A impunidade do grupo
O projeto de acórdão que ilibou duas procuradoras do Ministério Público no caso das vigilâncias é um belo tratado sobre a impunidade. E é um dever partilhar as suas conclusões
Quando terminar a leitura deste artigo, só terá uma reacção: "Não é possível!". Mas foi. A decisão do Conselho Superior do Ministério Público em arquivar matéria disciplinar relativa à operação de vigilância e ao levantamento do sigilo bancário deve preocupar-nos a todos, porque está aberta à porta à irresponsabilidade total. Em resumo, 15 dos 18 conselheiros votaram (houve dois votos contra e uma abstenção) a favor de que tudo foi mal feito, mas não há responsabilidade disciplinar de ninguém, porque a autonomia técnica de uma magistrado é muito mais importante do que o dano que este possa causar a um qualquer cidadão. Se isto não é impunidade, o que será?
Antes de entrar no conteúdo da decisão, convém esclarecer que o número 3 do Código Deontológico dos Jornalistas é claro: "O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos". E é isto que se pretende fazer.
O inspetor do Ministério Público e o autor do projeto de acórdão, o procurador Alcides Rodrigues, referem que o Ministério Público tem competência para ordenar vigilâncias policiais na via pública. Porém, o inspetor que fez a averiguação ao comportamento da procuradora Andrea Marques explicou:
Ora, face ao tipo de diligência que se estava a solicitar ao órgão de polícia criminal exigia-se da parte da magistrada titular e da Sra. Directora do DIAP, que teve conhecimento do que ia ser ordenado, um especial dever de cuidado.
Esta falta de clareza é inaceitável visto estarmos na presença de meio intrusivo, pelo que se impunha a prolação de despacho em termos bem distintos. Ademais não foram fixados quaisquer limites à actuação policial de modo a se acautelar o respeito pelo princípio da proporcionalidade.
Por outro lado, constata-se não haver referência nos autos à virtualidade do meio de prova utilizado para se alcançar o desiderato proposto, até porque os crimes em investigação já se tinham consumado. Acresce não se vislumbrar que o mesmo fosse idóneo para se identificarem as eventuais "fontes de informação", face ao núcleo das pessoas que tinham conhecimento do que constava do processo em segredo de justiça. E, por outro lado, porque as vigilâncias em causa apenas permitiriam apurar quais as pessoas que os suspeitos contactavam no espaço público, o que era manifestamente insuficiente para se apurar do seu envolvimento na prática dos crimes em investigação.
Finalmente, após a realização de algumas vigilâncias, nada se consignou sobre a necessidade do seu prosseguimento e durante quanto tempo, assim como não existiu despacho a determinar expressamente o seu termo. Também nada se consignou sobre as razões porque elas só incidiram sobre um dos jornalistas, quando existiam dois suspeitos".
Perante falhas graves como esta, qualquer trabalhador teria às costas um processo disciplinar. No fundo, aquilo que foi dado à PSP foi um "mandado em branco", à boa maneira do período revolucionário. Só que, segundo Alcides Rodrigues, não há matéria disciplinar, porque uma coisa é avaliar a qualidade dos despachos, outra é acção disciplinar, apesar de a fraca qualidade acabar por provocar danos.
"Concordando inteiramente com o Senhor Inspector quanto às dúvidas sobre a eficácia de tal diligência e quanto às deficiências do despacho que a ordenou, não perfilhamos, porém, a conclusão de estarmos perante responsabilidade disciplinar, por violação do dever de zelo. Isto porque, se a definição da estratégia processual cai na esfera da autonomia técnica do magistrado, a qualidade dos despachos proferidos reveste natureza classificativa, não cabendo aqui sindicar nenhuma delas.".
Continuando a análise do documento, chega-se à parte do levantamento do sigilo bancário. Legalmente admissível, é certo, mas também sujeito a critério de proporcionalidade, de forma a que a sua utilização não seja feita indiscriminadamente. Foi isto mesmo que o inspetor referiu no seu relatório, considerando ter existido a violação do dever de zelo. Porém, o relator e os restantes conselheiros não acompanharam o entendimento, votando, por sua vez, numa visão:
"Porém, já não perfilhamos o entendimento que tal factualidade integre a violação do dever de zelo, nem na vertente da ponderação e da proporcionalidade, nem na falta de fundamentação que, sendo desejável e aconselhável, não é líquido que seja imprescindível. Podendo ser reprovável o posicionamento processual da magistrada na vertente em análise, entendemos que não corporiza ainda infracção disciplinar.
Apreciando tal conduta em sede disciplinar poder-se-á estar a coarctar a autonomia do magistrado, autonomia essa que se caracteriza pela sua vinculação processual, apenas, a critérios de legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados às directivas, ordens e instruções legalmente previstas (artigo 3º do EMP).
Admitir tal valoração disciplinar poderia, no limite, colocar em perigo a autonomia técnica do magistrado. Na verdade, é no exercício dessa autonomia técnica que o magistrado opta, em cada caso concreto, pela realização de determinadas diligências de investigação e não de outras, devendo tal autonomia ser exercida dentro dos limites e parâmetros legais, sem inquinar o inquérito de nulidade.
Em face do exposto, conclui-se que a errónea actuação da magistrada visada não assume relevância disciplinar devendo ser analisada e ponderada em sede classificativa, por estar em causa o mérito da sua prestação funcional, o que se justifica se considerarmos que a magistrada não é avaliada há mais de oito anos".
E assim se resolve o maior atentado à liberdade de imprensa no regime democrático: em vez de Muito Bom na valiação, muito provavelmente a procuradora terá só um Bom com distinção.Até porque, como refere o documento, fundamentar não é "imprescindível". Será um capricho jurídico, presume-se.
Para a triste história deste caso, ficam duas declarações de voto das únicas pessoas que foram capazes de ver além da visão de claque. Primeiro, da professora Maria João Antunes e do advogado José Manuel Mesquita. Este, aliás, e por estranho que isso possa parecer, teve que recordar aos restantes conselheiros que existe uma Constituição.
"Mas o Ministério Público não se guarda a si próprio; guarda antes «a legalidade democrática», cabendo-lhe – em sede de dúvida legítima – optar pela sua defesa 'nos termos da Constituição', em detrimento da ‘legalidade potencial’ de uma qualquer diligência de investigação".
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