(vamos fingir que acreditamos que isto é verdade)
Num País em que por uma mera de troca de palavras mais acesa no Parlamento se fala logo em insultos e baixo nível, não é de estranhar que o "caloteirismo" possa ser uma atividade rentável. Confusos? Explicando: uma pessoa pode ser caloteira e, ao mesmo tempo, sacar umas massas ao credor. Basta que este lhe tenha chamado, precisamente, caloteiro e o dono do calote tenha avançado com uma queixa-crime em tribunal. Foi isto mesmo que aconteceu a "Manuel". Em janeiro de 2005, numa reunião geral de trabalhadores com a administração da empresa onde trabalhava, enquanto os donos lá explicavam a situação difícil, as dificuldades, o trabalhador interveio: "Parem de mentir, são uns mentirosos, paguem-me o que me devem. Caloteiros."
O que é que o homem foi fazer...É certo que, por decisão transitada em julgado de fevereiro de 2003, a empresa tinha a pagar-lhe 12 mil euros. Mas até 2005, "Manuel" não tinha visto um cêntimo. Como manda a boa ética social e a jurisprudência, muito mais grave do que alguém não pagar uma dívida é, obviamente, ser apontando publicamente por isso. Quer dizer, até se pode dizer que "fulano nos deve uma determinada quantia de dinheiro" ou "sou credor daquele indivíduo". Chamar caloteiro é que ultrapassa todos os limites, como concluiu o Tribunal da Relação de Guimarães, em janeiro de 2008.
Os donos da empresa alegaram terem-se sentido "envergonhados e humilhados" com as palavras de "Manuel", proferidas, ainda por cima, perante todos os trabalhadores. Por sua, o credor, coitado, recordou que, de facto, os patrões lhe deviam dinheiro, estando há dois anos à espera do pagamento. Por isso, houve, no seu entender, uma "causa de justificação" para o seu comportamento. Os juízes não embarcaram na tese: "Na verdade, o arguido atribuiu aos assistentes não apenas factos, mas também os epítetos de "vigaristas e caloteiros", o que, convenhamos, é uma situação muito diferente daquela em que se diz que os assistentes devem uma determinada quantia de dinheiro". Resultado: além de "estar a arder" com os 12 mil, "Manuel" ainda foi condenado a pagar aos patrões 200 euros e, a título de multa, 300 euros ao Estado. Respeitinho acima de tudo.
Idêntica decisão foi tomada, em 2010, pelo Tribunal da Relação de Coimbra. Tudo porque "António" resolveu chamar caloteiro ao antigo patrão da sua mulher, uma vez que este tinha prometido pagar mil euros de créditos salariais, mas nunca chegou a concretizar o prometido. O casal contou em tribunal que, apesar do compromisso assumido, o antigo patrão acabou por lhes dizer que a dívida era da empresa e não pessoal.
Numa das vezes, "António", vendo o antigo patrão da mulher, a conversar com um indivíduo, parou o carro junto aos dois e, dirigindo-se ao homem, chamou-o de caloteiro, perguntando quando é que pagava à mulher o que devia. O ex-patrão fez o que se impunha: não pagou e apresentou uma queixa-crime pelo crime de injúria, dizendo que o facto de ser apelidado de caloteiro fez com que saísse "menos à rua com receio de ser importunado pelo arguido ou pela mulher". A situação, continuou, provocou-lhe "profunda tristeza, angústia e desgosto"
De facto é chato e o transtorno foi reconhecido em primeira instância e no Tribunal da Relação de Coimbra. Tal como "Manuel", este arguido invocou em sua defesa um estado de exclusão de culpa, alegando que, em momento algum, quis "ferir a honra e consideração" do devedor, mas sim "tão somente reportar uma factualidade assumida de uma dívida não paga".
Nada feito. Uma coisa é uma dívida, outra, substancialmente diferente, é a honra, consideração, o sacrossanto bom nome. Daí os juízes desembargadores terem concluído não ter existido "qualquer interesse legítimo ao proferir a expressão" caloteiro. A única forma, continuaram os venerandos desembargadores, de "António" tutelar o "seu interesse seria apresentar queixa perante as autoridades, o que o arguido não fez, e defender o seu direito nos tribunais próprios". Ou seja, num processo executivo que pode demorar anos e anos. Mas é assim que tem de ser. Caso contrário, nem o dinheiro do devedor e mais uma despesa: "António" pagou 640 euros de multa.
Moral da história: se um credor divulgar publicamente que alguém lhe deve dinheiro (ainda que com linguagem inflamada, dado que o dinheiro faz-lhe falta) arrisca-se a ser julgado e condenado por um crime de injúrias.
Caso diferente é o que acontece se a Segurança Social e as Finanças publicarem a lista de devedores, agrupando-os até por categorias, isto já é uma medida de combate à fraude, uma vez que os devedores sentem-se impelidos a limpar o respetivo nome da lista de caloteiros. Perdão, pessoas que, por um qualquer motivo, certamente explicável, não pagaram o que deviam. (diário de notícias de Lisboa)
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