a força e resgatasse o navio, e para que os assaltantes fossem considerados criminosos de delito comum, os média internacionais percebem o que está em causa. E as opiniões públicas democráticas, em todo o mundo, interessam-se pelo caso e, pior, informam-se sobre a natureza do regime português. A administração Kennedy, prudente, localiza e nha o navio, usando a força aérea e a esquadra, mas não intervém. No dia 25, Galvão dirige telegramas ao secretário-geral das Nações Unidas, ao secretário de Estado norte-americano, Dean Rusk, e ao Presidente eleito do Brasil, Jânio Quadros, que há de conceder asilo político aos homens do DRIL. A todos pede que lhe reconheçam o estatuto de beligerante. O “DISCURSO” MAIS CURTO DE SALAZAR A novela prossegue e o mundo desperta para o fascismo português, através dos principais órgãos de comunicação internacionais. Em Lisboa, o gabinete de crise, constituído por Salazar, sob a coordenação do ministro da presidência, Pedro Teotónio Pereira, integra os principais ministros e chefes militares. Nada é conseguido: depois das conversações, a 31 de janeiro, em pé de igualdade, entre Henrique Galvão e o contra-almirante norte-americano Allen E. Smith, em representação do comandante da esquadra americana do Atlântico, antes da entrega do paquete, no porto brasileiro do Recife, Salazar sabe que a recuperação do agora Santa Liberdade já será feita depois de o mal estar feito. Nos dias antecedentes à chegada do Santa Maria a Lisboa, é anunciada uma tolerância de ponto, para que os lisboetas possam receber o navio, em manifestação e clima de festa... forçada. Salazar, taciturno, não preparou nenhum discurso. Não lhe apetece falar. Está perante um dilema: é contra os seus princípios falar de improviso. Prefere burilar os seus discursos e receia passos em falso. Chega-se ao microfone, hesitante, e profere: “Temos o Santa Maria connosco. Obrigado, portugueses.” Para os dóceis jornais do dia seguinte, o único “discurso” de improviso do senhor Presidente do Conselho foi o mais breve mas um dos mais emblemáticos e sentidos da sua carreira política. Nesse início de 1961, António de Oliveira Salazar ainda medrava no seu torpor e no discreto semianonimato internacional da ditadura portuguesa. Portugal vivera, assim, “habitualmente” agarrado, com mais vaidade do que proveito, ao último império colonial europeu. Mas os ventos internacionais não anunciavam nada de bom para as teses imperiais do regime, que apenas justificavam a manutenção das colónias por razões históricas e, nalguns casos, legalistas: na Índia, o Presidente, Nehru, pressionava Salazar para a entrega dos últimos resquícios territoriais do colonialismo, no subcontinente – o Estado português da Índia, composto pelos enclaves de Goa, Damão e Diu – e, no ano anterior, a eleição do jovem Presidente democrata John F. Kennedy, nos EUA, trazia consigo uma agenda anticolonialista que tornaria obsoleta a tese dos que, como Salazar e Franco Nogueira, identificavam descolonização com avanços do comunismo soviético. Nenhum dos objetivos operacionais do desvio do Santa Maria seria atingido, mas o extraordinário talento político de Henrique Galvão não só permitiu uma viragem histórica, na forma como o regime de Salazar passaria a ser encarado, como abriu caminho para o que veio a seguir: os levantamentos dos movimentos de libertação em Angola. O CHEIRINHO A NAPALM... Quem aterrar em Luanda poderá ler, no edifício principal da aerogare, os seguintes dizeres: “Aeroporto 4 de Fevereiro.” A data marca, simbolicamente, o início da luta armada pela independência. Nesse dia, em 1961,escassas horas volvidas sobre o desfecho do assalto ao Santa Maria, cerca de 200 insurgentes angolanos ensaiam um assalto à Casa Militar de Reclusão de S. Paulo, em Luanda, a fim de libertarem os presos políticos e impedir a sua transferência para o Tarrafal e para o Aljube. Na revolta, a 7ª esquadra da PSP, situada na estrada de Catete, é outro dos seis objetivos, que incluem ainda a Cadeia da Administração de S. Paulo, a Companhia Indígena, as instalações dos CTT e o aeroporto. Os chefes da revolta, inspirados por um sacerdote católico, Manuel das Neves, vão desde pintores da construção civil a carpinteiros e alfaiates. Envolvidos, também, dois cabos indígenas do Exército. E pelo menos dois “feiticeiros”, que garantiriam que as munições da forças portuguesas não perfurariam a pele e não teriam outro efeito a não ser o provocado por esguichos de água quente... O rocambolesco da revolta, de origem claramente popular e quase inorgânica, contribui para o mito do 4 de Fevereiro. Mas não foi apenas o episódio do Santa Maria a definir o timing: é verdade que a iminente suposta chegada do trasantlântico a Luanda pitou a data dos acontecimentos. É que a capital angolana fervilhava de jornalistas internacionais à espera do navio – e da grande história. No entanto, já a 4 de janeiro, exatamente um mês antes, na Baixa do Cassange, se dera o primeiro incidente entre indígenas e colonos. O episódio ficou conhecido como Massacre da Baixa do Cassange. Algumas aldeias dessa área no Norte de Angola, com a extensão de Portugal e com 150 mil habitantes, foram palco de uma sublevação camponesa que, durante muito tempo, nenhuma força política reivindicou. A investigadora Aida Freudenthal, especialista na História africana, considera-o “o episódio mais relevante de contestação das condições de trabalho impostas sob o domínio colonial”. A operação punitiva Cassange – desenvolvida pela 3ª Companhia de Caçadores, comandada por Teles Grilo, e, posteriormente, pela 4ª Companhia de Caçadores, comandada por Teixeira de Morais – originou a morte de centenas de angolanos e, nos bombardeamentos de localidades indígenas, foi utilizado o napalm. Mas foram os acontecimentos de 15 de março que convenceram Salazar a enviar os primeiros contingentes de tropas para Angola. Nesse dia, guerrilheiros conotados com a UPA avançam sobre os colonos portugueses numa vasta área do Noroeste de Angola, sobretudo, no distrito do Congo, e massacram a população. Santo António do Zaire, S. Salvador do Congo, Maquela do Zombo, Ambrizete, Negaje, Mucaba, Sanza-Pombo, os arredores de Carmona são algumas das localidades referidas pelo ministro Franco Nogueira: segundo os relatos, são assassinados, com particular violência, homens, mulheres, crianças, autoridades administrativas, agentes da ordem, brancos, negros, mestiços. Fuziladas, queimadas vivas, esventradas, esquartejadas, degoladas, serradas ao meio, as vítimas ascendem aos milhares. As imagens do massacre mobilizam a criação de milícias brancas que retaliam indiscriminadamente: cada negro é um suspeito. O território angolano corre o risco de se tornar um imenso campo de extermínio. Jorge Jardim, uma espécie de agente de Salazar em África, profere que “Angola está à beira de se perder e, perdendo-se Angola, perde-se tudo”. A 13 de abril, em Lisboa, o ditador traça o destino dos próximos 13 anos: “Para Angola, rapidamente, e em força.” O GOLPE PALACIANO Nesse dia, 13 de abril, Salazar recuperara a energia e a iniciativa, depois de sofrer o 3º revés, no curto espaço de quatro meses. Está a ser um ano difícil: depois das revoltas em Angola e do assalto ao Santa Maria, acaba de enfrentar, e de desmantelar, um golpe palaciano liderado pelo seu próprio ministro da Defesa, o general Júlio Botelho Moniz. Desagradado com a política colonial do Presidente do Conselho, e concertado com o embaixador dos EUA em Lisboa, Burke Elbrick, Botelho Moniz preparava um pronunciamento para tirar Salazar do poder, chegando a colocar de prevenção um avião que levasse o futuro ex-Presidente do Conselho para um exílio, na Suíça. Logo após a tomada de posse de John F. Kennedy, dois meses antes, o diplomata norte-americano solicitara uma audiência ao ministro da Defesa, para o sensibilizar no sentido de uma mudança da política ultramarina. Ou, com o apoio da tropa, afastar Salazar do poder. E é a isso que, no golpe que ficou também conhecido como “a abrilada”, Botelho Moniz se dedica. A 25 de março, envia uma tão dura quanto ingénua missiva – se tivermos em conta a natureza obstinada e implacável do destinatário – a Salazar, na qual se opõe à utilização das Forças Armadas numa aventura em que “poderão ficar à mercê de um ataque frontal com forças dispersas em quatro continentes”. Salazar recebê-lo-á, em São Bento, não uma, mas duas vezes, em dias consecutivos, 28 e 29, com falinhas mansas, para tirar mais nabos da púcara. Confiante, Botelho Moniz abre-se. Salazar fica de pensar. O tempo passa e Botelho Moniz sente que é chegada a hora: a 9 de abril, informa Elbrick que exigirá ao Presidente da República, Américo Tomás, a substituição do chefe do Governo. Com ele, na conjura, estão, entre outros, o ministro do Exército, Almeida Fernandes, e o ex-Presidente da República, Craveiro Lopes. Na sombra, Marcelo Caetano, informado, aguarda com expectativa: num novo quadro, ele será o chefe civil do regime. Em Belém, Tomás mantém-se atento aos zunzuns sobre a iminência de um pronunciamento militar contra Salazar. Agradecido ao ditador, porque lhe deve o lugar, partilha com ele os receios da perda do Império. O Império, mais do que um projeto territorial ou económico, é um desígnio histórico que garante a independência portuguesa, por contrabalançar o poderio do vizinho espanhol. Do ponto de vista existencial, Portugal, sem as suas possessões ultramarinas, perde sentido, razão de existência e mesmo capacidade de se autonomizar, no mosaico ibérico. E a sua identidade perder-se-á na subsequente dependência económica e até mesmo política dos dictats das potências europeias. A 12 de abril, Botelho Moniz irrompe, noite dentro, em casa do PR, no Restelo. Vai acompanhado pelo ministro do Exército e leva um ultimato: é preciso afastar Salazar e anunciar a decisão nas próximas 24 horas. Tomás, que o anedotário nacional vê, injustamente, como um tanto ou quanto destituído, reage manhosamente: “Mas que grande estucha que você me arranjou, ó Botelho!” Sem revelar o que tenciona fazer, acompanha os ministros à porta. Dizque vai pensar. Só ele e Salazar sabem que o assunto acabara de ser discutido, entre os dois, a sós, nesse mesmo dia. E que concertaram posições: Tomás mantém a confiança em Salazar – e os lugares destes ministros estão por horas. Botelho Moniz, por seu turno, continua a perder tempo e só na tarde do dia seguinte, a 13, convocará uma reunião conspirativa para o seu gabinete, na Cova da Moura, para deliberar se Salazar deve ser apeado pela força. Durante a reunião, todavia, os participantes recebem a notícia de que a Emissora Nacional acaba de anunciar uma remodelação e que os ministros da Defesa e do Exército estão demitidos. As chefias militares envolvidas no golpe desmobilizam. Aos conspiradores, resta irem para casa. Mas, à saída da reunião, as viaturas oficiais, e os respetivos motoristas tinham desaparecido... O recado era claro. Com requintes de malvadez, Salazar já redigira as cartas de despedimento (ver caixa). Para a posteridade, e como prémio de consolação, o nome do malogrado conspirador fica associado a mais um dos momentos difíceis de 1961: o “Golpe Botelho Moniz”. Com a chegada, a Angola, do general Venâncio Deslandes, o primeiro oficial a acumular as funções de chefe militar e de governador da colónia, as operações militares seguem o seu curso, na primeira das três frentes e no primeiro dos 13 anos de guerra colonial. No final do ano, estarão, em Angola, mais de 33 mil efetivos. E os soldados são brindados com uma marcha que reza: “(…) Angola é nossa, gritarei / É carne, é sangue da nossa grei / sem hesitar, para defender / e pelejar até vencer.” Mas o ano de 1961 ainda não tinha acabado. “VITORIOSOS OU MORTOS” O primeiro-ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, mobilizara, desde o final dos anos 50, a sua diplomacia para forçar Portugal a entregar os seus enclaves, “uma borbulha no rosto da Índia” que devia ser espremida. Portugal alega que a União Indiana é muito mais recente do que o Estado Português da Índia; e que, aquando da fundação portuguesa do seu Estado no subcontinente (que começara por ser um vice-reinado), a Índia não possuía uma entidade política e administrativa: o território era povoado por diversos estados autónomos, sendo Goa um deles, com igual direito, e não podia ser absorvida, contra sua vontade, por um estado estrangeiro. Juridicamente, e à luz do direito internacional, a posição portuguesa era bastante sólida. Mais, a diplomacia de Salazar invocava o apregoado pacifismo de Nehru, denunciando quaisquer veleidades de intervenção armada, por parte da União Indiana, como uma contradição que descredibilizaria a imagem do líder indiano. Numa reunião de 5 de dezembro, entre o MNE português, Franco Nogueira, e o seu homólogo britânico, Sir Archibald Ross, o chefe da diplomacia portuguesa pediu que a Grã-Bretanha apaziguasse Nehru. Tomando medidas preventivas, a 11 de dezembro, o Governo português, depois de reunir o gabinete de crise – Salazar, Franco Nogueira e Adriano Moreira – decide acionar a aliança luso-britânica. Numa nota entregue pelo embaixador português ao Foreign Office, Lisboa pergunta, “nos termos da Declaração Anglo-Portuguesa de 1899, com que meios a Grã-Bretanha se propunha contribuir para a defesa de Goa”. Mas Londres escuda-se no facto de a Índia pertencer à Commonwealth e invoca “extremas limitações”. Nehru diz ao PM inglês, Harold McMillian, que Portugal parece viver num outro século. A Opração Vijay teve inicio às primeiras horas do dia 18 de dezembro. Às duas horas do dia 19, o comandante local das tropas portuguesas, Vassalo e Silva, desobedecendo às ordens de Salazar, prefere evitar o banho de sangue e o sacrifício dos 3 500 soldados e marinheiros que defendem a Índia portuguesa, com um navio obsoleto, duas canhoeiras de museu e sem qualquer apoio aéreo. Quatro dias antes da invasão, a 14 de dezembro, Salazar escrevera a Vassalo e Silva uma carta que, mais do que dirigida ao comandante militar português, se destina à posteridade. Sem oferecer “conforto, nem pretender oferecê-lo”, Salazar determina: “É horrível pensar que isso pode significar o sacrifício total, mas recomendo e espero esse sacrifício como única forma de nos mantermos à altura das nossas tradições e prestarmos o maior serviço ao futuro da Nação. Não prevejo possibilidade de tréguas nem prisioneiros portugueses, como não haverá navios rendidos, pois sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos.
 A perda da “Roma do Oriente”, como era conhecida Goa, símbolo da época áurea da Expansão, foi um rude golpe na psicologia imperial do ditador. “Com as emoções das últimas semanas”, disse Salazar, em plena Assembleia Nacional, “sobreveio-me um acidente que metirou a voz ou, pelo menos, não me deixou a voz suficiente para uma leitura de certa expansão”. Em seguida, pediu ao presidente da Assembleia, Mário de Figueiredo, que lhe lesse o discurso, em que reconheceu o “golpe muito fundo na vida moral da Nação”. Sem reconhecer a situação de facto, o regime manteve a representação do Estado da Índia na Assembleia Nacional. E até ao 25 de Abril, os livros escolares continuaram a incluir Goa, Damão e Diu, que eram estudadas como possessões portuguesas. Como diria Salazar, num célebre discurso posterior de apologia da defesa da África portuguesa, “estava, assim, tudo bem, e não podia ser de outra forma”. Mas já não tínhamos “Goa connosco” – nem ninguém a quem dizer “obrigado” --VISÃO

Obras consultadas: Henrique Galvão, Um Herói Português, Francisco Teixeira da Mota, Oficina do Livro. Salazar, Filipe Ribeiro de Menezes, D. Quixote. Angola 61, Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, Texto. Xeque Mate a Goa, Maria Manuel Stocker, Texto. Portugal, Ascensão e Queda, Jaime Nogueira Pinto, D. Quixote. Humberto Delgado, biografia do General Sem Medo, Frederico Delgado Rosa, Esfera dos Livros. Últimas Décadas de Portugal, Américo Tomás, Diversos.

2 comentários: