MARIA TERESA HORTA ESCRITORA E FEMINISTA, ESCREVEU UM DOS LIVROS MAIS IMPORTANTES PARA A LIBERTAÇÃO DAS MULHERES
“Antes do 25 de Abril, era tudo dramático na vida das
mulheres, desde o início do dia até ao fim da noite, porque
elas não eram ninguém, não tinham nenhuma espécie
de liberdade. Os homens tinham o poder total, inclusive
sobre os filhos. As mulheres podiam ‘dar opinião’. Mas
essa opinião não contava para nada. Quando o ‘Minha
senhora de mim’ foi publicado, pela D. Quixote, a Snu
Abecassis foi chamada e o censor disse-lhe: 'Não pode publicar mais nada desta senhora. Porque se tornar a fazê-lo,
fecho-lhe a editora.' E é engraçado que, muitos anos depois,
quando este homem morreu, tive uma enorme sensação
de liberdade. Também nessa altura, uma noite eu tinha
combinado tomar um café com o meu marido. Já eram
quase 11 horas, eu saí de casa e vi um carro estacionado lá
perto. De repente, saem três homens, empurram-me para
o chão e desatam a espancar-me. 'Para tu aprenderes a
não escrever como escreves', o que, enfim, convenhamos,
era um bocado difícil. Salvou-me um vizinho que se pôs
a gritar, e eles fugiram. Mas era o tipo de coisa a que
se estava sujeita. Na altura, eu conhecia pessoalmente
mulheres que escreviam na casa de banho, sentadas na
sanita, porque era o único sítio onde tinham privacidade
e podiam trancar a porta.
Foi essa situação que deu origem às ‘Novas Cartas Portuguesas’. Eu, a Maria Velho da Costa e a Maria Isabel
Barreno almoçávamos juntas todas as quintas feiras. E diz a Maria Velho da Costa: 'Já pensaste que, se uma mulher
sozinha a escrever provoca esta reação, o que faria se
fossem três?' E assim começámos. Escrevíamos em casa,
e depois encontrávamo-nos uma vez por semana para
discutir e ler. Sabíamos que íamos ter problemas graves,
mas na altura era assim mesmo.
Quando acabámos o livro, houve três pessoas que o quiseram ler: a Natália Correia, o Pedro Támen e o Lyon de
Castro. O Lyon de Castro não podia publicar-nos porque
era dono da editora e da tipografia, e arriscava-se imediatamente a que fechassem tudo. O Pedro também disse que
não podia. Então liguei para a Natália: 'Diga-me lá que
não pode publicar.' 'Não posso?', responde ela. 'A editora
não é minha, mas ou eles publicam ou eu saio'.
E assim foi. O livro foi publicado. Entretanto, um tipógrafo
vai dizer aos donos da editora que aquilo era perigosíssimo
e cheio de coisas ordinárias, e os donos exigiram à Natália
que suprimisse alguns capítulos. A Natália concordou. Mas
esperava que o tipógrafo fascista saísse e tornava a pôr
o que ele tinha tirado (risos). Claro que o livro quando
saiu foi imediatamente apreendido e nós condenadas, e
só depois do 25 de Abril o processo foi desativado. O que
mais me entristece hoje é as ‘Novas Cartas Portuguesas’
continuarem tão atuais. Ainda há muitíssimo para fazer
sobre a condição feminina, principalmente na mudança de
mentalidades.”“Onde é que estava no 25 de Abril? (risos) Estava a beber
copos com o meu amigo Alfredo Alvela. Éramos jornalistas no Rádio Clube Português. Eu tinha 29 anos.
Nessa altura existia muita censura na rádio e nos jornais.
Recebíamos os telexes com as notícias e depois tínhamos
de esperar por um telegrama da Censura que dizia o que é
que podia ser comunicado. Os primeiros relatos feitos pelos
presos políticos em Caxias do que foi a tortura e a prisão
foram transmitidos numa reportagem minha e do Alvela.
Antes do golpe, no ar andavam variadíssimas coisas. Sabíamos que alguma coisa ia acontecer, não sabíamos era
o quê. Podia haver um golpe da ultradireita, que entendia
que o Marcelo Caetano estava a ser demasiado brando,
ou outro da parte do Spínola. No dia 24, eu cheguei tarde
a casa, a Paço de Arcos, como era habitual. No dia 25, a
minha mulher levanta-se para ir trabalhar e vê sair uma
esquadra da Nato e que os comboios não circulavam. Ela
voltou, acordou-me e eu sabia que alguma coisa tinha
acontecido, não sabia era o quê.
Cheguei à rádio às 8 da manhã e estava tudo cercado por
militares. Foi preciso vir uma autorização lá de dentro para
eu entrar. Lá dentro, era o pandemónio. Já só se transmitiam comunicados do MFA e marchas
militares. E eu durante 5 dias não fui
a casa. Eu e todos. Porque ninguém
queria sair dali e perder um minuto.
O RCP era ‘A emissora da liberdade’,
que passou mesmo a ser o seu slogan e
a senha para entrarmos em qualquer
lado. Via-se televisão, mas muito mais
gente ouvia rádio, que tinha muito mais
capacidade de mobilização. Então, à
noite temos conhecimento que o Forte
de Caxias ia ser ocupado. Às 2 da manhã eu e o Alvela estávamos em Caxias.
E no dia 26 chegam carros militares com fuzileiros. Entram no forte e entrámos nós a seguir.
Como éramos a rádio, somos os primeiros a transmitir a
notícia, antes dos jornais que só saíam à tarde. Subitamente
começam a sair os presos para o pátio. O primeiro preso
a sair foi um conterrâneo meu, o Jaime Fernandes. Era
muito amigo de um jornalista da Capital que lá estava,
e há uma fotografia comovente dos dois a correrem um
para o outro para se abraçarem.
E os presos começaram a fazer o relato de tudo o que
tinham passado. Um deles contou-me que tinha vindo
da tortura do sono, estava na cela, e entra um militar que
lhe ordena que saia. Ele julga que vai ser mais torturado
e diz 'Eu daqui não saio porque tenho a coluna partida'.
E o militar tem muito trabalho para o convencer que
está livre. O homem contava-me isto e chorava à minha
frente. Quando eles percebiam que estavam livres, todos
choravam. Claro que muito do que eles contavam nós já
sabíamos de famílias, de presos que tinham saído, etc. Mas
o que era emocionante era ouvir estes relatos na primeira
pessoa. Nós tínhamos uma curiosidade quase mórbida em
querer saber tudo, mas aquelas pessoas às vezes estavam
tão emocionadas que era como se apenas conseguissem
sentir dor. Por exemplo, uma das coisas
que eu queria saber era como é que os
presos comunicavam entre si (usavam
uma espécie de código morse que batiam nas paredes). Isto eu não sabia.
A partir daí, a Censura acabou de todo e valia tudo menos arrancar olhos
(risos). Imagine o que era chegar à
rádio com uma cassete na mão e pôr
aquilo no ar sem qualquer espécie
de edição, com tudo o que era sons,
ruídos, atropelos! Depois, é claro as
coisas acalmaram. Mas foi muito
emocionante.”
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