sábado, 20 de março de 2021

MARIA TERESA HORTA ESCRITORA E FEMINISTA. Uma mulher amante da liberdade e o testemunho do jornalista Armando Pires

 MARIA TERESA HORTA ESCRITORA E FEMINISTA, ESCREVEU UM DOS LIVROS MAIS IMPORTANTES PARA A LIBERTAÇÃO DAS MULHERES

“Antes do 25 de Abril, era tudo dramático na vida das mulheres, desde o início do dia até ao fim da noite, porque elas não eram ninguém, não tinham nenhuma espécie de liberdade. Os homens tinham o poder total, inclusive sobre os filhos. As mulheres podiam ‘dar opinião’. Mas essa opinião não contava para nada. Quando o ‘Minha senhora de mim’ foi publicado, pela D. Quixote, a Snu Abecassis foi chamada e o censor disse-lhe: 'Não pode publicar mais nada desta senhora. Porque se tornar a fazê-lo, fecho-lhe a editora.' E é engraçado que, muitos anos depois, quando este homem morreu, tive uma enorme sensação de liberdade. Também nessa altura, uma noite eu tinha combinado tomar um café com o meu marido. Já eram quase 11 horas, eu saí de casa e vi um carro estacionado lá perto. De repente, saem três homens, empurram-me para o chão e desatam a espancar-me. 'Para tu aprenderes a não escrever como escreves', o que, enfim, convenhamos, era um bocado difícil. Salvou-me um vizinho que se pôs a gritar, e eles fugiram. Mas era o tipo de coisa a que se estava sujeita. Na altura, eu conhecia pessoalmente mulheres que escreviam na casa de banho, sentadas na sanita, porque era o único sítio onde tinham privacidade e podiam trancar a porta. Foi essa situação que deu origem às ‘Novas Cartas Portuguesas’. Eu, a Maria Velho da Costa e a Maria Isabel Barreno almoçávamos juntas todas as quintas feiras. E diz  a Maria Velho da Costa: 'Já pensaste que, se uma mulher sozinha a escrever provoca esta reação, o que faria se fossem três?' E assim começámos. Escrevíamos em casa, e depois encontrávamo-nos uma vez por semana para discutir e ler. Sabíamos que íamos ter problemas graves, mas na altura era assim mesmo. Quando acabámos o livro, houve três pessoas que o quiseram ler: a Natália Correia, o Pedro Támen e o Lyon de Castro. O Lyon de Castro não podia publicar-nos porque era dono da editora e da tipografia, e arriscava-se imediatamente a que fechassem tudo. O Pedro também disse que não podia. Então liguei para a Natália: 'Diga-me lá que não pode publicar.' 'Não posso?', responde ela. 'A editora não é minha, mas ou eles publicam ou eu saio'. E assim foi. O livro foi publicado. Entretanto, um tipógrafo vai dizer aos donos da editora que aquilo era perigosíssimo e cheio de coisas ordinárias, e os donos exigiram à Natália que suprimisse alguns capítulos. A Natália concordou. Mas esperava que o tipógrafo fascista saísse e tornava a pôr o que ele tinha tirado (risos). Claro que o livro quando saiu foi imediatamente apreendido e nós condenadas, e só depois do 25 de Abril o processo foi desativado. O que mais me entristece hoje é as ‘Novas Cartas Portuguesas’ continuarem tão atuais. Ainda há muitíssimo para fazer sobre a condição feminina, principalmente na mudança de mentalidades.”
“Onde é que estava no 25 de Abril? (risos) Estava a beber copos com o meu amigo Alfredo Alvela. Éramos jornalistas no Rádio Clube Português. Eu tinha 29 anos. Nessa altura existia muita censura na rádio e nos jornais. Recebíamos os telexes com as notícias e depois tínhamos de esperar por um telegrama da Censura que dizia o que é que podia ser comunicado. Os primeiros relatos feitos pelos presos políticos em Caxias do que foi a tortura e a prisão foram transmitidos numa reportagem minha e do Alvela. Antes do golpe, no ar andavam variadíssimas coisas. Sabíamos que alguma coisa ia acontecer, não sabíamos era o quê. Podia haver um golpe da ultradireita, que entendia que o Marcelo Caetano estava a ser demasiado brando, ou outro da parte do Spínola. No dia 24, eu cheguei tarde a casa, a Paço de Arcos, como era habitual. No dia 25, a minha mulher levanta-se para ir trabalhar e vê sair uma esquadra da Nato e que os comboios não circulavam. Ela voltou, acordou-me e eu sabia que alguma coisa tinha acontecido, não sabia era o quê. Cheguei à rádio às 8 da manhã e estava tudo cercado por militares. Foi preciso vir uma autorização lá de dentro para eu entrar. Lá dentro, era o pandemónio. Já só se transmitiam comunicados do MFA e marchas militares. E eu durante 5 dias não fui a casa. Eu e todos. Porque ninguém queria sair dali e perder um minuto. O RCP era ‘A emissora da liberdade’, que passou mesmo a ser o seu slogan e a senha para entrarmos em qualquer lado. Via-se televisão, mas muito mais gente ouvia rádio, que tinha muito mais capacidade de mobilização. Então, à noite temos conhecimento que o Forte de Caxias ia ser ocupado. Às 2 da manhã eu e o Alvela estávamos em Caxias. E no dia 26 chegam carros militares com fuzileiros. Entram no forte e entrámos nós a seguir. Como éramos a rádio, somos os primeiros a transmitir a notícia, antes dos jornais que só saíam à tarde. Subitamente começam a sair os presos para o pátio. O primeiro preso a sair foi um conterrâneo meu, o Jaime Fernandes. Era muito amigo de um jornalista da Capital que lá estava, e há uma fotografia comovente dos dois a correrem um para o outro para se abraçarem. E os presos começaram a fazer o relato de tudo o que tinham passado. Um deles contou-me que tinha vindo da tortura do sono, estava na cela, e entra um militar que lhe ordena que saia. Ele julga que vai ser mais torturado e diz 'Eu daqui não saio porque tenho a coluna partida'. E o militar tem muito trabalho para o convencer que está livre. O homem contava-me isto e chorava à minha frente. Quando eles percebiam que estavam livres, todos choravam. Claro que muito do que eles contavam nós já sabíamos de famílias, de presos que tinham saído, etc. Mas o que era emocionante era ouvir estes relatos na primeira pessoa. Nós tínhamos uma curiosidade quase mórbida em querer saber tudo, mas aquelas pessoas às vezes estavam tão emocionadas que era como se apenas conseguissem sentir dor. Por exemplo, uma das coisas que eu queria saber era como é que os presos comunicavam entre si (usavam uma espécie de código morse que batiam nas paredes). Isto eu não sabia. A partir daí, a Censura acabou de todo e valia tudo menos arrancar olhos (risos). Imagine o que era chegar à rádio com uma cassete na mão e pôr aquilo no ar sem qualquer espécie de edição, com tudo o que era sons, ruídos, atropelos! Depois, é claro as coisas acalmaram. Mas foi muito emocionante.”

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